4 – Abençoado e sagrado
por DietrichQuando acordo, minha mãe não está mais comigo. Não me levanto imediatamente, ainda tomada pela sensação de felicidade por ter finalmente ganhado o amor da minha mãe Gabrielle. Eu agradeço à força que move o universo por ter me dado esse presente. Sinto que eu poderia ir embora desta vida agora, mas é um sentimento egoísta de minha parte. Ainda tenho coisas para cumprir nesse planeta.
Me levanto e vou até a aldeia. As amazonas estão treinando, e fico fascinada com seus movimentos. Me sento numa pedra para observá-las, de longe. Apesar de meu novo caminho, não deixei se ser capaz de apreciar a beleza que existe na arte da guerra. As amazonas tem um estilo de luta ágil, direto e eficiente, movimentos precisos e econômicos que as tornam inimigas completamente mortais para qualquer um que ouse desafiá-las. Seu maior problema sempre tinha sido a pouca quantidade e o ódio que, num mundo forjado por homens, caía sobre elas incessantemente. Nem mesmo guerreiras tão ferozes e destemidas tinham como resistir a ataques tão constantes.
Varia aparece e começa a treinar junto com elas. Rapidamente fica claro o quanto ela se destaca. Eu vejo o corpo dela se mover com agilidade, o estilo de luta das amazonas atinge seu nível máximo de mortalidade através dos seus músculos. É algo lindo de se ver. Ela, de repente, capta meu olhar fixo, e eu percebo, envergonhada, que meu queixo está meio caído, e o fecho imediatamente. Ela, com aquele sorriso petulante que ela tem, faz um sinal para que eu me aproxime. Eu me levanto e vou, sem entender muito bem porque minhas pernas tremem um pouco.
Ela me atira um bastão de madeira, que eu agarro no ar com facilidade. Meus reflexos ainda não desapareceram completamente.
– Que tal uma lutinha pacífica? Apenas na esportiva – ela convida, girando o bastão que ela mesma segura.
As amazonas ao redor vibram, gritam e erguem os punhos. Eu me sinto sinceramente constrangida. Não quero lutar, mesmo numa luta “de mentira”. Não gosto da sensação que me traz.
– Me ensina uns movimentos, como você fez da outra vez – ela continua – prometo, só uso para o bem.
Algumas amazonas riem. Eu sorrio, envergonhada, nego com a cabeça e largo o bastão. Agora elas lançam vaias.
– Vou te ensinar uns movimentos, mas sem armas – digo – movimentos defensivos.
Ela dá de ombros e larga o próprio bastão.
– Por mim, está ótimo.
– Certo – eu digo – me ataque.
– Como?
– Como você quiser.
Algo escapou no tom de voz que eu usei, que fez com que ela me olhasse daquele jeito que ela tinha me olhado quando comparávamos nossas cicatrizes de guerra. Ela ergue os punhos com um sorriso enorme em seu rosto, consigo ver o prazer que ela sente com a batalha, o quanto ela ama ser uma guerreira. Ela me olha de cima a baixo e imediatamente me ataca com um chute. Eu agarro a perna dela e torço, e ela está prestes a cair, mas, eu a seguro logo antes de ela atingir o chão, apenas o suficiente para amortecer sua queda de modo que ela quase deita delicadamente.
Eu me endireito e estendo a mão para ela, ajudando-a a levantar-se. Ela está feliz como uma criança que ganha um pão de nozes muito doce.
– Uau! Isso foi demais – ela diz – você ainda não perdeu seu toque.
Meu coração para um segundo antes de voltar a bater. Tento fingir que não estou pensando bobagens, dou de ombros e sorrio, confesso que me sinto meio envaidecida no momento.
– Pode vir de novo – eu digo, e meu esnobismo escapa em minha voz.
Ela responde com uma risada e mais um ataque. Penso que vou pegá-la novamente, mas o punho dela atinge meu braço e eu perco o equilíbrio. Teria me estatelado no chão, se ela não tivesse me imitado e amortecido minha queda. Ainda assim, meu ombro lateja. Ela tinha uma direita cruel. Seguro a mão que ela me estende e me levanto, meio aborrecida.
– Acho que elogiei rápido – ela diz.
– Só me distraí um pouco. Já estou pronta para outra.
– Tem certeza?
– Claro.
Ela vira e se afasta, esticando os braços para cima e vejo os músculos das costas dela se movimentarem sob a pele. Me pergunto porque diabos estou reparando em tais coisas, mas não tenho tempo de encontrar uma resposta, pois ela logo se vira com mais um chute veloz. Dessa vez consigo agarrá-la, mas ela se livra de minha pegada e me lança outro soco, o qual eu também seguro. Meto a perna entre as dela e lhe passo uma rasteira que a faz perder o equilíbrio. Amorteço sua queda, sem largá-la, e imobilizo-a no chão. Ela tenta se desvencilhar, mas, pelo jeito que prendo seus membros é impossível ela fazer isso sem sentir uma dor imensa ou até mesmo deslocar o braço.
– Aprendeu? – pergunto, ouço algo de Lívia em minha voz.
– Ok, ok. Você venceu – ela diz – dá pra me soltar? Estou comendo poeira, literalmente.
Dou uma risada e a solto. As amazonas ao redor continuam vibrando, mas aquilo tudo já foi demais para mim. Eu começo a me afastar e elas vaiam de novo, mas eu simplesmente saio de cabeça baixa, um sorriso meio encabulado em meu rosto. Varia grita que o espetáculo acabou e ordena que elas voltem a treinar. Ela começa a me acompanhar enquanto eu volto ao lugar onde eu estava antes.
– Vai me dizer que não gostou nada daquilo? – ela pergunta.
– Algumas coisas eu gostei – digo, sem olhar para ela e apertando minhas mãos suadas. As partes que eu tinha gostado não tinham nada a ver com a luta, mas eu não queria que ela reparasse nisso. Sento na pedra e ela senta ao meu lado.
– Olha, não tenho como mentir, é quase uma ofensa que alguém como você se recuse a lutar.
Eu dou de ombros, ainda sem olhar para ela. Volto a observar o treino das amazonas.
– Minha mãe já acordou? – pergunto.
– Ela saiu bem cedo. Disse que passaria o dia na floresta, só voltaria pela noite.
– Ela deve se sentir próxima do seu amor quando está na floresta. Foi onde elas viveram suas vidas juntas.
Aquilo faz ela me lançar um olhar curioso. Mais uma vez imagino como deve ser estranho esse tipo de coisa sair da boca de Lívia, a Vadia de Roma.
– Suponho – ela diz, tentando soar indiferente – eu não saberia.
– Nunca amou?
– Nunca.
Paira um silêncio, que ela quebra:
– E você?
– Amo todos os seres viventes – eu quase a ouço revirando os olhos quando eu digo isso.
– Você sabe que não é disso que estou falando – a voz dela é meio impaciente – além do mais… eu sei que você também teve uma relação com Ares.
Me atento ao uso da palavra também. É mais uma coisa que eu e ela temos em comum, mais uma experiência em nossas vidas que se sobrepõem. Ares tinha alimentado o gosto dela pela violência, da mesma forma que tinha feito comigo. Ele era capaz de encontrar o pior que havia em qualquer pessoa e fazer aflorar. Ainda bem que minha mãe Xena a tinha ajudado antes que ela mergulhasse inteiramente na escuridão.
– O que eu vivi com Ares, o que eu vivi com qualquer pessoa antes dele, não tem nada a ver com amor, de qualquer tipo – afirmo.
– Entendo – ela diz. Eu a olho e ela parece meio embaraçada. Nunca a vi com essa expressão.
– Mas sei que ele consegue ser muito… persuasivo.
– E dolorosamente insistente. Mas eu me recusei a tê-lo dessa forma. Apenas queria seu treino de guerra.
Aquilo me deixa intrigada.
– Porque o recusaria? Ele é um deus, e um homem muito atraente.
– Não para mim. Mas suponho que você e ele…
Eu olho para o chão.
– Como eu disse… um homem muito atraente.
– E antes dele?
– Antes dele… Nada além de festas, bebidas, noites sem sentido em orgias dionisíacas, artimanhas para usar as pessoas para atingir meus objetivos, prazeres efêmeros no meio da guerra. Mentiras, traições, corações que eu parti. Nada digno de nota.
Ela ri com meu sarcasmo.
– E depois dele?
– Por que esse interesse repentino? – eu a encaro. Ela segura meu olhar com firmeza e eu quase me arrependo de tê-la questionado. Entrei num jogo que não sei se sou capaz de ir em frente.
– Estou me perguntando se o seu deus, além de não deixar você comer carne, também exige que seja celibatária.
– Por que? Quer se converter?
– Dependendo da resposta, as chances aumentam ou diminuem.
Eu continuo olhando para ela, na verdade, agora acho que não sou mais capaz de deixar de olhá-la.
– Não houve ninguém depois de Ares, e não, não há uma exigência de celibato. O amor físico entre as pessoas também é abençoado e sagrado.
– Olha, “abençoado” e “sagrado” são as últimas coisas que eu penso quando o assunto é sexo.
– Posso imaginar.
– Pode mesmo?
Ela me deixa sem palavras, e eu estava certa, tinha entrado em algo que não sabia como continuar. Em outro momento de minha vida, com qualquer pessoa que eu considerasse atraente, eu continuaria, eu diria qualquer coisa obscena e provocante, eu faria o necessário para ter quem eu quisesse, porque meus desejos costumavam ser implacáveis, irrefreáveis. Eu queria imaginar que ela estava realmente flertando descaradamente comigo, mas eu só podia estar ficando louca. Eu tinha, de fato, sentido a eletricidade entre nós quando nos conhecemos, mas isso não podia mais ser verdade agora que ela sabia quem eu era. Eu estava enganada, certamente.
– Posso – minha voz estava um pouco rouca – eu tinha uma vida agitada, no passado – pigarreio e percebo o olhar triunfante dela, não sei de onde estou tirando as forças para continuar olhando para ela – abençoado e sagrado realmente não tinham nada a ver.
O sorriso dela cresce, eu o acho incrivelmente bonito, e meus olhos passam alguns segundos em seus lábios. Quando voltam para os olhos castanhos, eu sei que ela sabe o que estou pensando, e eu sei que ela está pensando o mesmo. Minha respiração se altera e eu sinto se agitar em mim algo que eu achei que nem existia mais.
– Varia! – uma amazona grita, cortando nosso momento. Ela revira os olhos e bufa de frustração, eu acho hilária a expressão dela.
– Estou indo! – ela responde, mal-humorada, enquanto se levanta, mas não vai imediatamente. Ela para em frente a mim – vai ficar na floresta hoje novamente? Realmente não precisa.
– Provavelmente vou preferir dormir lá mesmo – eu disse, já incomodada em estar ali. Tinha vindo atrás de minha mãe e me distrai com a luta, mas já estava muito consciente das amazonas que me observavam naquele momento. Queria seguir os rastros de minha mãe e ficar com ela.
– Entendi. Quem sabe não a visito lá quando a noite cair? Para não ficar tão isolada.
– Hum… eu gostaria – respondo, sem realmente acreditar que ela estava mesmo dizendo aquilo, ou que ela iria fazer o que dizia.
– Varia! – o grito ecoa de novo, e ela fecha os olhos, impaciente, se vira e sai sem cerimônias.
Por um momento, me distraio vendo-a se afastar. A vejo começar a interagir com a mulher que a tinha chamado, e aprecio o jeito decidido com que ela fala, apesar de não conseguir ouvir o que elas conversam. Mais uma vez, olhares cheios de despeito me atingem, me enchem de desconforto, e eu saio para procurar minha mãe.
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