5 – O silêncio vai cuidar de tudo enquanto você dorme
por DietrichA encontro pescando, e não do jeito convencional, ela está mergulhando e pegando os peixes com as mãos. Já tem um monte deles em cima de uma bolsa na beira no lago. Eu me sento à beira da água e me divirto vendo-a mergulhar e voltar com os peixes. A nação amazona certamente terá um grande banquete hoje.
Depois de uma boa sessão de pescaria, ela senta ao meu lado. Ela está feliz, sorridente, e também está incrivelmente linda com os cabelos molhados, as gotas de água descem pela enorme tatuagem de dragão em suas costas. Isso me faz pensar no que tenho para conversar com ela. Mas não entro no assunto imediatamente. Primeiro, a ouço falar sobre minha mãe. Ela me conta inúmeras histórias, das mais engraçadas às mais tristes e sombrias. O dia vai passando, e ela assa alguns peixes para comer, eu asso meus vegetais. Tomamos banho juntas, e é tão divertido!
Ela chora novamente, porque é inevitável, e eu continuo amparando-a. É mais fácil agora eu entendi que ela me ama. Mais uma vez, nos deitamos e nos abraçamos, e ela se aconchega em mim enquanto a consolo. Esse choro acaba mais rápido, é menos dolorido, e logo ela está de novo contando-me histórias sobre minha mãe Xena. O jeito que ela narra é intenso e extasiante, e eu ouço, hipnotizada.
– O amor de vocês é o mais lindo que eu já vi, mãe – eu digo.
– Tinha seus altos e baixos.
– Não duvido.
Ela me encara, atenta, seus olhos se estreitam.
– O que você tem, Eva?
Dizem que mães sabem ler mentes.
– Nada – respondo, mas meu tom de voz é ridiculamente inconvicto. Ela me dá de novo aquele olhar de mãe repreensiva. Nem preciso que ela me admoeste, eu já me retrato imediatamente:
– Certo… tem uma coisa… como você faz quando… tem uma pessoa a quem você fez muito mal, muito mesmo, mas… talvez essa pessoa esteja dando sinais que… bem….
Ela ri da minha falta de jeito, e eu me sinto um tanto idiota.
– Ora, mas você está perguntando para a especialista, não é mesmo? Eu machuquei sua mãe de forma incomensurável, e ela a mim. Você machucou à mim e à ela. E ela me amava, eu a amo, e eu amo você. É tão difícil aceitar o perdão de alguém não é mesmo? É quase impossível. Você acha que nunca mais merece amor.
– Amor é uma palavra muito forte, nesse caso que me refiro – eu engulo em seco, não quero sequer pensar nessa possibilidade.
– Falo de qualquer amor, seja um que dure uma noite, uma semana, dez anos, ou um que transcenda vidas. O carinho de uma pessoa, por um momento breve, ou numa relação longa. O conforto de ter uma pessoa com você.
A tristeza mais uma vez toma os olhos dela, e vejo que ela também está falando de si. Ela prossegue:
– Quando eu estava no Egito, eu andei de guerra em guerra. Por muito tempo, sequer podia imaginar sentir o calor de outra pessoa. Mas, em Alexandria, conheci uma pessoa que também tinha perdido seu amor. Através desse luto mútuo, nós nos confortamos… fisicamente, inclusive – ela pigarreou, meio corada, e achei engraçado vê-la assim – a única coisa que ecoava em minha mente era: eu devia ter derramado as cinzas, eu devia ter derramado as cinzas, eu devia ter derramado as cinzas… eu achava que não merecia amor de qualquer tipo ou perdão por isso. Sinceramente, ainda não acho. Mas, por breves momentos, eu me permiti ser amada, e isso me ajudou a seguir em frente.
– Mas essa pessoa não era alguém a quem você fez mal.
Ela baixou os olhos.
– O amor que ela perdeu, era um soldado que matei na guerra.
– Oh, mãe…
– Essas coisas acontecem das formas mais estranhas. Eu amei Hipatia por uma noite, e ela me amou. Depois seguimos em frente, eu e ela, ambas com o coração um pouco mais leve.
Ela segura minha mão, a acaricia, beija meus dedos e continua:
– O seu caminho é o caminho final. Você já sabe que o amor é a maior força de todas. Não é só você que é capaz de superar as dores e amar, Eva. Outras pessoas também são. Inclusive, pessoas que vão amar você, como eu amo e como seja lá quem for de quem você está falando também ama, provavelmente. Ou você não acredita de verdade no que prega? Não subestime a capacidade das pessoas para o perdão e para o amor.
Eu baixo os olhos e rio da minha hipocrisia. Ela está certa, é claro. E é óbvio que eu já sabia disso tudo. Não só pelo que me tinha sido revelado pela força superior, mas também por tudo que eu vivera e aprendera em minhas missões de paz. Eu sabia o quanto as pessoas eram capazes de amar. Mas ouvir ela dizer isso me ajuda a processar minhas confusões, a lembrar, de novo, da Verdade.
– Obrigada, mãe. Eu realmente estava sendo hipócrita e subestimando as pessoas.
– Como eu te disse… você vai falhar inúmeras vezes, eu também, mas estaremos aqui uma pela outra.
Eu a abraço, e ela me deita em seu ombro. Ela tem um cheiro gostoso de terra molhada depois da chuva. Ela começa a acariciar meus cabelos, e eu vou ficando sonolenta. Quando estou naquele limbo entre o sono e a vigília, a ouço murmurar uma canção de ninar.
Quieta agora, minha pequena, por favor não chore, deite sua cabeça no meu ombro e suspire. O sol se pôs e a mamãe vai rezar. O silêncio vai cuidar de tudo enquanto você dorme.
Eu reconheço a música, e no meu estado já onírico, a voz dela se mistura com a de minha mãe Xena, e é ela que canta para mim enquanto estou em seus braços. Eu olho bem para minha mãe Xena, a gravo com força em minha mente, não sei se é o espírito dela que me visita ou se minha saudade a está criando em meu sonho. Ela não está usando nenhum tipo de roupa angelical ou sobrenatural, ela traja sua armadura de princesa guerreira e parece tão poderosa, tão incrível!
– Mãe, onde você está?
– Onde mais, Eva? Com você e com Gabrielle.
– Gabrielle está com muita saudade. Eu também estou.
Ela dá um sorriso triste.
– Eu sei. Mas você sabe que iremos nos ver de novo, não é?
– Sim, eu sei – eu olho ao redor. Estamos em um lindo campo gramado, o ar é o mais puro que já respirei. Ao longe, vejo árvores repletas de frutas, e áreas cheias de flores se estendem adiante – o reino dos céus é lindo!
– O reino da terra também, anjo – ela me diz – não tenha pressa em vir aqui. Tudo vai ser do jeito que tem que ser.
Ela me abraça, e eu posso sentir o perfume da pele dela, parece um doce com pedacinhos de cravo. Abro os olhos e vejo que Gabrielle nos assiste, com um sorriso no rosto. Depois de um tempo, minha mãe me solta e vai até sua alma gêmea. Elas se olham encantadas, seus rostos carregados de saudade e do amor mais intenso que já vi na vida, e elas se beijam. Eu me viro, feliz e acanhada, querendo dar a elas a privacidade que precisavam. Me distraio com a beleza do sol poente.
Mergulho profundamente no sono mais restaurador que eu já tive em anos. Pela primeira vez não tenho pesadelos com as mortes que Lívia… que eu causei.
Quando acordo, já é o finzinho da tarde. Minha mãe está adormecida, e parece mergulhada num sono pesado. Eu me levanto devagar, tentando não acordá-la e percebo que não é tão difícil, pois ela nem se mexe. Lentamente, começo a recolher os peixes para levá-los à aldeia. É aí que ela finalmente desperta, e começa a me ajudar a organizar a comida.
Voltamos para a aldeia, a sacola com os pescados está pesada. As amazonas fazem uma festa quando veem aquele monte de peixes, e logo começam a prepará-los. Sentamo-nos ao redor de uma fogueira junto com várias mulheres, e minha mãe conta história atrás de história. A conversa é alta e animada, e eu não participo realmente, eu apenas escuto e aprecio a felicidade que todas ali compartilham. Meu coração cresce e se enche ao ver minha mãe tão feliz e animada. As demais mulheres parecem não se importar com a minha presença, uma delas me estende uma tigela de frutas e eu pego uma. Eu, aos poucos, deixo de ser um incômodo para elas. Mas ainda percebo, ao longe, muitas que nos olham, escandalizadas, e não se aproximam porque estou ali.
O mais discretamente que posso, me levanto e saio. Minha mãe me pergunta para onde vou e digo que vou dar uma volta noturna. Ela não questiona, sorri para mim e pede que eu tenha cuidado. Eu brinco que provavelmente sou mais velha que ela, e ela ri desse aspecto estranhíssimo de nossa relação.
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