Terminou de juntar seus pergaminhos e escondê-los na bolsa de sela, e jogou seu corpo, que ainda tremia, na cama que ficava aos pés de uma janela aberta, banhada pela luz da lua cheia. Fechou os olhos, em uma frustrada tentativa de deter as lágrimas.

Joxer havia levado consigo o último dos pergaminhos, e tendo saído justo na direção de Xena. Provavelmente ele iria mostrar a ela seu desejo mais íntimo, já que não conseguiria segurar a língua dentro de sua boca por muito mais tempo.

Burra, burra, burra… Como pôde permitir isso acontecer?! Aliás, como pôde permitir se apaixonar novamente, principalmente depois de tudo que havia passado!

Isso não interessava agora, pelo menos não naquele momento.

Uma brisa gelada penetrou pela janela, fazendo com que seu corpo se arrepiasse e a barda abrisse os olhos, indo de encontro à lua, quase que perdida no meio do brilho de tantas estrelas que pareciam querer dançar em volta dela. Cada uma com seu brilho especial, como se tentando seduzir a rainha da noite.

Logo avistou uma pequena estrela mais afastada das outras, à mercê de seu próprio tímido e fraco pulsar de luz. Olhava atenciosamente – e por que não carinhosamente? – para a estrela, como se olhasse seu próprio reflexo no espelho.

– Você e eu, apesar de tão diferentes, somos iguais… O mesmo desejo, e a mesma decepção. Parece que a vida é mais injusta com os que mais sonham, não é? – uma lágrima escorre ao mesmo tempo em que ela vira seu rosto para o pulsar das árvores além da janela, dançando e cantando ao soar do vento, hipnotizada a esse ritual e jogada aos seus pensamentos. – Pessoas que você conhece aparecem e somem da sua vida como fantasmas. E depois que somem você descobre que elas deixaram uma parte em você. É como se, de algum modo, o espírito delas definissem quem você é e o que deve trazer ao mundo. Mas às vezes elas permitem que você faça isso mesmo estando ao seu lado sol após sol…

A barda acorda de seu transe. Novamente ela se deixou levar por seus devaneios, e não poderia permitir que isso continuasse acontecendo. Entretanto, era algo mais forte. Virou seu corpo para o lado e avistou o casaco de Xena saindo de uma das bolsas, perto da lareira acesa.

Levantou-se e foi em direção à peça de roupa, puxando-a de encontro a si e aspirando profundamente o perfume.

Sentou-se na cama ainda abraçada ao casaco, soltando-o apenas o suficiente para vesti-lo; não para espantar o frio de seu corpo gelado, mas desejando que o perfume de sua proprietária fixasse em seu corpo – e que dali nunca mais saísse.

– Eu sou quem eu realmente sou ou eu sou quem você me fez? Quem eu seria sem você? – então fixou seus olhos em sua nova companheira de brilho triste. – Luz da estrela, brilho da estrela, primeira estrela que eu vejo esta noite. Eu desejo poder, eu desejo conseguir, realizar o desejo que desejo esta noite…

Um vulto se move entre as sombras, e destas emerge Xena, sendo banhada pela luz da lua. Seu rosto expressava decisão, mas ela trazia dor no olhar que brilhava naquele instante. Os braços cruzados na altura do peito, contrastando com a roupa de couro – mesmo que sem a armadura – e as armas, lhe dava um ar imponente e respeitoso.

Gabrielle se assustou com a repentina chegada de Xena. Diabos, já deveria estar mais que acostumada com ela zanzando por aí no meio das sombras como um fantasma.

Ela encara a guerreira, de encontro àqueles olhos gelados.

Xena calmamente deposita o chakram e a espada em cima de sua bolsa de sela, perto da lareira.

Gabrielle sentiu o áspero da garganta ao engolir seco, enquanto a forte mulher caminhava lenta e seguramente em direção a ela.

– Xena…? – a mulher pára ao lado da barda, ainda de pé.

Ela sentiu o desespero tomar conta de si, não imaginando o que poderia estar por vir: não sabia o quanto ela tinha escutado seus pensamentos altos, e, principalmente: não sabia se Joxer havia contado a ela o acontecido.

– Olha, não importa o que Joxer disse, mostrou, falou, sei lá! Não importa… Não, não! Importa sim… Mas eu… – Xena calou Gabrielle com dois dedos em sua boca. – Eu estou balbuciando, não é? – falou por cima dos dedos da morena, como se os beijando propositalmente.

Xena assente levemente com a cabeça, procurando no rosto da loira uma maneira de lhe orientar em infeliz situação.

– Gabrielle, eu já sabia que era assim que você se sentia, e te entendo, por que… – a loira quase engasgou com aquelas palavras; era nítida a abertura de esperança que brilhava em seu rosto. Será que… tudo aquilo que pensava de Xena, sua frieza… significava uma tentativa de refrear sentimentos mais profundos? Oh queriam os deuses que fosse aquilo! Sua vida se tornaria algo de verdade, com o brilho do amor finalmente a iluminando. -… Porque eu senti algo semelhante com Pétracles. – Gabrielle teve que engolir as lágrimas que teimavam em querer sair.

Como pôde ser tola em pensar que Xena viria a dizer que… Realmente, era muito ingênua e impulsiva. Já ia dizer tudo, sem esperar Xena terminar, e isso teria sido a maior burrice que nunca fez em sua vida.
Como a guerreira podia ser tão tola em não perceber tudo tão nítido? Bom, ao menos, por um lado isso era ótimo, pois como a barda pensava que não era correspondida, se a morena descobrisse e reprovasse, seria o fim da sua vida.

Entretanto, mesmo depois de tudo, não podia acreditar que agora ela vinha com aquela velha conversa de veja-a-moral-do-que-eu-passei-e-acrescente-na-sua-vida. Teve vontade de sumir dali, parecia que toda a história vinha a se repetir, todo seu passado sombrio de um amor perdido pulsando e voltando à vida… seu maior pesadelo querendo ser revivido justo com Xena.

Abaixou a cabeça e deixou sua franja cobrir os olhos. A luz da lua que brilhava por trás dela lhe dava um ar amedrontador. Xena se arrepiou.

– Então é por causa dis…

– Você ainda ama Marcus, não é? – a barda cortou o velho e firme discurso da guerreira com uma pergunta tão direta.

Xena ficou estática, e quase que boquiaberta. Achava que Gabrielle jamais teria coragem de fazer aquilo, ainda por cima com um assunto envolvendo aquilo. Refletiu por alguns segundos. Chegou à conclusão de que seu estado era tão desesperador a ponto de quase insano, para que tal fato tivesse ocorrido, e sentiu-se impotente. Olhou para os lados, procurando uma saída. Achava que falar sobre aquilo feria Gabrielle de alguma forma. Então, sem mais delongas, a tão insistente voz de seu interior resolveu se manifestar:

\”Qual é o seu problema, guerreira estúpida? Você sabe por que está assim! Por que tenta tão duramente esconder tudo aquilo que sente? Está óbvio que você a ama! Não tente fugir disso, é inútil!”.

\”Mas eu não posso dizer pra Gabrielle o que sinto. Poderia perdê-la se ela não entender ou corresponder. Além do mais, qualquer um sabe o \”bom\” histórico de relacionamentos que eu tenho\”.

\”A escolha é sua, idiota”.

Ficou intrigada, pensando sobre o que fazer. Queria dizer, mas não poderia correr o risco… Ignorou; achou que estava dando corda demais a esse pensamento medíocre.

Engoliu seco, examinando cuidadosamente que palavras usar.

– Olha Gabrielle, eu n…
– Apenas responda: sim ou não? – os músculos de Xena e cada articulação de seu corpo ficaram tensos.

Já não sabia mais o que fazer em tal ponto, e ainda Gabrielle exercendo essa pressão nela… Estava estranho. Poderia jurar que a barda a am… Tola. O melhor naquele momento seria manter a pose irredutível ao invés de chorar. Se não podia enganar a si mesma, que pelo menos enganasse os outros.

– Barda, por que você está me perguntando essas coisas? – pergunta rapidamente, receosa que a loira venha a lhe interromper novamente. Mas Gabrielle nada responde. – Gabrielle?

Silêncio.

A barda não sabia o que responder. Na verdade, não sabia nem ao certo o que pensar; Xena a havia pegado de surpresa, e se ignorasse essa pergunta, a guerreira poderia desconfiar.

A essa altura, tinha certeza de que Joxer não havia dito nada, caso contrário Xena não estaria agindo tão naturalmente. Por isso, a questão voltara a ser complicada: não tinha coragem de mentir para a morena, e também não poderia responder a verdade. Pra ela, Xena não correspondia seus sentimentos, e não poderia nem sonhar em correr o risco de perder a coisa mais importante da sua vida… novamente. Mesmo que isso lhe custasse uma eternidade em Tártaros por não ser honesta com o amor de sua vida.

– Por favor, olha pra mim. Essa sua expressão está me deixando assustada. – Xena coloca a mão no queixo da barda e puxa seu rosto pra cima, forçando-a a encará-la. – Gabrielle, o que há com você? Você anda tão… Pelos Deuses, o que houve?! – a guerreira se entrecorta, observando as feições vermelhas da loira, assim como os olhos verdes inchados e escurecidos pelas lágrimas.

Tão rápido quanto seu corpo pode lhe permitir, a guerreira se senta ao lado da barda e a puxa – quase que culpada e desesperadamente – para seus braços, em um reconfortante abraço. Sentia-se um monstro: para sua consciência, ela havia feito aquilo. Além de impotente, só piorava a situação… Odiou a si mesma.

Atormentada por sua culpa, inconscientemente Xena começa a embalar Gabrielle, e sussurrar em seu ouvido algo indecifrável que, porém, acalmou a barda.

Sentindo-se segura aninhada naquele abraço forte e de perfume inebriante, Gabrielle deixa escapar os violentos soluços que vinha segurando. Timidamente circundou a cintura de Xena com seus próprios braços e fechou os olhos. Desejou que Kronos lhe permitisse parar o tempo ali – ou até mesmo morrer naquele instante. Mesmo que tivesse que sofrer o resto da eternidade, queria morrer naqueles braços, onde toda a dor e confusão que habitava seu coração sumiam. Então se lembrou da lenda das almas-gêmeas:

Havia uma parte, desconhecida para a maioria, que dizia que o reconhecimento entre duas almas irmãs era imediato, e que quando estavam assim, entrelaçadas, o sentimento de paz e tranqüilidade era arrebatador.

Riu de sua própria idiotice; era impossível que ela fosse à outra metade de Xena. Alguém como ela, tão, tão… Gabrielle!

Aspirou profundamente o perfume de Xena, tentando memorizá-lo.

Uma estranha sensação de relaxamento veio à tona. Entretanto, seu corpo mal teve tempo para isso, pois logo aquela massa quente que ela estava abraçando foi substituída pelo frio da noite. Abriu os olhos e foi de encontro ao azul infinito, que mantinha uma mal-disfarçada angústia suplicando ali.

– Então, vai me contar o que está acontecendo ou não, hein? – pediu docemente Xena.

– Apenas… responda minha pergunta: você ainda ama ou não Marcus?

Xena se pôs tensa novamente. Percebeu que por mais que tentasse, não poderia fugir da insistente – e maravilhosa – loirinha que estava a sua frente.

Analisou rapidamente suas opções tão escassas quanto o calor daquela noite. Resolveu, então, usar de toda a sinceridade que possuía em seu coração, já que todos diziam que esse era sempre o melhor caminho.

– Sim, eu o amo, mas…

– Mas? – perguntou uma impaciente Gabrielle.

– Eu amo você também, Gabrielle. – a barda quase gritou. Não, não era possível… Xena estava se declaran… – Você é meu lar, minha família, e tudo de mais importante que eu tenho hoje. – decepção, novamente.

Desviou o olhar para o chão, lutando incessantemente contra as lágrimas que teimavam em vir, dessa vez com muito mais força.

Teria de aprender, mesmo de um modo tão duro, que a vida não é só sonhos. A realidade sempre é o outro lado da moeda. Mas, nesse momento, admitia para si mesma o quanto infantil era para assuntos de natureza tão normal, mas ao mesmo tempo um tanto complexos.

Não conseguiu segurar alguns soluços, e Xena percebeu, mas fingiu não ver.

– Amor… – sussurrou a guerreira, fazendo a barda fixar sua atenção nela. – Você fala sobre tentar encontrar sua árvore na floresta, seu Caminho… mas pra mim, você é o meu Caminho.

Gabrielle encara Xena surpresa. Era paranóia sua ou… Aquela frase tinha múltiplos sentidos?

Tentou captar, de todos os modos possíveis, os sentimentos e significados que Xena poderia ou havia dito. Porém, não obteve sucesso. Um ponto de interrogação se formava tanto em seu coração quanto em sua cabeça.

Xena se deu conta do que havia dito e gelou. Será que Gabrielle iria desconfiar? Amaldiçoou a si mesma por ser tão impulsiva a esse ponto. Se perdesse Gabrielle, além de perder a luz de sua vida, faria a si mesma perder a vida; não poderia suportar. Aquela menina fazia parte dela agora, e não poderia sequer ter o pesadelo de que a poderia perder por conta de seus tolos sentimentos.

Entretanto, Gabrielle havia dito a certo tempo que o bem-estar dela era o que mais importava em sua vida. Então… Seus sentimentos não eram tão insignificantes assim, ao menos pra Gabrielle. Estranho… Era neurose sua ou isso transcendia os limites da amizade?

Oh, droga!

Colocou uma mão na bochecha da barda, tentando afastar esses pensamentos malditos e se concentrar no seu maior problema agora: a dor de Gabrielle.

– E então…? Vai me contar o que se passa com você?

– Eu… não estou muito a fim de falar sobre isso, Xena.

– Então pode pelo menos me responder por que me perguntou isso? – A loira gelou.

Sentiu que de forma alguma poderia escapar agora. O tom de Xena dizia claramente que ela só desistiria quando a barda respondesse sua pergunta.

– Vamos lá Gabrielle. Eu respondi sua pergunta, tenho direito de ter minha pergunta respondida também.

– Xena, eu…

Num repente, a porta se irrompe aberta e Joxer entra alegre e sorridente como de costume.

Pela primeira vez em toda sua vida – e como nunca havia imaginado de acontecer -, a barda agradeceu por ele interromper um dos \”momentos\” dela com Xena.

– Garotas, aí estão vocês! Estive procurando por toda a estalagem.

– Joxer, o que você quer? – pergunta uma impaciente Princesa Guerreira.

– Calma Xena! Eu só vim aqui pra desejar boa noite as minhas duas grandes amigas! – o \”guerreiro\” abriu os braços e fez menção de ir em direção à cama, mas fora permanentemente impedido por um olhar de Xena que seria capaz de coalhar o leite dentro de uma cabra.

Ele se interrompe imediatamente, desconcertado, e coça a nuca desviando o olhar, tentando se corrigir:

– Ahn… Bem… já estou indo pro meu quarto. Se precisarem de Joxer, o Poderoso, sabem onde me encontrar. – tão rápido quanto havia entrado, ele sai pela porta e a fecha.

Quando Xena e Gabrielle olham uma para a outra, quase que soltando um suspiro aliviado, a porta se abre novamente:

– Ah, e não esqueçam de trancar as janelas e a porta – a porta se fecha.

Não se passa três segundos para ela se abrir novamente:

– Tomem cuidado pras bacantes não pegarem vocês. – a porta se fecha.

Um momento depois ela abre mais uma vez:

– E lem… – antes que ele possa dar mais uma \”recomendação\”, Xena se estica e pega um pequeno pote de barro, que continha água, em cima da mesa ao lado da cama, e o joga contra Joxer.

O moreno se encolhe quando o objeto explode na parede, há menos de cinco centímetros de sua cabeça. Ele engole seco, assustado:

– Tu-tudo bem… E-eu já estou indo. Até amanhã! – a porta se fecha, dessa vez definitivamente.

Xena se deita na cama, cansada e com uma expressão impaciente. Era melhor deixar aquela discussão com Gabrielle para o outro dia, onde teriam muito mais tempo e cabeça. Joxer havia feito o favor de acabar com o clima da conversa.

Fechou os olhos, enquanto era observada por uma atônita Gabrielle, que ainda estava paralisada tanto pela conversa que havia tido com Xena quanto pela cena que desenrolara diante de seus olhos.

Quando a loira retorna a si e começa a se levantar, bocejando, Xena a segura pelo pulso e abrindo os olhos diz:

– Onde pensa que vai?

– Vou para a minha cama. – a guerreira se apóia nos cotovelos para ficar com seu rosto mais próximo ao de sua parceira.

– Eu não acho que você esteja bem o suficiente para isso. Eu não sei, você pode ter algum pesadelo… – disse, tentando esconder o desconcerto.

– Está sugerindo que eu durma aqui? Com você? – os olhos da barda brilham, com o desconhecido motivo de ser por surpresa ou extrema alegria.

Quem sabe se haveria alguma chance de descobrir os sentimentos de Xena daquele modo. E poderia até mesmo ter a chance de sua vida. Ah, mas que bobagem. O que importava é que finalmente poderia dormir perto de quem realmente amava.

Xena cora e fica sem graça:

– Se é assim que você interpretou… – a loira praticamente se atira nos braços da morena, empurrando-a deitada de volta na cama. – Ôua!

Xena se sentiu indescritivelmente em um sentimento de familiaridade e conforto. Porém, teve a sensação de estar usando Gabrielle… Besteira! Era óbvio que a barda adorou aquela proposta pelo modo que a recebeu. Aliviada e sorrindo, Xena passa um braço por baixo do pescoço de Gabrielle, para servir-lhe de travesseiro. Com o mesmo, fica a fazer um doce cafuné na barda, que havia deitado a cabeça em seu ombro. Sua outra mão segura o cotovelo de Gabrielle, que estava com o braço estendido por cima do ventre de Xena, como se incentivando a loira a se agarrar nela.

E assim as duas adormeceram. Gabrielle ainda martelava em sua cabeça aquela misteriosa frase de Xena. Porém, ambas não haviam percebido o vulto que rondava a janela do quarto delas…