Olho para os sulcos em minhas mãos formando rugas profundas que contrariam qualquer expectativa de chegar à idade que cheguei. Minhas mãos agora estão tão mais fracas… não consigo mais me pendurar em ressaltos providenciais da arquitetura dos castelos e palácios, nem segurar firme uma corda que aguente meu peso durante uma fuga. Não tenho mais o vigor ou o galanteio que um dia eu ostentei tão orgulhosamente, mas eu tenho lembranças, e elas são a riqueza mais preciosa que posso me orgulhar de possuir.

Hoje, me falta agilidade para performar os mais mirabolantes truques que um dia indignaram e até mesmo impressionaram tantas vítim…digo, pessoas. Mas o que mais pesa, não é a perda da minha força física ou sagacidade, mas sim as pessoas que deixei pelo caminho.

Eu poderia começar falando sobre elas, a minha dupla dinâmica favorita. Xena e Gabrielle sempre me entenderam, como poucas pessoas o fizeram. Sempre souberam que minhas empreitadas nunca foram por riqueza ou maldade, mas pela simples arte de ludibriar e ainda que em grande parte das situações, discordassem veemente dos meus métodos, sempre demonstraram respeito para com minha pessoa. Me entristeci profundamente quando soube o que havia ocorrido com aquela guerreira, e de maneira ainda mais intensa quando soube se tratar de uma escolha dela. Que fardos emocionais alguém poderia carregar para escolher renunciar a tudo que lhe fazia feliz?

Confesso que ainda hoje espero em alguma ocasião qualquer, trombar com a minha barda favorita e ouvir dela o pedido para que juntos possamos sair em algum plano mirabolante para trazer Xena à vida novamente. Nem sei se isso ainda é possível, honestamente, mas se em algum momento ela pedisse, eu iria sem hesitar. Eu faria qualquer coisa por aquelas duas, porque foi através delas que conheci aquele que foi o alvo do meu afeto silencioso durante anos.

É embaraçoso admitir que nem sempre o tratei bem, talvez como uma defesa para que meus sentimentos não transparecessem, talvez como um modo de dizer a mim mesmo que eles sequer existiam. Eu jamais ousaria vocalizar a admissão do que passei a nutrir por aquele indivíduo, não pelo temor das reprimendas ou os olhares acusadores que sei que receberia. Eu realmente não me importaria. Qual o parâmetro de moralidade que poderia ser usado para julgar O REI DOS LADRÕES? Amar jamais seria um crime maior do que roubar, ao menos do meu ponto de vista. Mas a razão de eu jamais ousar uma confissão de sentimentos é que seria criminoso – muito mais do que amar ou roubar – alguém ousar macular a ingenuidade quase ignorante daquele coração tão puro e valente.

E eu realmente falo sério quando me refiro à sua valentia, que em muitas ocasiões foi motivo de riso entre muitas pessoas. É fácil se lançar numa luta sabendo que suas habilidades lhe dão grande chance de sair vivo dela, mas é necessário uma lealdade quase cega para entrar numa briga por seus amigos, sabendo que suas chances não são as melhores. Eu realmente não sei o que se passava naquela cabeça, acho que em muitos momentos ele mesmo sequer entendia. Mas se alguém precisasse de ajuda, ele estaria lá, como um herói, que não tinha nada de muito heróico além de sua lealdade e sua vontade de ajudar.

O respeito que ele merecia, muitas vezes demorou em lhe ser direcionado, muitas vezes falhou miseravelmente em lhe ser entregue, mas isso jamais mudará a pessoa que ele foi.

Eu admirei silenciosamente aquele sorriso que tentava convencer o mundo de que ele era o mais temido dos guerreiros, no fundo sabendo que realmente não era. Eu amei silenciosamente aqueles olhos gentis que jamais refletiram vontade real de machucar ou lesar alguém. Eu encarei discretamente, aquele corpo que estava longe de ser um exemplar do que se encontraria numa academia de guerreiros, mas por alguma razão ainda assim me atraía. E eu sinto falta de todas essas coisas que jamais tive. Pelos deuses, eu sinto falta até mesmo daquele estúpido chapéu pontudo e do sacolejar daquela armadura desengonçada que anunciava de longe sua presença. Até mesmo das inúmeras versões de sua música que Gabrielle sempre considerou pavorosa e que ele insistia em cantar em uma de suas tentativas falhas de conquistá-la, completamente alheio ao fato de que o coração dela pertencia à Xena.

Verdade seja dita, eu tive muitas pessoas em minha cama durante as décadas passadas, fazia parte da minha lábia ser um conquistador, mas eu jamais nutri qualquer sentimento tão profundo quanto nutri por ele. Provavelmente a total impossibilidade de tê-lo seja o motivo de eu amá-lo até hoje e em algum nível, ainda sentir o luto por saber de sua partida.

Eu desisti já faz algum tempo de tentar entender todos os imbróglios que permeiam toda essa história de Xena e Gabrielle ficarem congeladas por 25 anos e terem uma filha que cresceu para se tornar uma tirana a ponto e tirar a vida de alguém como ele. Tudo que sei é que ele se foi, e que eu daria qualquer coisa para tê-lo visto grisalho e com rugas como as minhas uma última vez.

Nossas últimas palavras trocadas foram na ocasião do Aniversário de Gabrielle, há mais de três décadas atràs – e ainda assim, lá está ela, com não mais do que 35 anos. Ultrajante eu diria. – e depois eu nunca mais o vi por total responsabilidade minha. Até mesmo o Rei dos Ladrões foi pego em algumas ocasiões e precisou sair de cena.

Passei anos exilado no norte africano – onde reuni muito ouro, diga-se de passagem – e quando retornei ao território Grego com esperança de rever todas aquelas pessoas que um dia significaram algo para mim, tudo havia mudado brutalmente.

Soube que ele e Meg haviam se casado. Bastante previsível, eu diria. O que ninguém poderia prever é que disso surgiram três filhos. Fico feliz por eles, e nem me atrevo a dizer que sinto meu coração partido, pois jamais confessaria meus sentimentos e mesmo se um dia, forçosamente o fizesse, sei que jamais seria correspondido. Consigo até imaginar qual seria sua reação boba diante de tal fato, com o peito estufado em orgulho por ser o alvo da afeição de alguém, seguido quase que imediatamente da careta engraçada ao perceber que esse alguém seria eu.

Outras coisas também mudaram… Minha doce amiga Cyrene se foi… Xena se foi… (eu confesso que nao sei por quanto tempo)… Gabrielle está em algum lugar desse território extenso demais para um velhote como eu sair procurando. Eu soube que Salmoneus desistiu de ser um vendedor ambulante e resolveu gerenciar sua própria granja de codornas domésticas, o que provavelmente é muito mais seguro para um velhote da idade dele. Hercules ainda está por aí, estranhamente jovem, batendo em bandidos e ladrões. Honestamente nunca gostei dele. Moralidade demais. E por fim também ele, na tentativa de um último ato heróico de acordo com o que ouvi, também partiu.

A única coisa que não mudou e dificilmente mudará é esse sentimento platônico insistente que teima em se fazer presente. Quem sabe um dia, se eu topar com ele nos Campos Elíseos (será que eles ainda existem?), possamos finalmente falar sobre isso. Por hora, enquanto me resta vida nesse corpo cansado, me contento em saber que os mortos podem ouvir nossos pensamentos. Então, Joxer, meu eterno rapaz ingênuo com coração de leão, saiba que você cometeu o maior roubo de todos os tempos. Você conseguiu roubar o coração do Rei dos Ladrões.