Parte I
por Fator X - LegadoPARTE 1
PRÓLOGO
Charleston, 1866
Todos aguardavam a noiva chegar, principalmente ela.
O altar havia sido improvisado sob a sombra de um imenso carvalho, uma idéia de Audrey. Todo decorado com lírios e rosas brancas, para o qual convergia um tapete vermelho. Os convidados, em suas melhores roupas, aguardavam o início da cerimônia sentados em bancos dispostos dos lados do tapete, com sorrisos de expectativa, alguns cochichando sobre a demora da noiva.
Vivien olhou em volta, com as mãos cruzadas diante do corpo, sentindo o coração em tumulto pela ansiedade e a sensação que estava cometendo um crime. Era uma farsa que ia concretizar-se, mas somente ela sabia disso: ela era o noivo!
Mas quem diria que ela não era um homem, vendo aquele rapaz de alta estatura, esguio e de ombros largos, cabelos negros cortados curtos, vestido com um terno escuro numa pose imponente? Certo, sua pele imberbe do rosto não era um sinal de masculinidade, nem os lábios cheios e naturalmente vermelhos. Porém, o queixo angular forte e o olhar determinado e direto, demonstravam força e coragem, dons que as pessoas costumavam associar aos homens somente. A força de seu olhar, seus gestos firmes e secos, eram outros atributos masculinos.
Não, ninguém suspeitava da masculinidade do noivo. Ainda mais que seu passado era repleto de conquistas femininas.
Vivien comprimiu os lábios, lembrando desse detalhe. Era uma fama que a aborrecia, mas nada podia fazer. Herdara isso de seu irmão, como herdara também toda a vida dele: o nome, a identidade sexual, suas fraquezas, seu passado. E agora, seu futuro.
E Audrey faria parte de desse futuro. Somente isso já valia os riscos que correria. Estava jogando com toda sua vida pelo prêmio de ficar com Audrey.
Os acordes da orquestra contratada se fizeram ouvir, tocando a marcha nupcial. Isso era o sinal que a noiva estava chegando. Vivien olhou para trás, e engoliu em seco, nervosa e emocionada.
Lá vinha ela! Linda no vestido de noiva branco, os cabelos louros presos numa grinalda de flores, aproximando-se de braço dado com o pai. Vivien ficou fitando-a, imóvel pela emoção.
O rosto de Audrey estava grave, os olhos verdes fitando-a com certa desconfiança, como se soubessem de sua verdadeira identidade. Mas Vivien sabia que eles apenas espelhavam a desconfiança de uma mulher que ia casar-se apenas para livrar-se da desonra e ruína da família, mesmo sem amar o noivo.
Vivien desceu o degrau e foi ao encontro dela, estendendo a mão. Audrey apoiou a mão na sua, deixando-se conduzir ao altar. Seus olhares se encontraram e Audrey contraiu o rosto, demonstrando que o toque de suas mãos havia produzido nela alguma sensação. Vivien não sabia se essa sensação era de repulsa ou atração. A mão dela estava gelada.
Vivien soltou a mão dela e olhou para a frente. O padre Weston começou a cerimônia, com sua voz de barítono.
Vivien respirou fundo. Agora não tinha mais volta. “Consummatum est”.
Charleston, 1857
Os gêmeos Talbot eram membros de uma das mais tradicionais famílias de Charleston. Vicent e Vivien, filhos de Charles Talbot, dono de uma fortuna, com terras com plantação de algodão e negócios de exportação em New York.
Charles Talbot vivia mais em New York que em Charleston, onde residia sua família. Alegava que os negócios em New York exigiam mais sua atenção. Só vinha em casa de quinze em quinze dias. Mas um dia sua mulher Helen descobriu que junto aos negócios, ele tinha uma amante em New York. A mãe de Vivien nunca comentara nada, mas Vivien percebia que a mãe sofria silenciosamente, amargurada. Mal se alimentava e acabou por contrair uma tuberculose, fazendo-a falecer prematuramente aos trinta anos de idade.
Vivien e Vicent, que eram unidos, ficaram mais ainda depois da morte da mãe. E com o pai quase sempre ausente, eram companhia constante um do outro. brincavam juntos e Vivien tinha prazer em vestir as roupas do irmão para confundir as pessoas. Com os cabelos presos sob um chapéu e vestindo roupas dele, todos a confundiam com Vicent, devido à sua semelhança extrema.
Os dois se divertiam com isso e pregavam várias peças nas pessoas. Era comum Vivien ocupar o lugar do irmão em tarefas que ele não queria fazer, em brincadeiras com os amigos dele ou com os criados. Depois trocavam impressões sobre as peraltices, rindo muito das pessoas enganadas.
Criou-se entre eles uma cumpricidade que ninguém conseguia destruir.
Eram gêmeos idênticos, com excessão do sexo. Ambos de cabelos negros e lisos, penetrantes olhos azuis, feições aristocráticas e corpos esguios e altos.
Vicent, porém, era bem menos impetuoso que a irmã. Ele não tinha a coragem dela. Vivien ousava cavalgar potros bravos disfarçada com as roupas de Vicent, enquanto ele detestava cavalos. Mas como ela trocava de identidade, todos acreditavam que Vicent era um cavaleiro intrépido, um verdadeiro Talbot, o orgulho do pai.
Vicent também odiava caçar, tinha medo de armas de fogo. Mas Vivien o substituía no esporte, tendo uma vez abatido um lince que andava pelas redondezas abatendo ovelhas. Esse feito enchera Charles Talbot de orgulho e ele mandara fazer uma taça para o filho com a inscrição:
TROFÉU À VICENT TALBOT DE HONRA AO MÉRITO PELO
ABATE DE UM LINCE ASSASSINO DE OVELHAS.
Vicent o recebera com um sorriso de satisfação, mas à sós com a irmã, olhou-a com humildade e desabafou:
-O que seria de mim sem você, Viv ? Um covarde, um garoto medroso que todos ririam! Esse troféu não me pertence, por direito deveria ser seu! Sabe, tenho vergonha cada vez que você veste minha roupa e realiza um ato de coragem como esse, que eu jamais teria coragem de fazer! Eu sou uma farsa, Viv!
Vivien o fitou com afeto, apertando a mão dele e dizendo:
-E o que seria de mim sem você, Vicent? Não teria a liberdade de fazer as coisas que gosto, porque sou mulher, e seria infeliz!Assumir sua identidade permite-me fazer um monte de coisas! Sabe bem que nosso pai não me permitiria montar um potro bravio, ou ir à caça com ele e seus amigos! Sou uma garota, e às garotas nada disso é permitido!Você não tem que se sentir envergonhado, mas feliz, por dar-me a chance de fazer o que gosto!
Ele a fitou sorrindo e fizeram um pacto de ajuda mútua. E Vivien continuou a usar a identidade do irmão para usufruir a liberdade de fazer o que gostava.
E então, Charles Talbot tornou a casar-se. A nova mulher era Sherry Mallory, uma inglesa de temperamento frívolo e sem a menor paciência para lidar com os atribulados gêmeos. O resultado foi ela recomendar ao marido que internasse os dois filhos em escolas distantes, convencendo-o que um Talbot tinha que aprender boas maneiras e ser bem educado para fazer jus ao nome ilustre. Vivien foi para uma escola para moças ricas em Atlanta e Vicent para uma de rapazes, em Oxford, Inglaterra.
Para Vivien, acostumada aos espaços livres dos campos de sua querida Charleston, a disciplina rígida da escola, seus aposentos escuros e gelados e as preceptoras sisudas que proibiam quase tudo às jovens sob seus cuidados, a tornavam extremamente infeliz. E sua personalidade até então risonha e descontraída transformou-se, trazendo à tona uma rebeldia e insolência que nem os piores castigos pareciam atenuar. Foi expulsa dessa escola e foi mandada para outra, e assim sucessivamente, no período de três anos.
Na quinta escola, fixou-se por um ano, um recorde. Estava agora com dezessete anos e seu corpo e personalidade se transformaram. Alta para uma mulher, o corpo se tornara atlético pelos exercícios que fazia com alteres, escondidos das professoras e inspetoras. O rosto perdera os traços infantis e agora eram marcantes, o olhar direto e atrevido, os lábios com um rictus de orgulho, o queixo forte erguido arrogantemente. Havia se tornado uma bela moça, com seus profundos olhos azuis, os bastos cabelos negros, a boca de lábios cheios e vermelhos, fazendo um vivo contraste com a pele alva. Mas seu tipo não era o de uma mocinha frágil, e sim inspirava força, se impondo entre as outras moças.
Era a líder da turma em qualquer atividade que exigisse iniciativa, inteligência e coragem. Ela havia canalizado sua rebeldia impetuosa para vencer competições esportivas e intelectuais e também para repudiar todos os pensamentos que as preceptoras tentavam incutir em todas as moças: que devia se preparar para ser uma dama e uma prendada dona de casa, quando se casasse. Que tinha que ser uma dama, vivendo estritamente dentro das etiquetas que distinguiam uma dama de uma mulher sem classe, das baixas camadas da sociedade.
Vivien aprendera com a idade a não externar seu desacordo com aqueles ensinamentos que considerava ridículos para ela. Ser uma dama não era seu objetivo. Viver sob regras que restringiam sua liberdade de fazer o que gostava não estava em seus planos. E o simples pensamento de um rapaz a beijando a fazia ter estremecimentos de nojo, quanto mais casar com um!
Já quando via uma bela moça… ah, beijar uma delas deveria ser bem agradável! Admirava suas peles macias, desprovidas de barba, a delicadeza das curvas femininas e das mãos , a graça que um homem não possuía. Não entendia como as moças que a cercavam falavam em seus sonhos de casamento com um homem, de como eles as atraíam. Mas não era uma idiota para externar seu desacordo. Sabia que era talvez a única que discordava delas e não queria ser discriminada. Guardava seus pensamentos para si mesma, escondendo seu desejo crescente pelo mesmo sexo.
Mas então teve sua primeira experiência sexual.
Bertha Wesmiller era uma garota de sorriso malicioso e nada ingênua. Havia sido admitida na escola há um mês, transferida de outra. Ela desde que havia visto Vivien, se aproximara dela e logo se tornaram amigas. E numa certa noite havia se levantado de sua cama e se metera entre as cobertas de Vivien, que despertou assustada, mas logo sentiu a boca quente de Bertha sussurrar em seu ouvido, espremendo o corpo contra seu:
-Quero ser sua, Vivien…
Vivien sabia que aquele ato era proibido e passível de severa punição. Se as descobrissem, podiam até serem expulsas do colégio. E por isso, a coragem de Bertha a agradou, porque desafiar as regras do colégio era uma coisa rara naquelas mocinhas que pretendiam ser uma dama. Isso, junto ao fato que Bertha era uma lourinha bonita e atraente.
Bertha a abraçou pelo pescoço, puxando-a contra o corpo quente e macio, dizendo baixinho em seu ouvido:
-Você é tão forte e decidida, Vivien… tem a mesma força e inteligência de um homem… estou muito atraída por você… vamos fazer de conta que você é um rapaz? Você vai gostar, tenho certeza…
E os lábios quentes e macios de Bertha se esmagaram contra os seus, sem esperar resposta.
Vivien estava surpresa, mas não empurrou a atrevida garota porque algo em seu íntimo explodiu com aquele beijo. O toque dos lábios de Bertha era delicioso, o corpo se apertando contra o seu provocava ondas de desejo, que a fizeram querer mais. Ela também se apertou contra Bertha, abraçando-a pela cintura, sentindo-a abrir as pernas para seu corpo se encaixar, enquanto Bertha penetrou sua boca com uma língua aveludada, aprofundando o beijo. E comandada pela voz de Bertha, que a orientava baixinho entre suspiros e gemidos, Vivien possuiu uma moça pela primeira vez, tentando não fazer muito ruído e não expor seus corpos nus, cobrindo-se com a coberta . Bertha não parecia ser mais virgem. Mandou Vivien penetrá-la com os dedos e quando Vivien colocou apenas um, com medo de machucá-la, ela tomou sua mão e pegou três dedos, empurrando-os em sua vagina quente, macia e molhada.
A garota cruzou as pernas em suas coxas, prendendo-a contra si, movendo o corpo frenética, gemendo baixinho. Vivien estava encantada pelo ato. Aquele corpo macio, quente e perfumado se movendo contra o seu, o cheiro de sexo, os gemidos de Bertha, as mãos macias deslizando pelas suas costas, a boca faminta sugando a sua, seus dedos no interior daquela garota quente, tudo a fez sentir a certeza que era disso que gostava, o que desejaria para sempre. Ela gostava de mulher e nunca deixaria um homem tocá-la.
-Agora… – Arquejou Bertha, o corpo rígido – Agora!
Bertha estremeceu violentamente no auge do prazer, as mãos apertando os braços de Vivien. E ela também explodiu junto com Bertha em um orgasmo poderoso, que quase a fez perder os sentidos.
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Nas noites seguintes, Bertha não deixou de ir para sua cama. E cada noite, ela ensinava mais a arte de amar à inexperiente Vivien.
Os dormitórios do colégio eram compostos por dez quartos com três garotas em cada. E numa noite, a outra colega de quarto, que já havia percebido o que se passava pelos gemidos que Bertha já não procurava conter na febre da paixão, resolveu participar. Interrompeu as duas no meio do ato falando para Vivien, que a encarou rubra de vergonha:
-Também quero participar da festa… pelos gemidos de Bertha, você deve ser muito gostosa… se não quiser, conto para a inspetora.
Vivien ia dar uma resposta malcriada, mas Bertha a pegou pelo rosto, fazendo-a fitá-la.
-Faça com ela também, Vivien – Cochichou em seu ouvido – Ela vai ficar de bico fechado e você possuirá outra garota bonita.
Vivien à princípio ficou decepcionada. Pensou que Bertha estava apaixonada, como ela. Mas logo a decepção foi substituída por raiva. Muito bem, Bertha não estava ligando que ela tivesse sexo com outra garota, porque sua relação com ela era apenas desejo sexual. Pois mostraria à ela que também não sentia nada mais que sexo. Olhou para Mirna. Era uma garota bonita. Cabelos negros longos e lisos, rosto delicado, magra. Não era tão bonita quanto Bertha, mas tinha seu encanto.
-Está bem – Disse, levantando-se da cama e estendendo a mão para a garota, sem vergonha de sua nudez. O olhar de Mirna a percorreu com fome e isso a excitou. A garota caiu em seu braços em um beijo faminto e Vivien a despiu rapidamente. Caíram na cama sob o olhar excitado de Bertha.
Vivien possuiu a garota, percebendo que Bertha se masturbava fitando-as. E nas próximas vezes, Vivien foi saciada e saciou seu desejo com as duas quentes garotas se alternando em seus braços.
Com o tempo, Vivien enjoou do sexo com as duas garotas. Não estava mais apaixonada e aquela ligação apenas satisfazia suas ânsias sexuais. Então, voltou os olhos para outras mocinhas.
Não foi difícil conquistar as garotas pelas quais se interessava. Era jovem, bela, inteligente e dona de uma personalidade dominadora e envolvente. Sua tática era direta, com poucas palavras e muita ação. E as garotas carentes não ofereciam resistência à sedução de Vivien.
É claro que essa conduta foi percebida por outras garotas que não aprovavam o comportamento de Vivien. E suas ações foram parar nos ouvidos da diretora. E Vivien foi mais uma vez expulsa do colégio. Por sorte sua, a diretoria achou melhor não contar ao pai dela o motivo real da expulsão. Isso seria uma admissão que haviam falhado na guarda de uma mocinha que devia permanecer pura. Alegaram indisciplina extrema e mau exemplo para as outras mocinhas.
Seu pai foi buscá-la no colégio com surpreendente bom humor. Olhou-a e a abraçou com um largo sorriso, dizendo:
-Viv! Como cresceu! Está uma moça linda!
Vivien suspirou aliviada. E na viagem de volta, entendeu o motivo daquela alegria. Seu pai explicou que estava arrependido de ter se casado com Sherry. Ela era uma mulher que só pensava em festas, jóias e vestidos novos, bem diferente de sua falecida Helen. Não ligava para administrar a casa, era temperamental e não gostava dos seus filhos. Ele havia demorado a perceber isso, mas agora estava de olhos bem abertos e queria a companhia dos filhos novamente com ele. Já havia mandado buscar Vicent há um tempo atrás e quando chegassem em casa, ele já estaria lá esperando-a.
Vivien quase chorou de alegria. Ia voltar a morar em Charleston! Ia voltar a conviver com o irmão!
Quando chegou em casa, depois de quase um dia de viagem de trem, foi recebida pelos criados e por Vicent, que a esperava na porta da mansão. Olharam-se com saudade, procurando ver em que haviam mudado fisicamente.
Vicent continuava alto, mas havia emagrecido no colégio. O rosto continuava quase imberbe, os grandes olhos azuis sobressaindo no rosto de traços aristocráticos, os cabelos negros em mechas caindo pela testa. Notou que os olhos dele haviam perdido a inocência que via neles. Era agora um olhar um tanto cínico, de homem feito. Mas ainda se pareciam assombrosamente, apesar de Vivien agora usar o cabelo bem mais comprido que o dele. Para serem confundidos agora, ela teria que cortar dois terços do comprimento de seus cabelos e usar algo para disfarçar seus seios, e isso estava fora de questão.
Depois de momentos de contemplação, se abraçaram rindo.
-Viv, como cresceu! Parece que não a vejo há um século! Está uma moça linda!
-E você está um homem feito, Vicent!
Vicent afastou-se, fitando-a sorridente.
-Tenho tanta coisa a contar, tantas perguntas a fazer!
Charles Talbot interferiu, rindo.
-Vocês terão todo tempo do mundo para isso, mas vamos entrar, que essa viagem deixou-me exausto!
Vivien concordou, sorridente:
-Está bem, estou mesmo precisando de um banho e umas horas de descanso.
-Encontre-nos na hora do jantar, Viv – Disse o velho Talbot – E todos colocaremos nossos assuntos em dia.
Entraram na mansão, com os criados perfilados saudando Vivien. Ela apertou a mão de cada um e abraçou a velha Mooke, sua antiga ama, que agora era a governanta da casa.
-Mooke! Vai continuar cuidando de mim?
A velha Mooke sorriu, o corpanzil tremendo de emoção.
-Claro, minha menina! Sua velha Mooke está aqui para o que der e vier! Arrumei seu quarto, está como deixou. Venha, venha tomar um banho quente e trocar essa roupa empoeirada!
Vivien a seguiu até o segundo pavimento, subindo a larga escadaria de mármore.Entrou no quarto olhando cada detalhe com saudade. Estava novamente em casa. Nunca mais sairia dali.
Despiu-se ajudada por Mooke e entrou na banheira esmaltada . A velha a olhou apreciativamente.
-Você está uma linda moça, miss Vivien! Cresceu muito, como seu irmão!
Vivien sentiu a água quente rodear seu corpo deliciosamente. Suspirou de alívio.
-Esses malditos espartilhos me deixam com a pele cheia de riscos vermelhos, Mooke! Não vou mais usar essa droga! Marca meu corpo e incomoda, mal posso respirar!
Mooke a fitou reprovadoramente, passando uma esponja em suas costas.
-Não pode fazer isso, miss!Uma lady tem que usar espartilho!
-Não preciso disso! – Declarou Vivien, teimosamente – Tenho cintura fina, não preciso apertar a barriga como as matronas!
-Menina teimosa!
-Mudemos de assunto, Mooke…quais são as novidades?
Mooke deu uma curta risada.
-Seu irmão vai ficar noivo, miss.
Vivien voltou-se, arregalando os olhos.
-Vicent vai ficar noivo?!
-Sim. Ele está apaixonado por Audrey Lancaster.
-Mas, como? Ele estava internado em um colégio, até bem pouco tempo!
Mooke fez uma careta.
-Ele já chegou há mais de dois meses, miss! E já aprontou na cidade, andou frequentando a Casa Vermelha, tudo com a aprovação do pai! É uma pouca vergonha, mas o seu pai acha que o filho é macho e tem que fazer essas coisas.
Vivien ficou olhando para Mooke chocada. Agora entendia aquele olhar cínico de Vicent! Ele havia perdido a ingenuidade da adolescência. Agora ele era um homem feito. Sentiu como se perdesse uma parte de sua relação com o irmão. Ele estava sendo conduzido em sua descoberta do sexo pelo pai, que o colocara nas mãos de Anette Valoy, uma mulher de má fama, que tinha uma casa cheia de mulheres iguais a ela, a famosa Casa Vermelha. Mas, e essa tal de Audrey Lancaster?
-Mooke, como ele conheceu essa moça, Audrey Lancaster? Quem é ela?
-Não lembra dos Lancaster? Eles moram há meia milha daqui. Audrey é filha de Bertran Lancaster, dono de um armazém na cidade.Vicent a conheceu na festa de aniversário de Larry Walker. Ele ficou encantado com ela e o pai da moça o convidou para ir visitar sua casa. Ele estava envaidecido, um Talbot interessado em sua filha!
Lancaster…Vivien lembrava vagamente de uma garotinha de cabelos louros e olhos verdes. Só a vira na igreja uma vez. Os Lancaster eram pouco religiosos e muito reservados. Raramente frequentavam a sociedade local. O chefe da família era um jogador inveterado e beberrão. A sociedade de Charleston não tinha muita simpatia por ele.
Vivien acabou seu banho pensativa. Enxugou-se e se recusou terminantemente a colocar o espartilho, mesmo com Mooke ameaçando-a de contar ao seu pai. Ela apenas envolveu seus seios com uma larga tira de pano, para os bicos dos seios não aparecerem sob o vestido.
Todos seus velhos vestidos não cabiam mais nela. Vivien optou por seu uniforme do colégio, blusa branca de mangas compridas, de seda, e saia de sarja preta, cintada na cintura e alargando até os pés calçados com burzeguim (espécie de bota até o meio da perna , fechada com cadarços trançados).
Mooke a fitou com desaprovação.
-Uh,uh… não está vestida como uma lady, miss Vivien. Seu pai não vai gostar…
-Nenhuma roupa dá em mim, Mooke. Amanhã vou mandar recado para a costureira Minnie vir aqui tirar minhas medidas e trazer o mostruário de tecidos para eu encomendar novas roupas.
-Hum! Se sua madrasta deixar! Ela controla tudo agora, miss Vivien!
-Vamos ver, Mooke.
Vivien desceu para o jantar. No salão de refeições, estavam seu pai, sua madrasta e Vicent. Seu pai lhe sorriu alegremente.
-Oh, aí está minha filha, Sherry… veja como cresceu e está linda!Vivien, já ia mandar chamá-la para o jantar!
Sherry Talbot olhou para a enteada com um olhar crítico, da cabeça aos pés.
-Humm, uma bonita estampa, mas ainda falta refinamento e uma certa classe que uma lady precisa ter. Essa roupa, minha querida, está simplesmente horrível.
Vivien a fitou com desdém, sentando-se ao lado de Vicent.
-Então, senhora Mallory, temos um problema nesta casa, porque não vejo em você essas qualidades essenciais em uma lady – Disse, com sarcasmo.
Sherry voltou-se para o marido com ar mortificado.
-Charles, sua filha, além de deselegante, está sendo grosseira! Ela está tratando-me pelo meu antigo nome de solteira e me ofendendo! Exijo uma retratação!
Charles Talbot fitou a mulher com impaciência.
-Você a provocou com o seu comentário – Rosnou ele.
-Mas ela não pode falar assim comigo!
-Vamos parar de discutir e comer! – Disse ele, voltando-se para Mooke – Mooke, mande os criados servirem o jantar!
O jantar transcorreu em relativa tranqüilidade, já que Sherry Talbot se conservou calada e com ar ofendido. Vivien, Vicent e o pai conversaram animadamente. Ela falou ao pai que precisava de novas roupas e ele concordou, permitindo ela chamar a costureira para encomendar os trajes.
No final do jantar, Charles Talbot levantou, despedindo-se de Vivien:
-Bem, agora vou para a biblioteca ler um pouco e fumar um bom charuto. Sei que você e Vicent têm muito a conversar. Boa noite, meus filhos.
Vivien se levantou também, sorrindo.
-Boa noite, meu pai. Realmente, eu e Vicent temos muito a conversar.
-Vamos para a varanda? – Convidou Vicent, fitando-a sorridente –Vamos colocar nosos assuntos em dia.
Sherry também se ergueu, com cara fechada.
-Bem, vou para meu quarto rezar pelas almas perdidas dessa casa! – Disse, se retirando com passos furiosos.
Vicent e Vivien se fitaram, rindo baixinho. Foram para a varanda e se sentaram na mureta da varanda, fitando o pôr do sol. Estava uma temperatura agradável, naquela tarde de verão. Vicent a fitou atentamente.
-Você mudou muito, Viv. Está mais adulta.
Ela o encarou com um sorriso.
-Claro…quatro anos se passaram. Eu cresci, como você.
-Não me refiro apenas à aparência física. Você não tem mais aquele olhar ingênuo. Está agora com um olhar adulto… de quem conhece a vida – Disse ele, sério.
Ela o encarou sem medo.
-Como você? Soube que se transformou em um conquistador, logo que chegou.Que frequentou a Casa Vermelha… e que agora pretende ficar noivo de Audrey Lancaster.
Vivien não pôde evitar uma ponta de reprovação na voz.
Uma sombra de contrariedade passou pelo rosto dele.
-Quem lhe contou tudo isso? Ah, já sei: Mooke. Ela não parece aprovar minhas ações. Só vê a aparência das coisas, mas não o que as motivou.
-Então, diga-me… o que motivou essas ações todas? Isso tudo não combina com a imagem que tenho de você, Vicent. Você era tímido, doce, não consigo vê-lo como um conquistador!
Vicent a fitou com uma chama no olhar.
-Viv, você é quase eu. Fomos gerados juntos, dividindo o mesmo útero, nascemos no mesmo dia e hora. Sempre fomos unidos como unha e carne.Então, tudo que sinto posso falar para você, assim como você pode falar tudo que sente comigo.Entre nós tem que haver uma total confiança e compreensão. Sem máscaras e hipocrisia, não concorda?
Ela o fitou nos olhos e percebeu naquele olhar a velha lealdade e afeto que sempre os unira.Suspirou, aliviada. Ele não mudara tanto assim. Ainda era o seu adorado irmão Vicent, com quem tinha uma cumplicidade total.
-Concordo, Vicent. Eu nunca terei segredos para você, nem você para comigo.Porque um sempre entenderá o outro.
Ele suspirou, passando a mão pelos bastos cabelos.
-Quero que você entenda, Viv: eu sempre a usei como escudo. Você tomava o meu lugar em coisas que eu não era capaz de fazer e as realizava, e bem. E eu quem ganhava a fama. O jovem e corajoso Vicent, o caçador, o exímio cavaleiro, o heroi, não existiria se não fosse você.
-Por que está tocando nesse assunto, Vicent? Isso já passou, faz tanto tempo…
-Porque tem a ver com o que eu vou falar.Viv, você nunca imaginou como eu me sentia com você fazendo as coisas para mim?
Ela o fitou desconcertada.
-Não, por quê? Você não gostava?
-Viv, eu adorava o resultado de suas ações, que meu pai pensava terem sido realizadas por mim.Graças à você, meu pai e os seus amigos nunca souberam como eu era medroso e frágil. Eu era considerado o perfeito filho de Charles Talbot, o pequeno e corajoso heroi.Mas havia o outro lado da moeda: em meu íntimo, eu me sentia inútil, um usurpador. Você quem merecia a glória daqueles feitos, ser elogiada por sua coragem, não eu. Eu não passava de um farsante!
-Vicent, eu nunca liguei para isso! – Disse Vivien, chocada – E nunca pensei que você pudesse se sentir dessa forma! Eu fazia aquelas coisas usando seu nome porque gostava de fazer as coisas que me eram proibidas, como caçar, montar, ter a liberdade de subir em árvores, correr pelos campos!Tudo que eu não podia fazer em minha verdadeira identidade! E eu devo isso à você, Vicent! Ter tido aquela liberdade preciosa!
Vicent sorriu com tristeza, fitando-a nos olhos.
-Eu sei que você gostava de fazer aquilo tudo, Viv. Por isso eu me calava, deixando meu pai pensar que era eu. Mas isso não me impedia de me sentir um farsante, um fraco. E então, fomos separados. Fui para o colégio e não havia você por perto para fazer coisas para mim. E foi um duro aprendizado. Tive de brigar com garotos que pensavam que eu era maricas. Apanhei, mas aprendi a defender-me.
Vivien ficou olhando-o, consternada. Havia feito mal à Vicent, ajudando-o a esconder suas fraquezas?
Vicent riu, vendo sua expressão.
-Não fique assim. Tudo já passou. E o saldo foi positivo, meu pai me admira. Mas então, meu pai foi buscar-me no colégio. Cheguei aqui inseguro, com medo de meu pai descobrir que eu não era o filho corajoso que ele imaginava. Mas ele queria outra coisa agora de mim: que eu mostrasse que era macho. E levou-me para a Casa Vermelha. Pela primeira vez, eu iria ter que fazer uma coisa para meu pai orgulhar-se de mim sem a sua ajuda. Isso dependia de mim mesmo. Era um desafio imenso, para mim.
Vivien o ficou olhando, em suspense. E ele continuou, com a voz cheia de orgulho:
-E eu venci o desafio. E com louvor. Descobri que pelo menos em sexo, eu sou muito bom. A mulher depois falou com o meu pai. Disse que eu era um homem e tanto, que ele podia orgulhar-se de ter um filho macho como eu. Meu pai ficou eufórico, saiu falando para todos os amigos. Para mim, foi a maior glória de minha vida. Finalmente, eu conseguira realizar o que meu pai esperava de mim. E confesso que isso inebriou-me, Viv. Eu era bom em uma coisa. E passei a possuir quase todas as mulheres da Casa Vermelha.E nas festas que meu pai promove, conquistei várias moças, embriagado pelo meu sucesso com as mulheres.
-Vicent! Você… possuiu essas moças?
Ele riu, negando com a cabeça.
-Não, não sou um cafageste. Apenas dancei com elas, cortejei. E ganhei fama de namorador. Então, eu vi Audrey Lancaster em uma festa beneficente. Fiquei instantâneamente apaixonado. Dancei uma valsa com ela. Audrey, infelizmente, não acreditou em mim quando falei que estava apaixonado por ela. Disse que conhecia minha fama de conquistador, que eu era o tipo de homem que abominava. Que só estava dançando comigo porque eu havia pedido a dança ao seu pai, o que foi verdade. E quanto mais eu falava em minha paixão, mais ela se sentia ofendida.Disse que eu não a enganaria, como as outras, porque não era idiota.
Vivien o fitou surpresa e intrigada.
-Ela pensou assim de você? Como você conseguiu mudar a idéia que ela tem de você, e aceitar ficar noiva?
Ele a encarou sério.
-Ela não mudou de idéia ainda. Meu pai, à meu pedido, conversou com o pai dela. Pediu a mão de Audrey em casamento para mim. O pai dela ficou radiante e aceitou o pedido. Vamos ficar noivos na semana que vem.
-Vicent! Essa moça não o ama! Não foi ela quem concordou em casar com você, e sim seu pai quem a prometeu! Ela não deve ter sido ouvida, como pode pensar em casar com uma moça que o julga tão mal e não o quer?
-Quando ela me conhecer melhor, ela verá que não sou o que pensa, Viv. E acabará me amando.
-Não é tão simples assim, Vicent. Eu acho que você vai fazer uma loucura. E você é tão jovem! Por que nosso pai concordou com esse noivado ?
Vicent a fitou gravemente.
-Nosso pai está muito doente, Viv. Frequentemente sente falta de ar e desmaia. Ele disse-me que não quer morrer antes de ver o seu primeiro neto.
Vivien sentiu seu coração disparar pela notícia.
-Nosso pai, doente?! O que ele tem?!
-O médico disse que é coração. E o nosso pai é teimoso,não faz nada que o médico recomenda. Come de tudo, bebe, fuma charutos, viaja…
-Oh, céus! E ele quer que você estrague sua vida, casando-se com uma moça que mal conhece e não o ama!
Ele a fitou com determinação. Um olhar que Vivien nunca vira nele.
-Eu quero casar-me com Audrey, Vivien. Ela é a mulher que desejo para mim. E com o tempo, conhecendo-me melhor, ela aprenderá a amar-me.
-Mas você é tão jovem ainda, Vicent! O que viu nessa moça que o enfeitiçou?
-Quando a ver, vai entender-me, Vivien. Ela parece um anjo!
-Bem,Vicent, não concordo com esse casamento. Mas não posso fazer nada, a vida é sua.
-Não se preocupe, Vivien. Vai dar tudo certo. Agora, fale-me sobre você. Quero saber tudo que passou nesses anos em que não nos vimos.
Ela o encarou indecisa. Devia falar? Ele era seu irmão, mas a entenderia? Mas ela nunca havia escondido nada dele. A lealdade e verdade sempre havia sido total entre eles. Não iria mudar isso agora.
Então, ela contou tudo que havia acontecido com ela, somente omitindo os detalhes de sexo. Vicent a ouviu calado, sem um comentário. Vivien falou sem fitá-lo, com medo de ver nos olhos dele a repulsa, a decepção. Quando acabou, fitou-o com receio, esperando que ele a entendesse e não a condenasse.
Para seu alívio, Vicent a fitava com o seu costumeiro afeto.
-Fale alguma coisa, Vicent. – Disse, ansiosa – Diga o que pensa disso tudo que falei.
Ele pegou sua mão e a apertou confortadoramente, fitando-a nos olhos.
-Vivien, eu sempre soube que você era assim. Não estou chocado com o que contou-me, porque já imaginava que você não era como as outras moças.
Ela o fitou surpresa.
-Você já sabia?! Como?!
-Você sempre ansiou em ser um homem, Vivien. Eu notava isso. Você só se sentia feliz quando colocava as minhas roupas e fingia ser eu. Aliás, mais do que isso, você não somente agia como um homem, você se sentia como um.
-Naõ, Vicent! Eu fingia ser você para ter liberdade de fazer o que gostava! Nunca pensei em ser um homem.
Ele sorriu.
-E desejar as mulheres não é mais uma característica masculina?
-Vicent, eu gosto de mulher, mas não me sinto como um homem. Pode entender isso? Eu gosto de ser uma mulher desejando outra.
Ele a fitou em silêncio e depois suspirou.
-Muito bem, você não quer ser homem. Mas gosta de mulher. Já pensou bem no tipo de vida que terá, se agir de acordo com essa tendência sexual? Como conseguirá viver com uma mulher numa sociedade que condena isso como uma coisa vergonhosa e abominável?
-Não sei, Vicent… mas de uma coisa estou certa: jamais me casarei e me entregarei à um homem. Eu preferiria morrer!
-Vivien, tenha certeza que eu saber dessa tendência sua não abalou o afeto que sinto por você. E que terá em mim sempre um irmão fiel, que a apoiará no que decidir para sua vida. Eu e você somos mais que irmãos, somos gêmeos e amigos confidentes. E nada mudará isso.
Vivien olhou para o irmão comovida e agradecida. Ele a entendia e aceitava como era. Isso era mais uma coisa a uní-los.
Vicent ergueu-se e tomou sua mão.
-Vamos entrar. Você deve estar cansada da viagem. Amanhã conversaremos mais.
-Está bem, Vicent. E quando vou conhecer a sua eleita?
-Dentro de duas semanas vai haver a festa de noivado. E você vai conhecê-la.Você vai ver que escolhi a mulher certa.
-Veremos…
No dia seguinte, durante o café da manhã, o pai de Vivien falou de seus planos para os dois irmãos. Vicent iria se iniciar nos negócios da fazenda, depois nos negócios de exportação.
Vicent pediu ao pai para Vivien ajudá-lo nessa tarefa e o pai o fitou atônito.
-Filho, Vivien é uma mulher! Mulheres não cuidam dessas coisas, elas são feitas para casar e ter filhos!
-Discordo, meu pai. Vivien é uma mulher corajosa e habilidosa.Ela poderá me ajudar muito!
-Nada disso! Minha filha não se envolverá em negócios próprios para homem! O destino dela é casar-se. Darei uma festa para apresentá-la à sociedade de Charleston e tenho certeza que logo arranjará um bom pretendente de boa família.
Vivien saiu de seu silêncio, falando em tom decidido:
-Não quero casar-me , pai! O meu futuro eu decido! E não pretendo casar-me com ninguém!
Charles Talbot contemplou a filha com ar divertido.
-Olhem só, a mocinha mostrando as garras! Vivien, não vou obrigá-la a casar-se agora. Entendo que você ainda é muito nova para pensar nisso. Mas quando conhecer um bom rapaz, vai mudar de idéia. E vai me pedir para consentir no casamento, aposto ! Vamos encerrar esse assunto.
Vivien ficou com a impressão que para seu pai ela era inferior à Vicent porque era mulher. Mas iria lutar contra isso. Não seria uma bonequinha idiota que um homem iria escolher para ser uma reprodutora de uma ninhada de filhos. E para isso não acontecer, teve uma idéia. Iria ter uma aparência que nenhum homem iria se interessar por ela.
E a primeira coisa que fez foi chamar a costureira Minnie e encomendar roupas novas, mas nem um só vestido. Blusas de seda, de mangas longas com punhos largos, culotes de várias padronagens de cores neutras, jaquetões de cores escuras. Essas seriam suas roupas, nunca mais usaria vestidos. Somente conservou os cabelos compridos, mesmo tendo cortado eles à altura de cinco dedos abaixo dos ombros.
O pai, quando a viu com os cabelos cortados, torceu o nariz, dizendo que ela havia feito uma loucura em ter cortado as belas madeixas que antes chegavam à cintura.Os homens preferiam cabelos bem longos.
Vivien conservou a expressão inauterável, mas intimamente ria, vendo o pai resmungando e rolando seu charuto entre os dentes.
Sua madastra riu maldosamente ao vê-la e fez comentários depreciativos, que ela ignorou solenemente.
Mas a revolução em suas roupas foi pior para seu pai, que quase teve um ataque apoplético quando a viu com blusa e culotes de montaria, calçada com botas de cano longo.
-Que loucura é essa?! – Vociferou ele – está vestida quase como um homem! Como vai conseguir que um homem se interesse por você, nessas roupas? Perdeu o juízo de vez?!
Vivien o encarou, preparada para enfrentá-lo.
-Isso pouco me importa, porque não quero me casar!
-Vá trocar de roupa agora! Não quero minha única filha vestida desse jeito!
-Não! Eu vou usá-las sempre, porque odeio vestidos! Eu doei todos eles para a igreja distribuir entre as moças pobres!Acostume-se, porque é desse jeito que vou vestir-me de hoje em diante!
Ele a fitou cheio de raiva.
-Pois enquanto não voltar a usar vestidos, não irá a nenhuma festa ou missa na igreja! Nem ao noivado de seu irmão! E não me dirija a palavra, até resolver obedecer-me!
Qualquer moça acharia que o mundo tinha acabado, com aquele castigo. Não ir à bailes, onde eram cortejadas por belos rapazes, onde dançavam e flertavam! Mas para Vivien, isso era um alívio. Só ficou triste por não poder falar com ele. Amava-o e o silêncio desaprovador dele era o seu pior castigo. Mas também sabia que sua decisão tinha um preço a pagar, e pagaria esse preço para ter um pouco de liberdade e não se submeter ao destino de todas as moças de sua época: um casamento imposto pelos pais. E vestir-se como achava melhor era um princípio de liberdade do qual não abriria mão.
Assim, chegou o dia da festa de noivado de Vicent com Audrey Lancaster e ela estava proibida de ir. Vivien estava curiosíssima para conhecer a moça que seria a futura esposa do seu irmão, mas sabia que não podia afrontar seu pai, indo à festa com blusa e culote de montaria.
Vicent veio falar com ela pouco antes da carruagem o levar para a casa da noiva. Ele estava muito elegante em seu terno de veludo negro e camisa de seda branca, com um laço azul escuro. Vivien sorriu para ele.
-Está muito elegante, Vicent!- Disse, com sinceridade.
Ele a fitou com tristeza.
-Tem certeza que não quer ir comigo, Viv? Meu pai não pode impedir, se eu a levar comigo em outra carruagem. Tenho certeza que a família de Audrey a receberá bem, sendo minha irmã.
-Não, Vicent – Negou Vivien, fitando o irmão agradecida – não quero estragar sua festa de noivado. Todos iriam comentar meus trajes e meu pai poderia fazer uma cena, além de brigar com você por levar-me.Não, é melhor eu ficar em casa.
-Oh, minha irmã! Eu queria tanto que você conhecesse Audrey! Mas eu vou trazê-la aqui em casa brevemente e você vai conhecê-la, prometo.Agora, tenho que ir.
-Vá, Vicent. E tenha uma noite feliz, torço por sua felicidade.
Vicent saiu e Vivien ficou pensativa. Estava curiosíssima para conhecer Audrey Lancaster. Será que ela teria a mesma reação das pessoas de Charleston, quando a visse?
Havia saído com Vicent para ir à cidade fazer compras e rever os lugares, e havia notado que as mulheres a fitavam com disfarçada curiosidade e deboche. Ela, de culotes e botas, chamava atenção e despertava comentários. Os homens a fitavam com menos animosidade, atraídos pelo seu belo rosto e corpo escultural, mas mesmo assim eles comentavam com desgosto como uma moça fina e tão bonita podia andar com roupas tão inapropriadas.
Será que Audrey teria essa reação? Pouco ligava para a opinião das pessoas de Charleston, mas Audrey Lancaster era uma exceção. Ela seria a esposa de Vicent, iria morar com a família dele. Queria que Audrey Lancaster gostasse dela e fossem amigas.
Vivien foi para a janela do quarto. Dali podia ver a carruagem de seu pai saindo. E uma idéia passou por sua mente, fazendo seu coração se agitar: e se fosse escondida à casa de Audrey e olhasse a festa sem ser notada? Vicent havia dito que o baile seria no salão principal, e com o calor que fazia, as janelas estariam abertas.
Ela não pensou duas vezes. Adorava uma aventura. Saiu para a sacada e como havia feito tantas vezes em sua infância, desceu pelo velho pé de carvalho que fazia sombra aos quartos, protegendo-os do sol, e se dirigiu para o estábulo. Não havia ninguém lá, o tratador devia ter ido conduzir a carruagem para a festa. Vivien selou um cavalo silenciosamente e saiu pelos fundos da propriedade, para ninguém a ver.
Ela chegou à casa dos Lancaster sem dificuldades. O movimento de carruagens era grande e ninguém reparou no cavaleiro solitário que chegou. Ela amarrou seu cavalo numa árvore perto do jardim e olhou em volta, certificando-se que ninguém prestava atenção nela. Então, aproximou-se furtivamente de uma das janelas abertas e olhou para o interior da casa. Os pés de roseiras e outros arbustos decorativos a protegiam de ser vista por quem passava.
O salão estava cheio, com vários convidados conversando e bebendo. Parecia que ainda esperavam o noivo chegar para iniciarem o jantar. Vivien entendeu. Ela chegara antes da carruagem que conduzia seu pai e irmão porque viera por um atalho, evitando a estrada principal para não ser vista.
Seu olhar percorreu as moças que estavam no salão, tentando advinhar quem era Audrey Lancaster.
Audrey Lancaster esperava a chegada do futuro noivo com conformação.Ela sabia que não adiantava demonstrar que não desejava esse noivado. Seu pai nunca ligara para o que sentia, e não seria agora que iria respeitar o que sentia, diante da chance de casar sua filha com um membro da mais rica e respeitada família de Charleston. A única coisa que seu pai respeitava no mundo era dinheiro e poder.
Então, ali estava ela esperando o seu noivado se concretizar com aquele rapaz que desprezava. Sabia das aventuras dele, todas as moças comentavam entre elas, em reuniões semanais na casa da senhora Peacok, a maior fofoqueira de Charleston.
E ela havia advertido as “puras e ingênuas mocinhas contra o incansável conquistador, que cortejava todas as moças em que pousava os olhos, que havia se tornado o garanhão da Casa Vermelha, tendo dormido com todas as rameiras desse antro de perdição.”
E como se não bastasse o aviso, completou que ele era um rapaz sem nenhuma moral, que faria a infelicidade de quem se casasse com ele.
Audrey sabia que a senhora Peacok falava demais, mas dessa vez, ela estava certa, porque ela mesma havia visto Vicent Talbot de braço dado com uma das espalhafatosas mulheres da casa vermelha, desfilando pela cidade sem nenhuma vergonha! Ele era igual seu pai, que havia matado sua mãe de desgosto! Seu pai havia gastado fortunas em jogo e na Casa Vermelha. Quantas vezes vira sua mãe ir dormir chorando, enquanto seu pai dormia na cidade! E no dia seguinte, ele chegava de ressaca e com as roupas com marcas de baton e exalando perfume forte.
E agora, parecia que seu destino ia ser o mesmo de sua mãe, se casando com um conquistador barato, um frequentador da Casa Vermelha!
O seu olhar caiu sobre um rosto exótico e belo, que olhava para dentro da casa através da janela. Fitou-o atônita.
Era o rosto de uma mulher. Uma mulher assombrosamente parecida com Vicent. Só era diferente nos cabelos longos.Devia ser a irmã gêmea dele.Já ouvira falar nela.Por que ela não entrava? Por que estava ali olhando furtivamente?
Audrey agiu sem pensar. Em passos rápidos, saiu pela porta principal, dirigindo-se para a janela onde a moça estava.
Ela lá estava de costas para ela, olhando para dentro da casa. Audrey admirou-se da altura dela, era bem alta para uma mulher. E o corpo em camisa de seda e culotes, que moldavam a cintura esguia e os quadris empinados e bem feitos, as coxas fortes e pernas longas, tinha uma graça felina que a encantou.
-Senhorita Vivien… – Chamou, parando à poucos passos dela.
Vivien voltou-se agilmente, ao ouvir o chamado daquela voz doce. E viu diante de si a imagem de um anjo.
A moça estava com um vestido azul claro, simples, mas que realçava sua figura esguia. Os cabelos louros emolduravam um rosto delicado, onde nos traços bem feitos se destacavam os olhos verdes e sonhadores, que a luz vinda da janela fazia brilhar. A boca de lábios bem desenhados, rosa-mauve, era o perfeito complemento daquele rosto angelical.
E Vivien caiu instantâneamente de amores por aquela imagem de sonho. Era como se já a conhecesse há anos, séculos, de outra vida. E que a fitando, a reencontrasse, mesmo entre milhares de pessoas.
Audrey a contemplou sem voz. Aqueles olhos incrivelmente azuis pareciam se apoderar de sua alma, se gravando à fogo em sua mente. Deus, que fascínio era aquele que sentia, só em fitar aquele rosto magnífico?
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