PARTE XXI: CONCLUSÃO
por DietrichDisponível mediante solicitação.
“Urine no balde.”
O soldado chamado Planco pisca, atônito, para o balde amassado aos seus pés, e depois para a mulher à sua frente – a ex-Imperatriz, atual Cônsul e louca que provavelmente estava transando com Marco Antônio no convés de baixo enquanto todos eles estavam condenados a morrer pelas mãos de Otaviano. Eles não podiam culpar Marco Antônio, na verdade, e até tinham brincado sobre isso antes: Bem, por que não? Que maneira de ir, com aquela súcubo em cima de você. Mas agora ela estava ali, com Antônio parado atrás dela e sorrindo como se definitivamente fizesse parte dessa piada questionável.
“O quê?” A voz de Planco treme e sobe; ele sabe que mais tarde será motivo de chacota de todos os que estiverem ao alcance de seus ouvidos.
“Está surdo?” Xena rosna. “Urine no balde. Alivie-se.”
“Mas, Cônsul – por quê?”
“Por Zeus, nunca antes tive problemas para fazer um homem tirar o pau das calças!”
Isso finalmente quebra os restos da já duvidosa compostura de Antônio. Ele ri alto. “Bem, sua abordagem é um pouco falha, neste caso.”
“Faça logo”, Xena rosna para o soldado.
Com os olhos bem fechados, esperançoso de que a função mais básica não falhe neste momento crucial, Planco abre as calças e se alivia.
Xena franze a testa ao olhar para o conteúdo fumegante e fétido. “Eh. Isso deve bastar por agora.”
“Tem certeza?” Antônio questiona. “Não é como se estivéssemos em falta, sabe.”
“Ah, cale a boca. Se você tivesse consentido desde o início, eu não estaria importunando sua tripulação por mijo.” Carregando sua inexplicável recompensa a uma distância segura do corpo, Xena volta para o convés de baixo. Antônio exala um suspiro longo e sofrido, revira os olhos e a segue.
O silêncio paira sobre o convés, enquanto os soldados e a tripulação contemplam tanto a ameaça crescente dos navios de Otaviano, que se aproximam a cada minuto, quanto a bizarrice crescente de sua liderança.
“Os gregos são realmente peculiares”, diz Planco para ninguém em particular.
A mão esquerda
Mais uma vez instalada nos aposentos de Antônio, Xena encara sombriamente o balde de urina. “Idealmente, deveria estar putrefato.”
“Eu achei que você sabia o que estava fazendo”, retruca Antônio. Mais uma vez seu humor oscila; em poucos minutos ele passa da leve indulgência de um pai com uma criança birrenta para a recriminação tensa.
Não é surpresa em situações de batalha, Xena lembra a si mesma, essa oscilação entre o humor negro e absurdo e a dura consciência do que está por vir. “Eu sei o que me disseram, nada mais.” Semanas atrás, ela havia importunado o relutante Ping para que lhe contasse tudo o que sabia sobre o fogo grego. Depois de zombar dela por chamá-lo de fogo grego – “Lao Ma estava certa, vocês gregos reivindicam o crédito por todas as invenções sob o sol” – Ping recitou casualmente os ingredientes e como deveriam ser preparados. Ela havia rabiscado tudo isso em um pedaço de pergaminho agora perdido, embora Xena suspeitasse que pudesse estar entre os poucos pertences de Gabrielle, porque a gladiadora era notoriamente acumuladora de qualquer pedaço de pergaminho ou instrumento de escrita que encontrasse. Esse traço cleptomaníaco, que Xena antes achava encantador, agora a enfurecia. Confiar apenas nos corredores de sua mente para guardar conhecimento a deixava extremamente nervosa; parecia que quanto mais ela se esforçava para se lembrar de algo, mais esquecia. Sua memória era como uma bola de poeira em uma tempestade de vento. Deveria ter feito Ping contar isso para Gabrielle. Ela, uma aluna de elite de Cícero, se lembraria.
Mas ela não está aqui, está?
Depois de garantir a receita com Ping, ela havia galopado triunfante de volta ao lago, onde encontrou Pullo e Gabrielle em um melancólico quadro que lembrava amantes entediados – a comida acabada, o vinho derramado, ele dormindo profundamente e ela olhando melancolicamente para o lago. Seus dedos tocaram levemente o ombro de Gabrielle em saudação. A tristeza no sorriso da gladiadora em resposta levou Xena à dolorosa percepção de que aquela mulher merecia muito mais do que até agora lhe haviam dado – inclusive ela mesma.
Antônio passa a mão pelos cabelos. “Então tudo isso é uma perda de tempo. Deveríamos estar criando estratégias.”
“Temos o elemento surpresa: meu navio.”
Ele a observa com cautela. “Você já disse isso.”
“Eu segui você. Foi deliberado.” Xena deixa a informação afundar: quanto mais próximo o navio dela estava do dele, mais perigoso seria para ele usar fogo como arma sem que isso se voltasse contra ele com facilidade. Ela sabia que ele não arriscaria; Antônio era inexperiente demais em guerra naval para tentar uma jogada ousada. “E agora, do ponto de engajamento de Otaviano, eles não podem ver meu navio. É tudo uma questão de me revelar no momento certo para maximizar o efeito.”
O polegar de Antônio bate no punho de seu gládio. “Isso está muito bem planejado. Até mesmo para você.”
Os pelos na nuca de Xena se arrepiam com uma brisa de apreensão. “Você achou que eu viria até aqui para te encontrar – sem me preparar para o pior?”
“Ah, não. Não para me encontrar.”
Otaviano, ela percebe. Ele acha que ela está ali para encontrar Otaviano.
Antônio se move mais rápido do que ela se lembra – a menos, é claro, que ela esteja fora de forma, o que é muito provável – sua lâmina brilha e ela salta para trás, derrubando o balde de urina. Ela puxa sua própria espada larga. Em um espaço tão apertado, o som das lâminas se chocando é ensurdecedor. Ela se pergunta se a tripulação acima pode ouvir. Presos juntos pelo bronze, como se fossem peças de quebra-cabeça mal encaixadas, eles cambaleiam pela sala em uma dança desajeitada até que Antônio ganha impulso suficiente para lançar Xena sobre uma mesa com um empurrão furioso. Uma vela sobre a mesa cai com ela. A chama fumaça perigosamente até que ela a apaga com a palma da mão. A leve mordida do fogo distrai da dor que sobe pela parte inferior de suas costas.
“Por que você está aqui?” ele sibila amargamente. “Tudo isso fazia parte do seu plano? Você combinou com Otaviano – para me eliminar.”
Com uma careta, Xena se levanta. “Não seja tão estúpido.” Abordagem errada. “Eu não tive nenhum contato com Otaviano. Por que teria? Ele se sente tão ameaçado por mim quanto por você.”
As narinas de Antônio continuam furiosamente infladas, como as de um cavalo no calor da batalha, mas ele não avança contra ela.
“Eu te disse que fui enviada aqui por Lépido e Bruto”, Xena o relembra. “Se um triunvirato é um corpo, então eu sou a parte descartável. Eu sou a mão esquerda.”
“Nobreza não é algo que costumo atribuir a você, então o que você ganha com isso?”
“Nada!”, ela grita. “Eu não ganho nada. Eu não quero nada.”
Ele aponta a espada para ela. “Você quer Roma.”
“Mesmo que quisesse, Roma não me quer.” Essa lasca de realidade estava tão profundamente enraizada sob sua pele que era fácil ignorá-la até agora, até que a dor e a infecção do ressentimento finalmente se manifestaram. “Nunca foi minha desde o início. Nunca será minha. A coisa mais inteligente a fazer é ir embora.”
Antônio lentamente abaixa a espada. Por enquanto, a persuasão prevaleceu. “Sim. Você sempre foi prática, Xena. Mas a única coisa que você sempre quis, acima de toda razão, é sua terra natal. A Grécia. Certamente Bruto e Lépido prometeram isso a você como recompensa. Ou você achou que eu prometeria. Eu te conheço.”
Cansada, ela balança a cabeça. “Você não me conhece mais.”
“Não conheço?” Claramente surpreso e ofendido por essa afirmação, as sobrancelhas de Antônio se erguem. “Nós nos entendíamos desde o começo, Xena. Você se lembra do triunfo de César, quando ele a trouxe para Roma como se você fosse o maior troféu de todos? Ele a tratava como se ouro corresse por suas veias. Você se lembra daquela noite, a celebração na vila dele? Você estava cercada por todas as togas púrpuras de Roma, e eu podia perceber que a riqueza e a beleza da cena a deslumbravam, mas, no fundo, você estava indiferente a tudo aquilo. Você parecia tão entediada quanto eu. Eu estava observando você porque claramente era a coisa mais interessante na sala. E me lembro de pensar: ‘Esta é uma mulher que compartilha minha alma.’ E desejei que você fosse minha, mas sabia que isso nunca aconteceria. Não, eu sempre a entendi tão bem, e isso era o suficiente.”
Ao recuperar o passado deles, ele passou a vê-la como ela é agora: mudada, profundamente mudada, da mulher que o intrigava tantos anos atrás. É uma perda curiosa – a picada de uma agulha que puxa o último fio de sua tapeçaria. Antônio pisca e balança a cabeça. Ele pega a vela caída e a gira pensativamente entre as palmas das mãos. O pavio ainda fumaça. “O que te mudou?”
A fúria e o ritmo das últimas semanas, dos últimos meses, finalmente a atingem de surpresa: tudo o que perdeu, tudo o que ganhou. E tudo o que perdeu novamente, ao que parece. Exausta, ela se encosta na parede. “Vai soar banal.”
“Isso só pode significar uma coisa.”
“Sim. Temo que sim.”
“Então me diga. Quem, afinal, conquistou seu coração?”
Ela ri. Porque, até para ela mesma, ainda parece tão surpreendente quanto inevitável. “Você se lembra daquela gladiadora que comprei antes de partir?”
“Ah!” O sorriso de aprovação dele é visível na penumbra suave do quarto. Ele procura um pedaço de pederneira e pergaminho para reacender a vela. Faz várias tentativas para reacender a chama, cada tentativa de enfrentar a escuridão mais longa que a anterior. “Que engraçado.”
“Como assim, Antônio?”, ela pergunta suavemente.
“Que algo tão pequeno e aparentemente insignificante pudesse mudar o curso de tantas coisas.” A chama pega, a vela é acesa, e ele suspira. “Eu sabia que ela era perigosa.”
O otimista
Mal a batalha havia começado e já tinha acabado.
Pela fresta da janela na estalagem de Diocles, Gabrielle e o estalajadeiro se revezaram observando o rumo da luta mudar e se inverter, governado misteriosamente pelos caprichos de Ares, assim como as marés do mar são pela lua de Ártemis. Durante esse tempo, Diocles contou a ela como a corrente do poder havia mudado em Roma. Lentamente e de forma constante, Otaviano conquistou o exército com o uso astuto de seus fundos limitados, retratando Antônio como um perdulário corrupto e por meio de sua turnê implacável pela península. Ele apelou por ser o herdeiro legítimo de César, por promessas repetidas de manter a República e por sua juventude, que sugeria ser facilmente manipulável ou influenciável, mas que, na realidade, escondia uma mente inabalável.
Surpresa que a batalha tenha terminado tão rapidamente, Gabrielle decide partir. A porta da estalagem se fecha atrás dela, e ela está na rua desolada. Seu braço ainda está quente pelo gesto apertado e grato de despedida de Diocles. O ar está cheio de fumaça. Nenhum dos homens de Antônio é visto; uma hora antes, ela e Diocles testemunharam uma linha cansada de soldados vestindo as cores de Antônio cambaleando pela rua, indo em direção à saída da cidade. Para onde estavam indo, ela não tinha ideia. Imaginou-os voltando pelo caminho que ela e os pretorianos tinham vindo, até ficarem isolados em Garouna.
Agora, com a batalha e o dia no fim, ela volta sua atenção para o objetivo de chegar ao covil de Antônio. De onde está, é visível o promontório do chamado palácio branco de Antônio. Ostentosamente branco, dourado e azul, ele se projeta precariamente dos penhascos acidentados acima do mar, como se fosse um brinquedo guardado impulsivamente pelo mais forte dos gigantes, Porfírio, para uma duvidosa e infantil segurança.
Com passos tão longos quanto consegue dar e com os olhos fixos no palácio – como se fosse uma miragem que desapareceria se ela sequer piscasse – Gabrielle começa sua marcha solitária até o palácio. Ela contorna os incêndios lentos, os cidadãos cansados e nervosos, os restos dos homens de Antônio ansiando por mais uma chance contra um pretoriano; quase todos os soldados que ela passa, no entanto, não se preocupam em abordá-la. O único que tenta irá acordar mais tarde em uma poça de lama com um braço quebrado.
Ela não foi muito longe quando o barulho de uma carroça sacolejante vindo de trás chama sua atenção. Vozes masculinas, altas e bêbadas, se juntam à cacofonia; sílabas se unem em palavras enquanto a carroça puxada por cavalos se aproxima, e, finalmente, frases fluem com uma familiaridade irritante:
“Ei, é ela. Ei, Gladiadora! Pequena Gladiadora!”
“Você quer dizer Pequena Vagabunda!”
“Cale a boca, Flávio, seu idiota de merda.”
A última voz, Gabrielle reconhece com gratidão, é de Gneu.
A carroça para ao lado dela. Da perspectiva terrena dela, Gneu se ergue acima com um triunfo régio, confiante como um general. Ele lhe dá um sorriso. “Indo na nossa direção?”
A partir daí, não é uma longa viagem até a montanha. A vitória os carrega com facilidade. Gabrielle percebe que esta é a primeira vez que vê Gneu sem o capacete; o choque de cabelo prateado a surpreende. Quando ele sorri para ela novamente, ela retribui o sorriso. Pergunta-se se viverá o suficiente para ficar grisalha. Quando seu sorriso desaparece, Gneu dá um tapinha paternal no braço dela e diz para não se preocupar – a batalha foi vencida, as “negociações” sem dúvida concluídas, e Xena chegará ao porto em breve. Mesmo quando abandonam a carroça para a marcha montanha acima e ele fica ofegante ao se aproximarem do topo, o otimismo de Gneu nunca diminui. Nesse aspecto, ele a lembra de Iolaus, e por isso ela faz uma rápida oração a quaisquer deuses que estejam ouvindo para mantê-lo seguro.
É hora de fazer o fogo
No convés da quadrirreme pretoriana, Pullo caiu em um sono leve. Mesmo com as pálpebras tremulantes resistindo ao chamado da luz do dia, ele é gentilmente embalado pelo berço do mar e seduzido por um semissonho vívido com aquela bela hetaira ruiva que teve em Alexandria. Mas tudo é violentamente interrompido pelo anúncio estridente de Lúcio: “Ah, merda, Pullo, lá vem ela de novo.” Ele abre os olhos exatamente quando Xena atinge o convés, rolando em uma parada elegante antes de quase derrubar o grupo de soldados que aplaudem seu retorno.
Depois de suas obrigatórias meias-reverências, Pullo e Lúcio ficam eretos e tensos de apreensão enquanto ela se aproxima.
“Imperatriz”, balbucia Lúcio.
“Bem?”, dispara Pullo.
Com uma careta, Xena revira os ombros. “Acho que vou dar um tempo nessa coisa de pular de navios.” Mas a agonia da expectativa no rosto excessivamente expressivo de Pullo a traz de volta ao assunto em questão. “Crise evitada com Antônio. Infelizmente temos uma nova crise: Otaviano tem três quinquerremes se aproximando de nós pelo oeste.”
Lúcio engole em seco, nervoso.
Em contraste, os olhos de Pullo brilham perigosamente. “É hora de fazer o fogo?”
“Sim, acredito que seja hora de fazer o fogo, e que os deuses nos salvem da minha péssima memória. Lúcio, você tem um balde à mão? Tenho um favor para pedir.”
Embora não menos confuso, Lúcio ao menos prova ser menos modesto do que seu contraparte no navio de Antônio.
O Palácio de Inverno
O palácio de inverno de Marco Antônio já presenciou tempos mais pacíficos e prósperos. O portão principal está carbonizado e fora dos gonzos. O modesto fosso do palácio está entupido de corpos, principalmente de soldados de ambos os exércitos, mas também de civis e – o sangue de Gabrielle ferve de raiva – mulheres e crianças. Em comparação com a arena gladiatorial, o fedor da morte é insuportável. O som de alaúdes e tambores, e gritos triunfantes, ecoa sobre a cena. E, ainda assim, eles celebram.
Ela segue Gneu para dentro do palácio, passando por velas que permanecem como sentinelas perfumadas, tremulando em alívio. Gneu começa a gritar ordens para qualquer um que cruze seu caminho, exigindo saber onde está Bruto. Ninguém parece saber. Ele pergunta sobre Antônio. “Foi embora”, dizem – em uma missão suicida para deter Otaviano. Suicídio, ela pensa. E será que ele arrastará Xena em sua missão?
Tanto faz o alívio que ela sentiu.
Ignorada e invisível, ela desliza pelo labirinto do palácio com o coração em ritmo frenético, subindo uma escada que se alarga à medida que ela sobe. É como se ela sentisse Bruto, como se soubesse exatamente onde ele estaria: porque ele se imagina um grande líder como Xena, ele se isolará das massas, sentará sozinho em um triunfo distante e observará o mundo celebrar sua grande vitória. Como Xena fez durante a coroação de Cleópatra; essa melancolia pós-vitória que ela nunca entendeu completamente – em seus olhos, Xena havia feito algo bom – mas nunca lhe ocorreu perguntar a Xena por uma explicação. Agora, ela pensa que talvez nunca terá essa chance.
Em um salão espaçoso com uma ampla varanda com vista para o mar, Bruto está, de fato, sozinho. Ele está parado na beira da varanda, olhando para a vasta extensão de água. Atrás dele, há uma longa mesa desordenada com mapas e pergaminhos, flanqueada por divãs dourados. Uma estátua de César, exibindo uma gravidade envelhecida que o verdadeiro homem nunca teve, observa benignamente de um canto distante.
Ouvindo os passos cautelosos de Gabrielle, Bruto se sobressalta, saindo de sua contemplação. “Você sobreviveu. Bom.” Ele volta a olhar para o mar. “Bom”, ele repete distraidamente.
Parada ao lado dele na varanda, Gabrielle contempla o panorama impressionante. De onde está, os navios de Antônio e Xena são visíveis, mas, tristemente, insignificantes. Como os barcos de brinquedo que Cato costumava entalhar para seus filhos. Ela sabe que o menor, mais elegante, que está ao lado do navio maior, é o de Xena. Os dois navios, no entanto, não estão sozinhos. Três grandes navios de guerra estão alinhados contra o lado imponente do navio de Antônio, como dardos suspensos no ar. Não poderia ser bom, mas Gabrielle sabia tão pouco sobre guerra naval que arrisca a pergunta ingênua: “Aqueles outros navios lá fora… são de Antônio?” ela pergunta rouca.
“Não. Todos os navios de Antônio estão contabilizados no porto.” Bruto faz um gesto em direção ao grupo de navios. “Tenho certeza de que aqueles três navios flanqueando-os são de Otaviano.” Ele não parece surpreso.
Agora tudo parece dolorosamente óbvio – não exatamente uma armadilha, mas uma inevitabilidade que Bruto sem dúvida estava contando. Destino. Uma voz em sua mente canta essa maldita melodia monocórdica. “Você sabia que Otaviano estava vindo. Sabia, não sabia?”
Ele suspira. “Era o único resultado lógico.” Ele se afasta dos navios e volta para dentro do salão.
O desejo de cortar sua garganta é forte, e ela quase geme com o esforço de se conter. Pense. Você precisa pensar.
“Mas é melhor assim”, Bruto continua, alheio. “Ele derrotará os imperialistas e silenciará os Optimates. Será um novo começo para a República.” Ele morde o lábio inferior. “E não terei escolha a não ser fazer as pazes com ele. Infelizmente, pode ser tarde demais para Xena, já que ela está lá fora com Antônio. Devem ter feito uma aliança no último momento.”
Ele diz isso para provocá-la. Ela ignora, mas apenas por pouco. “Xena não é uma imperialista.”
Pela primeira vez desde sua chegada, Bruto a encara – e esboça um sorriso incrédulo e desdenhoso. “Você não pode ser tão ingênua. Ela lançou um feitiço em você. Achei que talvez afastá-la dela ajudaria. E suponho que não pensei que fosse possível – você é muito inteligente, mas ninguém resiste a certas poções. Isso deve ser o que está em jogo aqui. Pense bem: você sabe quantas mulheres, quantos homens, ela já teve? Você acha que é tão especial assim?”
“Isso não é sobre mim,” retruca Gabrielle. “Você fez uma aliança com ela. Você a forçou a entrar nesse triunvirato com você e Lépido. Você buscou a ajuda dela. E agora, ela precisa da sua ajuda.”
“O triunvirato já acabou. Está terminado. Contra Otaviano – e Agripa, que conhece a guerra no mar melhor do que qualquer romano vivo – ela e Antônio não têm chance.”
Mate-o.
“Então tanto faz a honra, não é?”
“Isso não é sobre honra. É sobre sobrevivência – a sobrevivência da República.”
“Temos homens suficientes lá fora para colocar em um navio. Ainda não é tarde demais.” Ela ouve o tremor frenético em sua própria voz.
Bruto balança a cabeça. “Não vale a pena.” Com uma gentileza firme, ele segura o braço dela, completamente alheio ao modo como ela se retrai. “Ouça. Aproveite sua chance. Você pode ser realmente livre agora. Pode fazer tanto com sua vida. Por que não voltar a Roma comigo, se quiser? Sempre posso usar um escriba. Você… você poderia fazer parte da minha casa. Não como escrava, é claro.”
Furiosa, ela se afasta.
“Você não entende,” ele implora. “Eu não quero isso. Eu quero ajudá-la.”
“Eu não preciso da sua ajuda! O que eu preciso é de um navio com alguns homens dispostos a lutar.”
A boca de Bruto se contrai. “Isso não vai acontecer.”
“Como diabos não vai!” Gabrielle rebate. “Aqueles homens lá fora morreriam por ela, e você sabe disso. Tudo o que eu preciso fazer é ir até eles e dizer que a Imperatriz deles, a Cônsul ou seja lá como você está chamando-a agora, está em perigo, e eles irão até o porto e subirão no primeiro navio que encontrarem. Eles não dão a mínima para você ou para o que você quer. Estão aqui porque ela ordenou, porque esperavam que ela entrasse no porto triunfante. Então vai acontecer. Vai acontecer sem uma única palavra sua.”
Iolaus sempre dizia que, por causa do seu tamanho e do fato de ser mulher, Gabrielle sempre teria o elemento surpresa em uma luta, que seus oponentes constantemente a subestimariam. Mas, ele a lembrava, só porque eles subestimam você não significa que você deve fazer o mesmo. Segundos após se virar para a porta, ela percebe o erro com Bruto. Mas é tarde demais para corrigir a falha inicial, porque o punhal dele encontra a brecha em sua armadura, seu ponto vulnerável. A lâmina desliza para dentro e para fora, separando-a de seu propósito imediato e incendiando o mundo com dor.
“Eu não queria fazer isso,” diz Bruto suavemente. “Eu queria ajudá-la.”
O pedido de desculpas disfarçado só serve para irritá-la. Gabrielle cambaleia até encontrar apoio na mesa. Sangue escorre entre seus dedos. A ordem imperativa de Pullo mais uma vez flutua em sua mente: Continue se movendo. Mas o menor empurrão de Bruto a derruba no chão. Ela estica uma perna e o faz tropeçar, igualando o campo de batalha. Não mais cheio de pena e anseio, mas de fúria e falsa traição, Bruto dá um soco em seu rosto. Não tão forte quanto o guarda no bordel alexandrino, mas o suficiente para que ela pudesse mapear constelações imaginárias, se quisesse. Ele está de joelhos, se levantando e se inclinando sobre ela, quando ela pega o sai escondido em sua bota direita e o crava no peito dele. O horror e a surpresa de tudo isso formam a máscara mortuária de Bruto. Ele colapsa sobre ela, sua boca, espumando sangue vermelho, derrama o líquido ao longo dos contornos dourados e armadurados de seu ombro. Na morte, ele está mais próximo dela do que jamais esteve em vida.
Sair debaixo do peso morto dele leva uma pequena eternidade, assim como se levantar. A mesa ajuda. Na verdade, ela descobre que não consegue abandonar o apoio da mesa sem arriscar outro encontro com o chão. Mas, ao ouvir vozes próximas à porta, ela começa a gritar por Gneu. O centurião irrompe pela porta, seguido por meia dúzia de pretorianos. O membro morto do fatídico triunvirato e o ferimento sangrento de Gabrielle disputam a atenção confusa dele.
“Gneu!” ela grita enquanto perde a força para se segurar na mesa e, pouco antes de o mundo escurecer, completa: “Eu preciso de um maldito navio!”
Quarta vez é a sorte
Xena trabalha com Pullo em uma eficiência sombria e atenuada. O conjunto de ingredientes é embebido e triturado em um pano e amarrado firmemente em torno de um projétil. Faltam os sifões e tubos sugeridos por Ping para máxima eficiência – o fato de que esse equipamento solicitado não tenha chegado ao navio fez Xena chutar o mestre de suprimentos diretamente nos testículos – mas ela espera que as catapultas façam o trabalho. Quando o trabalho é concluído e uma linha de mísseis fétidos aguarda a catapulta, Pullo finalmente ousa fazer a pergunta que estava segurando.
“Existe um plano?” ele pergunta em um tom baixo.
“Quando eles estiverem perto o suficiente para flechas e catapultas, Antônio deve jogar sua bandeira a estibordo, onde podemos vê-la. Então nos movemos – saímos de trás do navio dele, e atiramos como loucos. Diga a Lúcio para ficar de prontidão para a ordem.”
Assim que Pullo corre para cumprir a ordem, Xena mantém os olhos fixos no navio à sua frente. Ela olha tanto e com tanta intensidade que parece que sua mente está pregando peças – o navio de Antônio não está apenas balançando, mas se afastando dela. De fato, essa realização que vai afundando envia um único pensamento velozmente pela sua mente, mais rápido do que aquele quinquerreme gordo e estúpido: Filho da puta. Ela sabe o que Antônio, que é um soldado de corpo e alma, está fazendo – e o que qualquer um que não seja soldado chamaria disso: Suicídio. Ele vai atacar o navio de vanguarda de Otaviano. Vai cair lutando. Vai ter uma morte honrosa. Neste ponto, além de sua lealdade a Xena, é a única coisa que importa para ele. E ele vai arruinar tudo. Talvez.
Agora, as últimas palavras dele para ela fazem sentido, o toque persistente de sua mão no braço dela, aquele beijo rápido e inesperado na sua bochecha: Não importa o que aconteça, Xena, você vai ficar bem. Confie em mim. Vai ser uma questão de tempo.
Pullo mal volta a seu lado, e ela já grita a ordem:
“Preparem as catapultas!”
Quando a cobertura do cavalo de Troia de Antônio cai agonizantemente, os navios de Otaviano estão à vista.
“Fogo!” Xena grita.
Os primeiros mísseis de fogo grego atingem a água. E não liberam mais do que grandes nuvens cinzas de fumaça. É um disfarce útil, confundindo o inimigo. Mas quando as flechas de Otaviano caem dessas nuvens e os homens se jogam para se abrigar quando não há um escudo à mão, Xena só pode esperar que seu plano dê algum resultado: Com cada lote de mísseis, ela alterou um pouco a receita na esperança de encontrar a fórmula certa. Dada sua memória pouco confiável, essa era a melhor estratégia que ela tinha: um palpite calculado.
A segunda vez espirra como um espetáculo pirotécnico malfeito, um pálido contraponto às procissões e celebrações cerimoniais que ela testemunhou em Chin.
A terceira vez é novamente fumaça e flechas, e dessa vez uma flecha encontra seu ombro. Mas ela range os dentes e dá a ordem para a próxima rodada.
A quarta vez, no entanto, é a sorte: Uma cortina de chamas se desenrola sobre a água, como um uivo colorido de raiva de um dragão. Ela se deleitaria no triunfo, não fosse por Pullo arrancando a flecha de seu ombro e empurrando o restante através da carne, músculo e sangue. A última coisa que ela vê antes de desmaiar é o navio de Antônio, bloqueando o navio mais distante da minifrota de Otaviano, em uma fúria de imolação.
Chá e zombaria
Sua memória é um lago, interrompido por navios de sonhos: Aquela primeira viagem a Roma e aqueles dias e noites de brutalidade, contrastados com a primeira viagem a Alexandria, a visão do farol, e a mão de Xena, um suave compasso repousando contra sua pele.
Gabrielle acorda em um berço de dor: seu rosto dói; seu lado dói ainda mais. Cada respiração é um esforço dolorido. Seus olhos se focam cautelosamente nas vigas de madeira escuras acima dela. Ela está em uma cama, estranhamente em movimento, mesmo enquanto está deitada. Se isso não é uma pista o suficiente, o cheiro avassalador de água salgada é. Ela se vira em direção à única fonte de luz: uma pequena janela de portal que revela o casamento infeliz de um céu pesado com um mar brusco e agitado.
É claro, ela pensa. O inferno seria um navio. Bem pensado, Hades.
Quando uma onda de náusea a atinge e ela vomita em seco sobre a cama, começa a se preocupar se está realmente viva. Possivelmente uma escrava novamente? Não – ela estaria acorrentada em algum porão úmido com ratos mordendo sua ferida. Em vez disso, está em uma cama limpa e razoavelmente decente, e a ferida em seu lado foi costurada e enfaixada com a eficiência organizada de um curandeiro competente. Ela está fraca demais e sua garganta seca demais para chamar alguém. Então, ela espera, vagando entre o sono e a vigília, até que o som da porta se abrindo a desperta.
Um homem idoso com uma perna mancando, carregando uma caneca fumegante de algo nauseante, entra no quarto.
“Você está acordada. Já era hora.”
Fraca, Gabrielle puxa o cobertor áspero sobre o torso nu.
O homem ri.
“Ora, vamos lá, não é nada que eu já não tenha visto um milhão de vezes. E, confie em mim, você não é a inveja de Afrodite.”
Insultos mesquinhos e chá horrível. Sim, pensa Gabrielle, estou definitivamente viva.
“Agora, sua amiga, por outro lado…” ele ri de forma áspera. “Pelas tetas de Hera, ela é um verdadeiro espetáculo.”
Amiga? Ela luta para se sentar, tentando fazer a palavra sair da boca. O velho curandeiro ignora essas tentativas patéticas e gentilmente puxa o cobertor para baixo para dar uma olhada rápida no ferimento enfaixado.
“Sem sangramento. Bom.” Ele empurra a caneca de chá para ela. “Beba.”
Desesperada por qualquer coisa líquida, Gabrielle engole o conteúdo. Ignorando a súbita euforia do sangue pulsando em seus ouvidos e a dor no peito, ela finalmente consegue murmurar:
“Mi-minha… amiga?”
O curandeiro ri com desdém.
“Sim, aquela linda, mandona, cadela grega que diz ser apenas a esposa de um pescador, mas xinga como um marinheiro e faz nós mais elaborados do que uma prostituta alexandrina. Ela é uma boa trabalhadora, mas continua tentando comandar o maldito navio. Isso soa familiar?”
De forma hesitante, Gabrielle sorri e suspira. A caneca vazia se solta de sua mão.
“Muito.” responde lentamente. Ela adormece novamente.
Cinzas e luz
Existe algo no mundo chamado neve, pensa Cleópatra.
Xena havia lhe contado sobre esse fenômeno, sobre o macio e frio floco branco que cai do céu – como chuva congelada – em climas mais frios, como nas montanhas de sua terra natal e nas regiões nórdicas distantes que a Rainha do Egito só lera em pergaminhos. Cleópatra ainda se lembra do lindo movimento dos dedos de Xena enquanto ela mimetizava a suave e aleatória queda da neve. Tão suave, tão gentil – um único floco pode se dissolver em um segundo no calor da língua – e, ainda assim, quando acumulado em grandes quantidades, pode ser tão impenetrável e imponente quanto uma pirâmide.
Na sacada de seu palácio, Cleópatra imagina que a neve seja algo parecido com as cinzas flutuando no ar ao seu redor. Exceto que as cinzas frescas e rodopiantes são quentes e cinzentas, quase ardendo contra a pele. O cheiro de pergaminho queimando fica mais forte a cada minuto. A neve tem cheiro? ela se pergunta.
Faz dias desde que as forças de Otaviano chegaram, sitiando a cidade de Alexandria e cumprindo suas ameaças de devastar o maior tesouro da cidade: a biblioteca.
O incêndio na biblioteca começou há um dia. Em certo ponto, parecia contido e extinto, mas novos combates reacenderam as chamas. O velho bibliotecário, Apolônio – outrora seu tutor, que a entretinha com pergaminhos e histórias e foi uma constante em sua vida mais do que qualquer um de sua família – recusou-se a sair. Ela organizou para que ele fosse drogado e contrabandeado para fora da cidade. Não suportaria a ideia de que ele testemunhasse a destruição em massa do trabalho de sua vida.
Quanto a testemunhar a aniquilação de Alexandria – bem, esse é o seu dever. É a sua cidade, agora só dela. A aliança de Xena pavimentou o caminho, embora o traiçoeiro mas útil eunuco que, a mando dela, quebrou o pescoço de seu irmão também tenha sido essencial. Ela agora é a única governante do Egito. As últimas palavras de Xena para ela, que careciam de qualquer forma de recriminação ou arrependimento, a assombram desde então:
O poder que você queria, a cidade que você queria – agora é tudo seu. Lembre-se bem da responsabilidade que isso traz ou isso irá te devorar viva.
As cinzas dançam sem rumo, como fantasmas de gafanhotos assombrando o céu. O último ocupante de seu quarto é uma áspide, faminta por seu sangue, esperando pelo momento em que ela a soltará, pelo momento em que os soldados romanos estarão esmurrando sua porta.
Mundo suficiente
Da próxima vez que Gabrielle acorda, Xena está sentada na beira de sua cama, como se fosse uma deusa facilmente convocada apenas pelo pensamento. Sua aparência, no entanto, está longe de ser divina: veste roupas simples de plebeia, um manto marrom modesto e uma armadura de latão opaco e desgastado que não indica lealdade a ninguém além de si mesma. Ela parece cansada e abatida – crescentes sombrias pairam sob seus olhos brilhantes – mas está viva e, aparentemente, sem ferimentos.
Imediatamente, Gabrielle tenta se sentar, mas uma pontada de dor a faz recuar. Antes que caia de volta nos travesseiros, Xena a segura em um abraço gentil. Seus lábios ficam próximos demais e o inevitável acontece cedo demais; mesmo o beijo mais suave sobrecarrega Gabrielle com a memória do que acredita não ter e nunca merecer. Ela interrompe o beijo, e as emoções conflitantes que resultam – a decepção de Xena e o próprio ressentimento de Gabrielle – deixam-na momentaneamente exausta. O resíduo dessas sensações desgastantes é como uma película gordurosa – uma janela suja em um dia claro, uma distorção do que deveria ser uma felicidade genuína.
Xena a coloca cuidadosamente de volta nos travesseiros.
“Relaxe. Não diga nada.” Ela oferece água a Gabrielle em uma caneca.
Gabrielle esvazia a caneca rapidamente, o efeito revigorante da água fresca sempre um pequeno milagre para ela. Ainda assim, sua pergunta simples exige esforço:
“Onde estamos?”
“Em um navio. Eu disse para não falar. Podemos conversar depois. Mas estamos seguras.”
A resposta idiota e óbvia a frustra. Gabrielle inspira o máximo de ar possível para continuar. O misterioso curandeiro havia dito que Xena era “uma boa trabalhadora”. Por que a Imperatriz estava trabalhando em vez de comandar o navio?
“Para onde…” ela consegue dizer entre uma crise de tosse “…estamos indo?”
“Para casa.”
Agora eu me lembro por que às vezes eu queria te matar.
“Onde é ‘casa’?”
“Onde você quiser que seja.”
Se Xena pensa que suas respostas enigmáticas e imperturbáveis são capazes de tranquilizar alguém com um charme duvidoso – e obviamente ela acredita nisso – está tragicamente enganada. Impaciente, Gabrielle tenta de novo:
“O que… o que aconteceu?”
Xena faz uma pausa, considerando o que contar à frágil, mas cada vez mais furiosa, inválida. De forma pouco característica, ela tenta a resposta segura.
“Muita coisa.”
Com uma fúria débil, Gabrielle tenta arremessar a caneca em Xena, mirando na cabeça, mas apenas roça o cotovelo dela.
“Por que você ainda é tão irritante, porra?” ela grita. E tosse novamente.
Xena consegue exibir uma expressão de afronta ferida e digna, uma expressão que seu falecido marido havia treinado nela com um efeito maravilhoso.
“Você pode se acalmar e parar de xingar por um momento?”
Lágrimas indesejadas nublam os olhos de Gabrielle.
“Por favor. Não. Me desculpe.” Xena se inclina e gentilmente segura o rosto dela. A ponta do polegar captura um filete de tristeza.
Algo está diferente, Gabrielle percebe, algo maior e mais substancial do que sua mente confusa havia permitido antes. A mão acariciando seu rosto parece – estranhamente mais leve: Xena não está usando o anel de sinete, o símbolo de poder que a marcava como Imperatriz, aquele pesado anel de ouro que havia percorrido de forma sensual cada curva e reentrância do corpo de Gabrielle. Por mais que ela odiasse o que o anel representava, amava a sensação sólida e fria de saber quem a tocava.
“Muita coisa aconteceu,” Xena está dizendo, “tanta coisa que é difícil apresentar um relato conciso. A batalha da qual você participou acabou, mas com consequências pesadas de todos os lados. Otaviano clama vitória, se é que isso conta, já que ele foi o único que sobreviveu. O navio de Marco Antônio foi destruído, e ele morreu uma morte heroica. Com exceção de Marco Emílio Lépido, que foi exilado, os líderes dessa batalha pereceram.”
Xena faz uma pausa.
“Até mesmo a Imperatriz.”
“Até mesmo a Imperatriz?” Gabrielle repete, confusa. Talvez seja verdade. Talvez eu esteja morta, ou louca? Mais uma vez, ela olha para a mão direita nua de Xena. Ou talvez seja o maior presente?
“Receio que sim,” continua Xena. “Acontece que a idiota não conseguiu preparar direito o fogo grego. Que pena. Ouvi dizer que ela era uma beleza impressionante e uma mulher de caráter superior…”
“Bem, eu não sei sobre isso,” Gabrielle responde com uma voz fraca e rouca. Já agora, ela pensa, elas caíram naquele padrão familiar, e embora despreze a fraqueza de ceder tão rapidamente depois de tudo o que aconteceu, ama o fato de que o alicerce que têm – composto de ou baseado em algo que ela ainda não entende – ainda está ali.
“Sim, ela tinha uma reputação duvidosa. De qualquer forma, lamento informar que a antiga Imperatriz de Roma está morta. Mas a mulher que te ama está muito viva.”
“Ah.” Parece anticlimático, se não fosse pelo fato de que uma pequena e teimosa fortaleza, uma seção desafiadora de seu coração, sempre soube disso como verdade. Gabrielle procura algo para jogar em Xena novamente, mas não há nada além de seu travesseiro, e ela reluta em se desfazer dele. “Então, agora você finalmente diz isso.”
Nunca sendo uma pessoa que admite erros, Xena franze a testa e reconhece esse sério erro tático no romance:
“Sim. Talvez você ache que é tarde demais, mas eu estava bem ocupada e você estava em algum tipo de… coma, então declarações de amor pareciam meio inúteis. Palavras geralmente me falham, a menos que eu esteja sendo insincera, e nunca quis ser assim com você.”
Xena abaixa os olhos e respira fundo.
“Mas. Eu abandonei tudo o que conhecia pela oportunidade de acordar ao seu lado todas as manhãs. Tenho moedas suficientes para conseguirmos um lugar para viver e pergaminhos suficientes para você escrever mil épicos. Eu roubarei pergaminhos para você, se quiser – como você sabe, bibliotecários têm medo de mim. Podemos conseguir um gato, talvez como Timon. Você vai admitir que eles são mais fáceis de cuidar do que crianças. E eu não me cansarei de te amar, porque não existe ninguém como você em lugar nenhum neste mundo.”
Xena faz uma pausa; os deuses ainda não a castigaram por falar sinceramente.
“Sei que, no que diz respeito a propostas, esta é ainda menos romântica do que a proposição insossa de César para mim há muito tempo, porque não posso te oferecer um império ou um mundo que você nunca conheceu. Tudo o que tenho é a verdade do que digo e do que sinto.”
Seu momento como pretendente chega ao fim, e Xena olha para o couro da braçadeira e o ajusta ansiosamente.
“Isso serve?”
Ela arrisca um olhar ansioso, mas cheio de amor, para sua amada, garantindo uma reação rápida e decisiva de Gabrielle.
“Sim.”
Gabrielle pega a mão dela. As linhas mapeando a palma de Xena são um mundo suficiente para ela.
“Serve.”
O Anel
Agora ele se chama Augusto.
Pullo se lembra dele como um jovem: desengonçado e magro, estranho e desajeitado. Seu novo papel como guerreiro-imperador, no entanto, o transformou em uma figura de elegância contida. Mas seu rosto ainda trai a expressão de um asceta, como se ele preferisse estar realizando rituais em um culto misterioso a governar o Império que manteve unido com uma tenacidade calma.
Uma chuva de inverno deixou os galhos nus das árvores do lado de fora luminosos com gotas que se espalham ao vento e brilham em explosões ferozes de luz solar após a tempestade. Pullo observa as gotas caírem, enquanto espera que Augusto dite seu destino – e, indiretamente, o de Xena também. Por vários minutos longos, o Imperador não diz nada, o que enlouqueceria um homem menos experiente. E, embora Pullo não seja conhecido por sua paciência, ele é conhecido por sua lealdade. Ele aceitará o que quer que aconteça, simplesmente porque não tem escolha.
O Imperador se afasta da janela.
“Você viu o corpo dela?”
O barco a remo balançava nas águas agitadas, afastando-se cada vez mais do inferno no mar composto pelos restos em chamas de três navios – o deles, o de Antônio e um dos de Otaviano. Os dois navios restantes – um deles significativamente danificado – estavam em retirada. Pullo imaginou que eles não arriscariam tomar Kassiopi; eles não tinham ideia de que forças os aguardavam.
Ele revezava-se nos remos com Lúcio. Xena, ferida, mal estava consciente. Seu ombro estava mal enfaixado, e ele temia que, em algum lugar, Ping estivesse o amaldiçoando por sua falta de habilidade nas artes da cura. Quando Kassiopi começou a se delinear mais claramente, Pullo foi tirado de um momento de exaustão reverente quando Xena agarrou sua mão com uma força surpreendente, pressionando seu anel de sinete na palma calejada dele.
“Estou morta.” Nunca antes ela havia olhado para ele com tanta intensidade e por tanto tempo. “Você entende?”
“Sim, Imperatriz.”
Pullo faz uma pausa, incerto se deveria oferecer mais detalhes. Mas Augusto continua a observá-lo calmamente, como uma criança esperando o resto de uma história.
“Ela foi mortalmente ferida por uma flecha. Antes de morrer, ela me deu o anel e me instruiu a apresentá-lo ao próximo líder do Império.”
“Não especificamente a mim.” Augusto comenta ironicamente.
“Com todo o respeito, a Imperatriz – a antiga Imperatriz – não era uma oráculo.”
“Você sempre falou de forma direta, Pullo. Vejo que isso não mudou.” O polegar de Augusto roça o anel de sinete de Xena. “Por que você não tentou reclamar o corpo dela? Dar a ela um enterro apropriado?”
Pullo se remexe nervosamente, esperando que Augusto interprete isso como parte do teatro que acompanha a mentira que ele está prestes a desfiar:
“Quando você está correndo pela sua vida, não para, não pensa muito nos mortos, mas sim em evitar juntar-se a eles.”
Augusto solta um riso desdenhoso.
“Que os deuses tenham misericórdia da sua alma covarde, Pullo.”
Aliviado, Pullo abaixa a cabeça, aceitando a reprimenda enquanto se lembra da última vez que viu Xena, cerca de quatro meses atrás: vestida com a regalia completa de um centurião que haviam retirado de um homem morto, incluindo o capacete que disfarçava seu sexo e a armadura que protegia seu ombro ferido, atravessando o porto da cidade costeira com apenas uma coisa em mente: encontrar a gladiadora, viva ou morta.
“Você realmente espera que eu acredite nisso?” Augusto pergunta em voz baixa.
A cabeça de Pullo se ergue com um estalo no pescoço, alarmante apenas em comparação à súbita proximidade do Imperador.
O sorriso de Augusto é gelado.
“Um homem tão leal como você não deixaria a mulher que serviu à mercê das profundezas do mar impiedoso. Mesmo que o corpo dela estivesse frio e morto. Não, Pullo, você teria arrastado o cadáver de Xena até as praias de Kassiopi e lhe dado um funeral que rivalizaria com o de César em esplendor e fogo.”
Ele dá alguns passos na direção de Pullo, ainda acariciando o anel com as pontas dos dedos. Para o espanto de Pullo, Augusto fala ainda mais suavemente, em um sussurro reverente e assustador:
“Você teria ousado desafiar Mithras assim?”
O Imperador tem a mesma altura que ele, e seus olhos calmos e sem expressão são os de um homem que conhece o verdadeiro poder.
“Quer me matar agora, Pullo? Agora que expus sua mentira?”
Pullo se enrijece. O momento em que começam a falar sobre mentiras, ele pensa, é o momento em que começam a preparar o patíbulo.[1]
“Imperador, por favor – ”
Augusto o interrompe gentilmente.
“Não tenho desejo de lhe fazer mal. Na verdade, eu o aplaudo. Lealdade é uma característica inestimável. Vale mais do que ouro – não é de admirar que Xena tenha mantido você por perto. Mas, desde que você retornou a Roma, presumo que sua lealdade ao Império supere sua loucura temporária: a fidelidade a uma grega. Você é de fato um soldado de grande mérito e, se estiver interessado, gostaria de manter seus serviços. Mas, antes de começarmos essas negociações tediosas, quero esclarecer: não estou interessado em saber se Xena está viva ou morta. Por mais popular que ela tenha sido, ela continua a ser uma infamia: uma grega. Uma mulher. Uma devassa. E nada sem César. Nenhum romano a seguiria agora.”
Augusto ergue o anel.
“Não. Estou interessado nisto. E no motivo pelo qual ela desistiu de tudo.”
Ele lança a Pullo um olhar expectante.
“É muito simples,” – Pullo começa.
“Então, por favor, me esclareça.”
“Amor.”
“Amor?” Augusto repete, incrédulo.
Pullo assente.
O Imperador ri, e com isso Pullo solta o fôlego que vinha segurando há quase um minuto, liberando um nó de ansiedade que estava profundamente enrolado em suas entranhas.
“Sério? Só isso?” Em sua diversão, Augusto parece jovem novamente enquanto enruga o nariz, descrente. “Com aquela – aquela gladiadora malcheirosa?”
Pullo assente novamente, mas evita comentar que Gabrielle provavelmente era a gladiadora mais higiênica que ele já havia encontrado; na verdade, ela tomava tantos banhos que ele temia por sua saúde – não parecia normal. Será que ela não sabia das propriedades protetoras da sujeira?
Satisfeito com a resposta de Pullo – a resposta mais simples geralmente é a verdadeira, acredita o Imperador – o relaxado Augusto se esparrama em um divã e continua a admirar o anel de sinete que brilha em suas mãos.
“Acho que faz sentido.” Ele balança a cabeça. “Típico de uma mulher.”
Três anos depois
Como ancião da cidade, Eusébio geralmente recebia o respeito que sua idade merecia, embora Gorgos achasse que o velho era basicamente um idiota. Mas, quando o gigante chegou à cidade e começou a aterrorizar todos e a devorar o gado, Eusébio sugeriu, com uma surpreendente sensatez, que a cidade juntasse dinheiro para contratar mercenários para cuidar do gigante. Ele até tinha duas excelentes candidatas para o trabalho: ex-escravas romanas, uma delas supostamente uma gladiadora, que viviam em uma das vilas costeiras e eram conhecidas por se disponibilizarem para tais tarefas.
Assim, ficou combinado que Eusébio levaria o dinheiro às mercenárias – o ponto de encontro seria uma taverna suspeita nos arredores de Corinto – acompanhado por Gorgos, amplamente considerado o homem mais forte e corajoso da vila. Mas, quando Eusébio conduziu seu jovem companheiro pela taverna até um quarto reservado nos fundos, onde duas mulheres desconhecidas os aguardavam, Gorgos quase estrangulou o velho. Ele acreditava que estavam prestes a desperdiçar todos os recursos da vila com mulheres, provavelmente prostitutas, que fugiriam para a cidade com o dinheiro.
Antes que ele pudesse arrancar a bolsa de dinheiro das mãos do ancião e ir embora, o ágil Eusébio sentou-se e começou a conversar com as mulheres. Ele comprou novas bebidas para elas e começou a contar a longa e entediante história de Cliff, o gigante, assim chamado porque, quando bêbado, às vezes adormecia nas montanhas e rolava de um penhasco. Infelizmente, as quedas não pareciam afetar muito a integridade física de Cliff.
Com uma inspeção mais atenta, Gorgos percebeu que as mulheres não pareciam ser cortesãs comuns. De fato, elas usavam armaduras e carregavam espadas. A loira baixinha fazia perguntas a Eusébio de forma educada; apesar de sua postura gentil, sentava-se com a postura rígida e atenta de uma soldada, e seus olhos inquietos, da cor do mar, examinavam a taverna em busca de potenciais distúrbios. A outra era ainda mais intrigante: incomumente alta para uma mulher e com o elegante ar de ameaça contida de um gato à espreita, seus olhos azuis e gélidos semicerrados de tédio enquanto Eusébio continuava a falar sobre Cliff. Mas foi só quando um copo caiu no chão com um estrondo – provocando uma leve inclinação controlada de sua cabeça, revelando um perfil impressionante, visto uma vez em uma moeda anos atrás – que Gorgos quase saltou da cadeira.
Como todos os grandes nomes na Batalha de Ácio, a Imperatriz de Roma era dada como morta. Mas, ao contrário de Bruto e Antônio, seu corpo nunca foi encontrado – apenas um anel de sinete apresentado por um soldado leal que alegava que ela perecera em seu navio afundando. Rumores persistiam de que ela ainda vivia, que vagava pela Grécia ajudando os cidadãos, e que algum dia poderia ressurgir como líder da nação – sua nação. Gorgos achava tudo isso uma bobagem. Até agora.
Gorgos soltou um risinho.
A mulher que ele acreditava ser Xena, a antiga Imperatriz de Roma, encarou-o – e não de maneira amigável.
“Espero que tenha um bom motivo,” murmurou ela com autoridade, “para estar rindo de mim.”
Ele riu de novo, desta vez acrescentando uma risada curta e zombeteira:
“Ho!”
A mulher menor agora também parecia contrariada, e sua mão foi instintivamente para o gládio ao seu lado.
“Ele acabou de te chamar de prostituta?” perguntou ela à companheira.
“Não, não,” protestou Gorgos. “Não é isso. Não é isso, de jeito nenhum.” Ele balançou a cabeça. “Eu consigo acreditar nisso. Você é Xena, não é? A Imperatriz de Roma, viva e respirando, assim como eu!”
“Rapaz, você está bêbado?” perguntou o constrangido Eusébio.
“Você não percebe, velho?” Gorgos gesticulou animadamente para a mulher alta. “Ela é a Imperatriz! Todas as histórias são verdadeiras – ela não está realmente morta!”
“Pelas bolas de Zeus, Gorgos.” Eusébio balançou a cabeça. – “Você sempre causa problemas, não importa aonde vá, deixando as pessoas desconfortáveis. Eu pedi para me deixarem trazer Demétrio, mas não – ”
“Maldição, seu tolo, você está cego? Olhe para ela!” A voz de Gorgos se elevou. Uma garçonete lançou-lhe um olhar de soslaio.
Quando ele apontou novamente para a mulher, o objeto de sua análise agarrou seu pulso, torceu-o e o prendeu à mesa. Tendões estalaram, o polegar dela pressionou sua veia, e sua visão ficou turva e cheia de estrelas. Ele teria desmaiado, se não fosse pela voz aveludada dela, emitindo a ameaça mais sedutora que ele já ouvira:
“Deixe-me deixar isso bem claro. Você está completamente enganado. Eu não sou a Imperatriz de Roma. Sou apenas uma humilde viúva que possui uma fazenda de cavalos e um vinhedo à beira-mar com minha, ah – ”
“Prima,” a loira baixinha interveio.
“Sim, prima, e eu faço alguns trabalhos ocasionais de vez em quando para sobreviver, porque às vezes o negócio do vinhedo é meio devagar – ”
“Porque às vezes você acha que pode fazer um bom vinho com amoras silvestres, mas realmente não pode,” murmurou sua companheira.
O olhar que Gorgos achava tão petrificante não teve efeito algum na loira baixinha e levou a mulher que talvez fosse a Imperatriz de Roma a reclamar:
“Vamos falar disso de novo? Na frente das pessoas? Foi só um experimento – ”
“– que deu tão terrivelmente, miseravelmente errado que nunca deveria ser repetido.” Essa avaliação direta foi suavizada pela companheira com um sorriso gentil e provocador.
A mulher que talvez, quem sabe, fosse com toda certeza Xena retribuiu o sorriso – e teria se afogado feliz naquele sorriso, porque se lembrava muito bem de uma época em que essa mulher, sua amada, não sorria de jeito nenhum – até que Gorgos soltou um guincho de dor. Culpada, ela soltou o pulso dele.
“Então estamos entendidos, Gorgos?”
Concordando freneticamente, ele esfregou o pulso e se inclinou o máximo possível para trás na cadeira.
Um silêncio constrangedor se instalou na sala, até que Eusébio arriscou encerrar o acordo.
“Então está decidido? Vocês aceitarão o trabalho?”
As mulheres trocaram olhares. Xena deu de ombros, Gabrielle assentiu, e Eusébio empurrou o dinheiro sobre a mesa.
“Ótimo. Outro maldito gigante” suspirou Xena.
Mercenárias do Bem
A taverna, situada na acrópole da cidade, olha de cima para Corinto. A primeira coisa que Gabrielle faz ao entrar no quarto é abrir bem as venezianas e observar, com uma calma empolgação, a expansão urbana abaixo delas. Em contraste, Xena se joga, ainda vestida, na cama, que libera uma nuvem de poeira e, em sua mente, justifica a decisão de não tirar as botas. Seriam essas acomodações adequadas para a ex-Imperatriz de Roma? Talvez não, mas depois que comida e vinho encherem sua barriga e ela usar a cama como deve, não vai se importar. Ainda assim, ela tosse dramaticamente.
Gabrielle cede e sorri para ela antes de voltar sua atenção à vista de Corinto. Não é Roma; em comparação, é pouco mais que um rincão. Mas Roma parece outra vida, outra linha de destino gravada com descuido cruel em sua palma. Ela se lembra muito bem das noites observando a cidade da janela da cozinha de Cato, juntando tochas e constelações em algo grandioso, algo melhor do que jamais havia experimentado. Talvez algo como a vida que tem agora.
Claro, ela desconfia desses momentos de paz; sua mente começa a correr, preocupando-se que Xena não esteja realmente feliz com a vida que levam juntas. Ela olha para Xena, largada na cama. Está entediada? Infeliz? Apenas cansada?
“Sinto muito por ser outro gigante” diz ela.
“Por quê? Não é culpa sua.” Xena pausa. “Mas desta vez vamos fazer do meu jeito.”
O último gigante que encontraram se beneficiou, embora brevemente, da tentativa de Gabrielle de negociar com ele. Suas apelações por “modificação comportamental para o bem maior,” no entanto, não encontraram eco nos ouvidos surdos e enormes do gigante. Ela teria sido esmagada até a morte, não fosse o arremesso certeiro da lança de Xena, que cortou a carótida do gigante.
“Então nada de falar com o gigante?”
“Só a uma distância segura e respeitável, e só por cinco minutos. Sem convites para tomar chá.”
“Chá de agulha de pinheiro geralmente é bem calmante – ”
“Tem gosto de xixi, e não vou arriscar que você seja esmagada por outro brutamontes.” Por trás do humor, há um tom que não admite discussão.
Ainda assim, ela se pergunta se Xena está realmente feliz vivendo essa vida. Elas são “mercenárias do bem” – o termo de Xena para o que fazem, que sacia sua inquietação e sua necessidade de um propósito poderoso. Por mais forte que a Grécia fosse, era como um colar de joias: impressionante quando unida e, como tal, inestimável, mas facilmente quebrável. Estar do outro lado – Roma – revelou isso a ela. A Grécia precisava de proteção, ela disse uma vez a Gabrielle.
Estavam confortavelmente instaladas em uma estalagem bastante agradável – bebendo ao lado de uma lareira e esperando o momento certo para intervir em uma disputa bastante desagradável entre duas cidades-estado.
“Proteção contra o quê?” Gabrielle perguntou.
Xena sorriu com um toque de melancolia.
Proteção contra alguém como eu.
Quando não vagavam pelo campo em busca de algo para fazer, as pessoas iam até elas, no vinhedo decadente onde moravam. As construções eram antigas, o próprio vinhedo questionável, mas ambas ficaram tão encantadas com a vista para o mar que Xena gastou seu último sólido para comprar a propriedade de um homem que a havia herdado de seu tio alcoólatra e estava ansioso para se livrar dela.
Inicialmente, a ideia de ser vinicultora agradou a Xena. Além de ter um paladar refinado, ela tinha a teimosia das ervas daninhas que invadiam os campos. Até agora, seus esforços não haviam produzido nada bebível; o infame vinho de amoras silvestres, na verdade, fez Gabrielle vomitar. Depois disso, Xena focou todas as suas atividades não mercenárias em seu segundo grande amor: cavalos. Supostamente, a “razão oficial” para estarem em Corinto – não que alguém realmente fosse perguntar – era comprar um jovem palomino. Como uma mãe à espera de um filho, Xena já havia dado um nome ao animal – Argo – e limpado e preparado um estábulo em casa com feno fresco e novo.
Entre esses momentos de paz, elas eliminavam gigantes, derrotavam senhores da guerra, libertavam escravos e negociavam resoluções – às vezes à ponta da espada – em escaramuças precárias entre cidades-estado. Para desgosto de Xena, suas reputações se espalharam. Otaviano (como Xena ainda o chamava: “Augusto uma ova, ele sempre será o magricela, entediante e pequeno Otaviano para mim”) tinha boa memória e, talvez, um alcance ainda maior. Há quase dois anos, Pullo havia conseguido enviar uma mensagem a elas – codificada e camuflada no código que ele aprendera com Xena há muito tempo – confirmando que o Imperador sabia que Xena estava viva, mas parecia relativamente indiferente a esse fato. Isso poderia mudar, elas sabiam, ao menor sinal de que Xena estivesse acumulando qualquer tipo de poder político na Grécia. Sua existência, Gabrielle sabia desde o início, era um segredo aberto e perigoso. Todos sabiam quem era a “Princesa Guerreira”; que muitos estivessem dispostos a deixar o mistério permanecer era um valioso gesto de gratidão.
Para a paranoia irritada de Xena, no entanto, Gabrielle registrava suas atividades em seus pergaminhos. Xena sugeriu que, em vez disso, ela escrevesse sua própria história: sua experiência como gladiadora. Mesmo anos depois, ainda era cedo demais. Todos os dias, não importava onde estivessem, ela acordava com o lobo de seu passado à porta – um lobo que se afastava no momento em que ela olhava, com um alívio desesperado, para aquela cabeça escura sobre o travesseiro, para aquele corpo longo e quente ao lado do seu. Um dia, pensava, ela escreverá tudo. Sua vida. Quando formos velhas, e a única aventura for sair da cama pela manhã.
Xena bocejou.
“Não acredito que você nunca esteve em Corinto.”
“Meninas de vilarejo, escravas e gladiadoras não viajam tanto quanto piratas ou imperatrizes.”
“Verdade seja dita, você não perdeu muita coisa.”
Sempre identificando-se com os mais fracos, Gabrielle sentiu-se compelida a defender a pobre e simples Corinto:
“Há uma biblioteca aqui.”
Isso provocou um resmungo zombeteiro da viajada Xena.
“Não é nada comparado ao que você está acostumada, minha querida.”
Gabrielle sonha com uma missão que as leve a Pérgamo; Xena promete que um dia elas visitarão a biblioteca, agora a mais famosa do mundo desde que Alexandria virou cinzas. Desde que recebeu as notícias do incêndio e da morte de Cleópatra, ela pensa em Apolônio quase todos os dias. O velho teria perecido com seus amados pergaminhos? Ou o peso do que aconteceu à biblioteca o matou? De qualquer forma, ela não consegue imaginá-lo sobrevivendo à catástrofe da perda; isso a feriu tão significativamente quanto qualquer coisa que ela suportou como gladiadora. Ela espera que, morto ou vivo, ele ouça seus pensamentos. Tudo que você me ensinou – eu nunca vou esquecer.
Sempre perspicaz, Xena percebe a mudança em seu humor e encoraja gentilmente:
“Mas você precisa ir. Talvez amanhã, antes da peça.”
“Peça?”
“Sim.”
“Nós vamos a uma peça?”
“Sim.”
“Mas você odeia peças.”
“É verdade, mas o problema é que eu te amo, e sei que você adora peças, e tem me aturado o suficiente com minha natureza reclusa ultimamente. Então, pensei que, já que estamos na grande cidade, veríamos uma peça. É Aristófanes, infelizmente.”
“Eu gosto de Aristófanes.”
“Ele é meio idiota, não acha?”
Gabrielle ri. “Essa não é uma crítica muito perspicaz.”
“Me dê um bom dramaturgo e eu darei boas percepções.”
“Então você não está preocupada em ser reconhecida?”
Xena suspira, se senta e tira a capa. “Ah, não sei por que eu até tento…”
“Então você não vai usar aquela peruca vermelha?”
“Você adoraria isso. Você é uma pervertida.”
“Diz a mulher que ensinaria a Sáfira novas posições.” Gabrielle se inclina para a janela aberta. Anos atrás, pensa ela, ficaria sem palavras e aterrorizada de até fazer uma piada dessas. Mas agora? O calor do sol mistura-se com a leve brisa fresca no ar. É a receita para a primavera, para os beijos suaves no seu pescoço que não são inesperados, para ceder às mãos que amassam seus quadris, convidando-a a se virar.
Elas se beijam. O sol se infiltra nas costas de Gabrielle e o momento preguiçoso se prolonga, alimentado pelo calor da luz refletida e pela promessa do dia que se desenrola diante delas. Até que Gabrielle, finalmente notando como Xena não está vestida, se afasta com um protesto: “Saia da janela! Você está quase nua!”
De fato, Xena está sem a parte de cima, exceto pelo sutiã. “Logo estarei completamente nua.” Ela não perde tempo desabotoando o colete de Gabrielle. “Melhor se apressar.”
Gabrielle as movimenta para longe da janela e em direção à cama – o objetivo de Xena o tempo todo; ela sempre foi a estrategista superior. “Achei que poderíamos dar uma volta,” ela murmura entre os beijos, “explorar a cidade…”
Dessa vez Xena interrompe o beijo, com uma expressão de desgosto.
“Tá bom, eu exploraria a cidade enquanto você bebe vinho e fica entediada.” Além da biblioteca, há um destino que Gabrielle está determinada a procurar sozinha. Sozinha. Mas ela já planejou essa tarefa enquanto Xena examina cavalos amanhã. Por agora, Xena cuidadosamente a despiu, admirando a revelação de seu corpo como se Gabrielle fosse sua própria criação. De certa forma, ela é; formada e transformada pelas percepções de Xena, pelo amor em si. Juntas, elas caem na cama sem esforço, como já fizeram muitas vezes antes, e Gabrielle puxa Xena para cima de si. “Mas talvez possamos fazer isso… depois.”
“Sim. Depois.” O dorso da mão de Xena passa pelo seu ombro, seus seios, seu torso, descendo um pouco mais, antes de voltar para tocar o rosto de Gabrielle. Ela não sente falta do anel: o anel de sinete, o anel de gladiadora, os anéis que ela traçou nas solitárias noites romanas. Ela sorri ao toque de Xena, aos dedos que se lançam em uma busca de cartógrafa para mapear todo o seu corpo, começando pelos seus lábios. “Muito depois.”
Carne e sangue
Com o xale cobrindo sua cabeça, ela poderia ser qualquer mulher livre da cidade entrando no Templo dos Destinos, e não a gladiadora de cabelos loiros que, em um tempo, foi mais famosa que o próprio Imperador e Imperatriz. Embora sua companheira agora a eclipsasse em fama, ela sempre se mostra cautelosa para evitar o reconhecimento. Quão afortunada, pensa ela, que tal modesto e simples cobertor corrige tão facilmente o fardo da infâmia.
No templo, seus dedos se torcem na chama da vela, parando brevemente apenas para o castigo do calor, a ameaça da pele que pode estourar. O incenso espesso pesa como um manto de inverno, mas com o aroma doce e enjoativo do jasmim; a fumaça prateada cobre a figura angular da sacerdotisa, que se mantém ereta, seminua e imutável como uma estátua.
A sacerdotisa, empunhando um cálice de prata, exige um sacrifício de sangue; qualquer animal serve, ela diz.
“Eu sou um animal,” responde Gabrielle.
A sacerdotisa considera isso e dá de ombros, concordando.
Com os lábios pressionados em antecipação à dor, Gabrielle tira sua faca e corta sua palma. Enquanto seu sangue se derrama no cálice, ela se pergunta o que vai dizer quando Xena perceber o ferimento. Uma briga, é claro. Xena acreditaria em uma briga. A sacerdotisa faz um gesto para que ela se ajoelhe, e ela o faz.
No crepúsculo iluminado pelas velas, a sacerdotisa recita orações em um dialeto tão arcaico que Gabrielle não entende metade, mas a invocação chama os destinos e seu tear. Cabeça baixa e de joelhos, Gabrielle escuta enquanto as vozes melódicas de Cloto, Láchesis e Átropos tecem meadas multicoloridas de possibilidade dentro de sua vida. As Moiras confessam como os fios cintilantes e escurecidos de sua vida foram alterados; ainda assim, sempre permanecerão entrelaçados com os de Xena. Elas contam a história do que agora nunca aconteceu: uma garota que se torna uma barda e uma guerreira, em vez de uma escrava e uma gladiadora. Uma senhora da guerra que é uma mulher quebrada, assombrada, mas que se torna uma heroína para todo o sempre. O preço da redenção, calculado alto demais. Uma vida solitária meio vivida. Uma capa nunca desejada. A conclusão errada para a história certa.
Responde todas as suas perguntas, as perguntas que começaram no dia em que ela conheceu pela primeira vez a Imperatriz de Roma. Tremendo, ela amarra sua mão que sangra e, com um milhão de pensamentos invadindo sua mente, começa a se levantar.
“Espere”, ordena a sacerdotisa. Ela dá um passo mais perto de Gabrielle, que permanece ajoelhada. Uma faca repousa na palma aberta da sacerdotisa, as veias de seu pulso cantam na luta por um repouso perfeito.
“Corte os fios,” diz Átropos.
“E tudo será como era antes,” confirma Láchesis.
A sacerdotisa antecipa a pergunta não dita no coração de Gabrielle. Com os olhos escuros respeitosamente abaixados, ela desafia suavemente as deusas: “E se ela não fizer?”
Cloto, a fiandeira, que conhece a abundância do tear e todas as ricas possibilidades de cada fio, responde: “Não queira nada e terá tudo.”
A faca permanece na mão da sacerdotisa.
Com uma reverência de reconhecimento para a sacerdotisa e as Moiras, Gabrielle se levanta. O curativo se soltou ao redor de sua mão, e ela o aperta, encarando o tecido entrelaçado contra sua pele. O tear dos destinos é mais verdadeiro do que o tear de sua mão – as linhas de carne e sangue, a frágil teia de um curativo? Ela nunca saberá. E, que as Moiras a ajudem, Xena também nunca saberá.
Ela sai do templo e entra no sol.
FIM
[1] NR: palanque ou estrado montado em local aberto para sobre ele executar condenados.