Eu caí ao chão ainda sentindo o impacto contra meu maxilar ressoar contra os ossos da minha face. O gosto de sangue preencheu minha boca e por um momento a minha visão se turvou. Permaneci no chão deitada, respirando fundo e contemplando a desgraça da minha própria existência. Nocauteada. Reduzida. 

Então era assim que eu a havia feito sentir anteriormente. 

Meu abdômen estava dolorido, meu supercílio estava aberto e havia várias contusões por todo meu corpo, mas nada se comparava à dor moral que eu sentia agora. Fechei os olhos, desejando ser absorvida pela escuridão, mas um turbilhão de vozes ao meu redor me mantinha consciente. 

“Por que você não se defendeu?” – A voz dela tinha uma fúria e uma raiva que eu nunca havia ouvido antes. Definitivamente não era a mesma pessoa com que eu havia lutado algumas luas antes, mas isso já havia ficado claro quando a encarei antes da luta iniciar. Olheiras profundas emolduravam seus olhos verdes, e se no passado encontrei neles compaixão, ela havia desaparecido agora. Amargura talvez fosse a palavra que definisse melhor a imagem que a envolvia. 

“Você não deveria ter feito isso. Eu aceito o meu destino”. A outra voz baixa respondeu. 

“Bom, mas eu não aceito. Estou cansada de perder pessoas. Não vou perder você”. – disse a rainha, dando as costas para tudo e se retirando para a cabana real. 

Ainda que o sangue lavasse meu rosto e turvasse minha visão, pude notar algumas outras amazonas ali. Elas não sabiam o que fazer, divididas entre o desejo de me ajudar a levantar e o medo de contrariar sua rainha.   Sem problemas – pensei – eu nem queria levantar mesmo. Queria que o chão me absorvesse. Queria sumir. Queria o vazio.  

Por fim, a ajuda veio. Senti um pano molhado limpando minha testa suada e suja de sangue. Abri os olhos e ali estava ela. O motivo da minha desgraça: Livia. 

Não interessa com quantos nomes a rebatizassem, para mim ela ainda seria a mesma Livia. A Livia que levou minha irmã. A Livia que tentou me matar. E não é como se eu não tivesse tentado. Eu tentei, em mais de uma ocasião, desistir desse sentimento avassalador de vingança. Eu tentei deixar pra lá. Mas a ideia de tê-la mais vulnerável e desprotegida do que antes era embriagante demais para se dissipar.  

-Me deixe – eu sibilei, tentando me erguer para sumir dali, mas caindo novamente ao sentir toda minha força se esvair. 

-Se eu te deixar aqui, até o final do dia, teremos uma pira funerária queimando no meio da aldeia e eu sei que Gabrielle nunca se perdoará. 

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Eu não me lembro em detalhes como fui removida dali e transferida para ala da enfermaria da tribo. Acredito que oscilei entre inconsciência e semiconsciência por muito tempo. Lembro de sentir mãos cuidadosas aplicando cataplasmas gelados em diversos pontos do meu corpo, de ser obrigada a sorver goles pequenos de vários chás amargos e de ser limpa e alimentada todos os dias. Somente no terceiro dia que tive consciência clara de que a pessoa responsável por esses cuidados era ela, Livia. Senti raiva. 

-Você zomba da minha dor – resmunguei amargamente ainda incapaz de levantar. Uma lágrima, não de tristeza, mas de amargura, teimava em escorrer pelo canto do meu olho. 

-Varia, escute. Eu não acho que seja de alguma ajuda eu tentar me justificar aqui. Sei que acabei com a sua vida de maneiras irreparáveis, e nunca pedi perdão por isso, porque não acho justo te colocar numa posição em que você deva considerar me perdoar, quando eu mesma não me perdoei por todas as coisas que fiz de ruim no passado. Mas, ainda que a contragosto, eu entendi que minha morte de nada valeria para resolver isso, pois me privaria de tentar fazer algum bem enquanto posso para tentar equilibrar as coisas. Minha mãe me ensinou isso e eu lamento que ela não tenha sido capaz de entender isso ela mesma no final de tudo. 

-Eu também lamento – eu disse com sinceridade, apesar da minha raiva. 

Era verdade. Ainda que Xena tenha me frustrado por inúmeras vezes, ainda que a nossa relação tenha sido conturbada pelo meu ódio avassalador por Livia, eu respeitava a guerreira que Xena era. E era uma pena que o mundo a tivesse perdido da maneira que perdeu e ainda que meus sentimentos por Gabrielle nesse momento fossem um misto de vergonha e amargura, eu me preocupava com o futuro que nossa tribo teria se Gabrielle não encontrasse as forças necessárias para voltar a ser a guerreira justa e compassiva que sempre foi. 

Não que eu duvidasse da sua força ou da sua capacidade militar. Havia tido provas de que ela continuava intacta, o que ficou bem claro pelos acontecimentos recentes. Quando sequestrei Livia e a trouxe para o acampamento amazona a fim de lhe dar um julgamento correto sem interferências, eu não havia imaginado que Gabrielle voltaria de sua viagem com a velocidade que voltou e muito menos que após dias exaustivos na estrada teria forças para desmontar do seu cavalo e voar como um raio para cima de mim. Parecia que a marca dos nós de seus dedos ainda jazia no osso do meu rosto. Não, a guerreira ainda estava lá. Mas agora havia algo impiedoso nela, que o luto havia despertado. 

-Deixe-nos.  – senti a voz áspera ecoar na tenda. Olhei para o lado e ali estava ela. Livia suspirou, sabendo que não adiantaria protestar e deixou o recinto. 

Seus olhos estavam frios e sem emoção. 

-Por três vezes você tentou executar Eve, e por três vezes você falhou.  – Dirigiu a palavra a mim. – É uma pena não ter aprendido nada. Isso soma um total de 4 atentados contra a Nação Amazona…  

-Não entendo, minha rainha. – disse eu um pouco confusa. 

-Varia, Varia… – havia um traço de indulgência cínica em sua voz – Tem muitas coisas que você não entende. Você é uma criança teimosa e imatura, mas o que torna as coisas mais graves, é que diferente de uma criança de verdade, você é uma ameaça ao seu povo. Veja bem… Você tentou me matar no meio de nossa batalha contra Belerofon. Você tentou executar sua rainha pelas costas… 

Um traço dolorido de vergonha me atingiu. Era verdade que eu havia tentado fazer aquilo para salvar o resto da Nação Amazona no calor da batalha, mas havia sido uma decisão estúpida. 

-Me perdoe – a voz saiu com dificuldade. 

-Ah não, não. Eu já havia te perdoado na ocasião. Honestamente eu não me importei tanto comigo naquele momento, mas confesso que minha perspectiva sofreu algumas mudanças recentemente. Mas de todo modo… Sua tentativa de assassinato se soma com as três ocasiões em que tentou executar Eve. O que você não sabe, é que Eve é uma princesa amazona, Varia. Pois é, poucos sabem, mas quando bebê ela recebeu meu direito de casta. 

– E depois quase aniquilou a nação amazona, as vendendo como escravas. – Eu disse entre os dentes. 

-Sob o comando de Ares, o mesmo Ares ao qual você se aliou para tentar matá-la. Muito nobre da sua parte, não é? Não… Nobre não. Estúpido, imagino que seja a palavra mais adequada para alguém tão egocêntrica que mal percebeu ter virado um joguete nas mãos de um deus igualmente estúpido. 

Certo. Mais um soco, dessa vez no meu ego. Não havia motivos para eu sentir ódio de Gabrielle, pois ela estava certa. Isso não quer dizer que eu me sentisse bem com as palavras que ela despejava. 

-A Lei Amazona deixa claro que atentar contra sua rainha ou contra a princesa amazona fora de um desafio formal é punível com execução, Varia. Para a sua sorte eu não sou adepta de levar essas leis à risca, como você bem sabe. Me chame de progressista, se quiser…  

-Eu aceito a minha pena. Me execute. – Era o que eu queria afinal, o vazio e o esquecimento. Talvez fosse a única coisa que pudesse aplacar a minha dor nesse momento. 

-Você será banida em vez disso. Eu te sentencio ao exilio na floresta da Kalamiaris, onde você deverá passar quatro luas, sem suas armas e sem nenhum equipamento de proteção. Se você sobreviver, poderá voltar à tribo se assim desejar. Caso não queira retornar, poderá seguir livre a vida que quiser, mas nunca mais deverá pisar em solo amazona. E Varia, não tente trapacear. Eu saberei.