Eu caminho até perto do córrego que abastece a água utilizada no acampamento amazona. Eve está lá, sentada embaixo de uma oliveira parecendo estar em completa serenidade. 

Me aproximo cautelosamente para não interromper sua meditação e paro a alguns metros de distância. Seus olhos estão fechados e suas mãos posicionadas formando um símbolo estranho. Suponho ser algum tipo de técnica hindu que ela aprendeu. 

Aproveito a ausência do olhar dela para analisar cada pequeno detalhe de seu rosto suavemente angulado, o caimento de seus cabelos e seus lábios bem desenhados. Me fixo um pouco mais de tempo nesse último detalhe, suficientemente distraída por eles para não perceber que seus olhos estavam abertos. 

-Olá, amazona. – diz ela rindo um pouco – Perdeu algo perto do córrego? 

Sua voz estava um pouco mais áspera do que o normal, o que era natural considerando o que havia passado. 

-Eu espero que não – respondi me sentando ao lado dela.  – Mas tive muito medo de perder. Você não devia ter voltado por mim. 

-Eu voltei e ambas estamos vivas. Só vantagens. – Ela responde calmamente. – Obrigada, minha salvadora. 

-Parece que fechamos o círculo, afinal. 

-Sim, e agora? Pronta para voltar a ser uma amazona? 

-Parece que você estava certa. O meu lugar é aqui. Mas aparentemente ambas caímos num plano ardiloso de Gabrielle. 

Eve solta uma gargalhada gostosa e descontraída, e acaba tossindo um pouco. 

-Existe sabedoria até mesmo em planos ardilosos. Mas não a culpe por inteiro. Ela não estava sozinha nisso. 

-Você sabia de tudo? 

-Não, eu não… Uma certa guerreira. 

Arregalo os olhos um pouco incrédula. 

-Xena? 

-Pois é. Bom, era bastante óbvio que a conexão delas transcendia a barreira entre os mundos, mas eu não pensei que minha mãe usaria seu tempo etéreo para armar pequenos esquemas e fofocar sobre as coisas que acontecem nas florestas por aí. 

-Isso explica o fato de Gabrielle frequentemente olhar para pontos aleatórios no “nada”. E nós o tempo todo achando que ela não estava bem. – Digo pensativa – Espera aí, Xena sabe sobre TUDO que ocorreu na floresta??? – pergunto ruborizando levemente. 

Eve dá de ombros e sorri. 

-Existe algo que ocorreu lá que você queira esconder? 

-Acho que não teria muito sucesso nem se tentasse. Eve… Nós… Eu… Eu preciso dizer algo, algo que talvez mexa em uma ferida, mas eu sinto que se eu não falar sobre isso agora…  Você disse que nunca havia me pedido perdão porque não se achava digna do direito de me fazer precisar considerar te perdoar. Eu só queria dizer que… Todas as vezes que você cuidou de mim lá fora, mesmo eu sendo horrível com você, dizem tanto quanto um pedido de perdão. E se vale de algo, eu te perdoo.  Espero que você possa me perdoar também, e o mais importante, perdoar a si mesma. Nenhuma de nós é a mesma pessoa do nosso passado, eu entendo isso agora.  

-Obrigada – ela diz com um sorriso triste. Uma lágrima solitária escorre pelo canto do seu olho. – No tempo que andei com Xena e Gabrielle eu aprendi muitas coisas. Elas costumavam dizer uma frase que sempre me fez refletir “É mais fácil acreditar em si mesmo quando alguém mais também acredita”. Eu não sei se algum dia terei paz de verdade pelas coisas que fiz, isso só o tempo vai dizer.  Enquanto isso, eu continuarei fazendo o máximo que puder para mudar a realidade para a melhor, como Xena. Mas… É bom sentir algo diferente de arrependimento e pesar.  

-Xena tinha uma vantagem a mais. 

– Um chakram? – ela pergunta, rindo e secando a lágrima. 

-Uma amazona teimosa ao lado dela. – Rimos por um momento. Eu tomo coragem e seguro a mão dela, entrelaçando meus dedos nos dela – Gostaria que eu equilibrasse as coisas ao seu favor? 

-Tenho que pensar a respeito – Eve diz, com falsa seriedade. – Eu te disse que não queria ser uma Rainha Amazona. Mas talvez uma rainha consorte, seja negociável. – ela diz me dando um soquinho no braço. 

-Sobre isso, eu não posso garantir. Gabrielle é muito melhor nesse trabalho do que eu. 

-Você é muito boa em muitas coisas também.  

Eu sorrio e levo minha mão ao rosto dela, tirando uma mecha de cabelo que teimava em cair, mas minha mão permanece lá por mais tempo que o necessário. A puxo suavemente para um beijo e sinto ela se entregar ao momento. É diferente do primeiro, não tem a mesma urgência e o mesmo sentimento de medo. É profundo, e é sereno.  É cheio de promessas, mas cheio de respostas. É como um dia calmo, dentro de um furacão.  

Mas ele é interrompido. Vozes estridentes gritam em uníssomo. 

-Varia e Eve, se beijando na oliveira, Eve com a Amazona, e Varia com a guerreira. 

Um grupo de crianças termina de cantar e sai correndo. 

-Acho que vamos virar a fofoca da vila – diz Eve, rindo. 

 

—- 

Eu caminho até a tenda de Gabrielle, anuncio minha presença e entro. 

-Rainha Gabrielle… 

-Varia, por favor, me chame só de Gabrielle. Isso não é necessário – ela diz um pouco impaciente. 

-Tudo bem, me desculpe.  Gabrielle, temos um problema. 

Gabrielle olha para o lado e ri. 

-Se um problema fosse tudo que tivéssemos, tudo seria resolvido tão facilmente.  – ela fala depois de alguns segundos. Tenho a impressão de que ela apenas repetiu uma frase que havia acabado de ouvir. Instintivamente olho para o lado, mas sei que ver Xena é algo reservado apenas à alma gêmea de Xena. – Mas me diga. 

-Eve. 

-Eve é um problema? 

-Eve quer me dar o direito de casta dela.  

Gabrielle ergue uma sobrancelha. 

-É disso que vocês jovens tem chamado ultimamente? 

-O que… – franzo a testa confusa, só entendo quando percebo um sorriso dela me zombando – Não! Gabrielle!  

Ela ri, olhando para um pergaminho por alguns segundos, levando tempo como se ponderasse sobre o que eu havia dito. 

-Bom, o direito de casta é dela, e ela pode abrir mão dele em qualquer momento. Foi assim que eu recebi o meu, embora a amazona que me passou, tenha feito enquanto morria.  

-Mas você é a Rainha agora! Você é justa e sábia, e vai liderar a Nação Amazona à ascensão! 

-O direito de casta te torna legitimamente minha sucessora, Varia. Ele formaliza algo que já estava acontecendo. Marga o teria passado para você, se não tivesse morrido antes. Se você o receber agora, apenas terá algo que já seria seu. 

-Mas você não precisa de uma sucessora! Você é muito jovem e viverá por muitos anos. 

-Sabe que eu perdi as contas? Mas posso te garantir que já passei dos 50… – ela diz rindo do comentário atípico. Nada era muito “comum”, quando se tratava da vida de Gabrielle. – Mas sim, eu preciso.  

Fico confusa por alguns minutos, e espero ela continuar. 

-Tem algo que eu preciso fazer, que envolverá uma longa jornada. – Gabrielle olha por cima do meu ombro e sorri suavemente – Eu compreendo que tenham pensando que eu permaneceria aqui por mais tempo. Eu amo a nação amazona. Sempre amarei e sempre farei tudo por ela. Mas… 

-Mas você também ama Xena – completo a frase, entendendo do que se tratava. 

-Eu acho que agora você entende, não é? 

Eu aceno assentindo. Ela continua. 

-Algo novo surgiu. Uma possibilidade. Uma chance que não posso perder. Mas eu terei que voltar ao oriente. Vai ser uma jornada longa e dolorosa, que eu preciso fazer sozinha. 

-Exceto que você não fará sozinha.  – Observo. 

-Eve te contou, não é? – assinto com a cabeça – Ela disse que Marga mandou avisar que te ama muito e se orgulha de quem você se tornou. 

Meus olhos ficam marejados. 

-Varia, eu fui dura com você, e você sabe que foi necessário. Mas hoje você é a pessoa certa para cuidar da Nação. Você terá ajuda, eu tenho certeza. Não consigo pensar num par mais inusitado, mas ao mesmo tempo, mais adequado para a tarefa. 

-Eu tenho medo. 

-Estranho seria se não tivesse. Quando você arrisca o seu coração, seja pela sua companheira de jornada, seja pela sua tribo, o medo é uma reação natural. Eu sempre senti medo. Xena sempre sentiu medo.  É o preço que se paga por amar. 

-Você acha que se trata disso? – ela ergue uma sobrancelha – Você acha que é isso que ela sente por mim? Digo… E-eu perguntei. Ela disse que queria me dar um soco por perguntar. Ela nunca disse assim, com palavras. E-eu… Eu não sei muito sobre…essas coisas. 

-Varia, eu te juro que por um minuto você me lembrou muito um velho amigo meu. Exceto que ele era homem, e usava um chapéu pontudo. – ela ri se divertindo com a minha falta de jeito. – Você consegue arrancar o coração do inimigo ainda pulsando, mas não sabe o que fazer quando ganha o coração de alguém? 

-Ela teve inúmeras pessoas no passado. Eu…ninguém. E se eu estragar tudo? 

-Livia teve inúmeras pessoas. Eve nunca teve ninguém – ela diz e sorri um pouco saudosa. – Eu lhe entendo, Varia. Já estive em seu lugar, e a sensação era como a de olhar em uma lagoa profunda, hipnotizada pela água, mas morrendo de medo de não conseguir nadar.  

-Como você lidou com isso? 

-Eu confiei na água e deixei ela me levar. – Ela sorri, olhando para o lado. – Olha, eu tenho algo para vocês duas. É um pergaminho que escrevi noite passada. Diz muito sobre mim e Xena, mas ela sugeriu que seria um bom presente para vocês. Só peço que abram somente quando eu partir, tudo bem? 

Eu aceno que sim. 

-Vá. Preciso falar com Eris agora. Precisamos preparar sua coroação. 

—– 

A máscara recebida por Gabrielle e o colar que ela acabava se amarrar em meu pescoço tinham um peso que iam muito além do físico. Eu já estive nessa situação no passado, mas agora era completamente diferente. Agora era uma chance que eu não arruinaria com meu ego. Aquela Varia havia perdido tudo, para que essa de agora pudesse se reencontrar. Eu realmente sentia o propósito de fazer a Nação Amazona ascender novamente. Sabia que uma vida de trabalho duro me esperava para construir o que havia sido destruído no passado. Mas Eve estava ao meu lado, sorrindo com orgulho, tal qual Xena esteve ao lado de Gabrielle, sorrindo orgulhosa todas as vezes que ela precisou assumir seu posto de rainha. Eu seguro a mão dela e nossas mãos se levantam juntas, gritando para minha tribo. 

“Por uma Nação Amazona forte!” 

“Por uma Nação Amazona forte!”