10 – Rancores

Entrando pelo lado oeste, ficou observando a princesa sem que ela percebesse sua presença. Realmente estavam ali todos os sinais de uma grande dor sendo iniciada. A princesa fechava os dentes e os olhos numa tentativa de não emitir nenhum som ou sinal de fraqueza. Xena já tinha visto tal atitude em homens torturados. Era inútil. Fatalmente a dor iria dominar cada espaço do corpo e cada momento da alma. Lentamente tomou a decisão de que iria saber mais sobre esta dor.

– Estás tão quieta amazona. Tuas lágrimas são silenciosas. O que está acontecendo?

–As dores voltaram com força majestade. Sua majestade ordenou silêncio de meu povo, estou fazendo o que posso para honrar seus comandos.

–Por que estás lutando contra a dor? Onde dói?

–No corpo todo senhora.

–Como é esta dor?

–Queima, ao mesmo tempo que arde como um corte de aço lavado com vinagre ou vinho forte. É momentos de dor intercalados com calma.

–Quanto tempo dura a dor?

–A medida que a lua sobe no céu, vai se tornando mais forte e com menos tempo de calmaria.

–Quando começou?

–Desde a anterior lua cheia.

–Não ficas inconsciente? Não dormes?

–Não. Talvez este seja o objetivo. Não sei. É uma doença muito estranha.

–Tua comandante da guarda implorou novamente por teu medicamento. Devo atendê-la? Parece que o famoso orgulho amazona está sendo substituído por areia.

–Não sei majestade. Vossa Majestade faz sempre o que lhe parece agradável. A dor de meu povo lhe agrada? Juro majestade que não tivemos intenção de ofendê-la, nem somos de maneira alguma traidores. Gabrielle fazia o maior esforço para conter os gritos que teimavam em tentar escapar de sua boca. Segurava-os em gemidos cada vez mais frequentes.

– Eu realmente gosto de ver até onde vai a capacidade de se humilhar das amazonas. Talvez dê mais uma chance. Yolker!

– Sim minha senhora.

– Solta-a do poste e traga-me a curadora amazona.

Quando Iodia chegou, observou lentamente Gabrielle, voltando a colocar seu olhar no solo.

– Quero que ministres o medicamento em tua princesa, depois coloca-a confortavelmente deitada sobre as peles próximas ao fogo. Quero que ela durma bem. Podes fazer isso?

– Sim Conquistadora .

– Bom. Faz e volta pra tuas irmãs em teu lugar e não diga nada disso a ninguém ou poderei não ser tão misericordiosa amanhã. Enquanto fores obediente, pretendo permitir que a trates.

– Sim Conquistadora .

Caindo em seus joelhos e tocando o solo com a testa, Iodia repete o gesto três vezes, dizendo obrigada, obrigada , obrigada. Xena sabia bem o que significava. Que agora estava em uma dívida de vida. Interessante, pensou, isso podia vir a ser útil um dia.

Saiu para caminhar no acampamento, observando as amazonas de longe, indo até as árvores subindo com facilidade passando de árvore em árvore até estar acima delas. O vento agitava as árvores e as águas do lago onde as amazonas estavam no limite do esgotamento depois de ficar imóvel, em uma mesma posição por cindo marcas de vela ininterruptas após haverem caminhado por sete marcas de vela, era extremamente forte e a Conquistadora sabia que Elthor não veio em passo manso mas num trote marcado. Elas mantinham silencio e nenhum outro tipo de comunicação entre si. Xena tinha de reconhecer que cumpriam as ordens estabelecidas.

Seis homens apareceram na frente do grupo, olhando, comentando, escolhendo. Estavam embriagados, sendo que três pareciam ser superiores aos outros e se adiantaram na provocação.

– Vamos Lesinius, não vais afastar a possibilidade de tocar numa amazona de verdade , vais?

– Deixa disso Marcel, não vou tocar nestas prostitutas. A Conquistadora determinou que nenhum de seus homens deveriam tocar nelas de forma alguma e eu não irei contra os desejos da Conquistadora .

– Você está com medo. Ela quis dizer naquele momento. Agora estão aqui para que nós vejamos bem . Pra gente escolher. Soube que a Conquistadora vai colocar as vagabundas a prestar serviço no exército. Zeiman, elas terão de servir a todo o exército , se é que me entendes. Mulheres não servem pra guerrear.

– Não fale assim homem. A Conquistadora é uma mulher Marcel e te esfolaria vivo se te escutasse, mesmo sendo um de seus oficiais.

– E eu não sou um de seus homens, Lesinius, pertenço ao exército do General Briontis e ele sim sabe domar uma mulher. O melhor lugar de uma mulher servir é de pernas abertas dando prazer a um homem.

Zeiman concorda com Marcel.

– Nós vamos ensinar estas vagabundas que nunca deveriam ter pegado uma arma.

– Lesinius, não tenho medo da Conquistadora e sirvo com o general Briontis, mas todos pertencemos ao exército dela.

– A Conquistadora é uma grande guerreira e sabes disso.

Os outros três ficam a observar as mais jovens amazonas e fazendo comentários sobre elas e o que fariam se as tivessem em sua tenda. Dieynisa, Karin, Lara e Deian imitando suas superiores, faziam seu melhor para ignorar a presença dos homens.

Marcel chega na frente de Ephiny e percebe que está cheia de contusões.

– O que você fez, mulher, não soube dar prazer a teu dono e encontrou um homem que a colocou em seu lugar?

Ephiny baixa os olhos e responde como Elthor tinha instruído que deveria.

– Não senhor, eu desagradei a Senhora Conquistadora ao responder uma pergunta.

– Qual foi a pergunta?

– Não cabe a mim revelar senhor.

– Você sabe com quem está lidando, animal?

– Não senhor, eu não sei. Realmente não sei.

– Eu sou Marcel de Tiontes , comandante das forças especiais do sul. Quando eu faço uma pergunta, exijo uma resposta. Agora, vamos novamente. Qual foi a pergunta que respondeste de forma equivocada a senhora Conquistadora ?

– Não cabe a mim revelar , senhor. Somente à Conquistadora cabe divulgar suas ações.

Marcel puxou seu punhal e ia crava-lo em Ephiny , mas Lesinius interviu.

– Deixa disso Marcel, vamos procurar diversão com uma mulher que saiba dar prazer. Esta aí não daria prazer nem a um cavalo. Fazendo sinal a Zeiman para que o ajudasse a convencer Marcel e sair dali, Lesinius puxou o companheiro para um passo atrás.

– Vamos Marcel. Depois, se a Conquistadora resolver vende-las amanhã, poderás compra-la e te divertir quebrando-a peça por peça.

Pelo menos ela tem o bom senso de saber seu lugar, Zeiman completou, e Marcel se deixa convencer, mas não sem antes prometer a Ephiny que ela iria se arrepender.

Xena segue mais adiante nas árvores, descendo silenciosamente próximo ao lago. Ajeita sua capa e oculta interpela o grupo de soldados quando passavam por ela.

– Está uma boa noite para caminhar soldados.

– Você sabe com quem está falando? Eu sou Marcel de Tiontes. Mostre-se na luz.

A Conquistadora sai da escuridão para a luz das tochas e os homens se colocam em prontidão.

– As suas ordens Conquistadora .

– Está corajoso hoje Tiontes.

– Não quis parecer desrespeitoso, majestade. Não sabia que era a senhora.

– Parece que o comandante bebeu mais do que poderia segurar. Levem-no a sua barraca e fiquem de guarda, garantindo que ele tenha um resto de noite de descanso e não saia até o amanhecer. Quanto a você Lesinius, venha me ver na primeira hora da manhã. Boa noite senhores.

Seguindo seu caminho, passa na frente das amazonas.

– Em seus joelhos, todas vocês .

Elas cumprem imediatamente o comando.

– Com a lua alta no céu, quase iniciando a madrugada eu ainda não decidi o que farei com vocês nem qual é o seu real propósito aqui, mas permitirei que deitem para descansar. Todas vocês menos uma.

Escolhendo Karin a Conquistadora aponta pra ela.

– Você deverá entrar no lago e trazer este chobo que não deverá ficar muito tempo na água por que eu gosto dele. Se sua atuação me agradar, talvez permita que o medicamento chegue até sua princesa.

Dizendo isso lança o chobo na água. Karin sai correndo e se lança no lago, localizando o chobo pela luz da lua. A cada braçada Karin faz um agradecimento a Artemis por ser lua cheia. Traz o chobo e o devolve à Conquistadora que chama um guarda e dá instruções. Ele lança o chobo novamente na água e após instantes de hesitação Karin sai correndo em direção do som. Xena dá um sorriso e vira as costas ao grupo.

Ephiny , lembrando-se da fala da Conquistadora quando disse que se Eponin sobrevivesse ao embate com um de seus homens, elas poderiam provar seu amor por Gabrielle, entende a proposta e ainda de joelhos lança uma prece à Caçadora , para que Karin sobreviva a esta provação. Suas irmãs acompanham o sentimento e as mais jovens sucumbem ao cansaço, enquanto Karin ia e voltava numa dança terrível nas águas do lago.

Xena voltou até a barraca de comando onde seus generais e oficiais mais próximos estavam aguardando para dar início ao jantar.

A conversa fluía solta sobre as manobras do dia e as táticas utilizadas por cada esquadrão para proteger seu bandeira. Ao final de três dias a contar de amanhã seria proclamado vencedor aquele que possuísse mais bandeiras adversários e as apostas corriam soltas. Xena estava formando uma teoria sobre seus comandados, de que eles deveriam ser realmente testados e cobria qualquer aposta.

– Parece que seu comandante se retirou da festa mais cedo Briontis. Eu o vi embriagado caminhando na orla do lago e o mandei deitar.

– Ele é um bom soldado majestade. Deve ter ido olhar de perto as prisioneiras, pois tem um profundo ódio às amazonas. Quando estava como oficial de patrulha, recebeu noticias de sua vila ter sido atacada por um bando destas mulheres e sua irmã raptada . Ele é plenamente confiável, tendo sido decisivo em várias ocasiões. Somente um campo de treinamento faria com que Marcel baixasse a guarda o suficiente para beber demais, minha senhora. Amanhã ele será repreendido e punido.

– Não será necessário. Ele não disse nada que não fosse verdade, embora temo que irá decepcionar-se com as amazonas. Estas não parecem ser de tribos que dizimam povoados e raptam crianças. Tenho planos muito interessantes para elas.

– Eu gostaria de comprar a loirinha pequena com cabelos presos majestade. Ela parece da idade certa para ser adestrada.

– Acompanho Dionir nesta solicitação, majestade. Mas prefiro aquela com cabelos curtos. Faz tempo que não treino pessoalmente uma escrava.

– Sempre há tempo pra isso Icer. Já definiste o destino destas mulheres, minha senhora? Parece que uma delas tem realmente afinidade com as armas. É verdade que Dietar não era nenhum calouro, não lhe parece?

– Realmente foi uma surpresa ela ter conseguido não só sobreviver, como fazer isso sem um corte. Tenho uma ideia que pouco a pouco vai tomando forma Gylmnir, elas podem ser uteis a sua maneira. Vamos ver o que a noite nos reserva. Agora mesmo uma de suas jovens está a provar sua resistência nas águas do lago. Vamos ver…

Assim foram andando as bebidas, as comidas e o divertimento. No iniciar da segunda marca de vela do dia, Xena despediu seus oficiais e retirou-se para dormir, na barraca onde certa princesa amazona aguardava, nas peles junto ao fogo .

Xena entrou, retirou sua armadura colocando sua espada ao alcance da mão e o chakram sob as almofadas, adormecendo quase que instantaneamente.

Três marcas de vela depois, Gabrielle levantou-se lentamente, ficando a observar a Imperatriz do mundo conhecido dormir. Sentiu um movimento a sua direita e percebeu que havia outra pessoa na tenda. Imediatamente colocou-se entre o invasor e a Conquistadora, usando suas mãos como arma, imobilizou o invasor, derrubando-o. Xena acorda e chama os guardas que separam Gabrielle de Yolker.

Yolker assustado por ter perturbado o sono de Xena , curva-se e sussurra desculpas sobre desculpas.

– Eu peço perdão por tê-la acordado majestade, eu apenas vim trazer seu chá para que estivesse a mão quando desejasse e esta prisioneira me atacou como um tigre enfurecido.

Xena observava a cena com curiosidade e ria com gosto.

– Então meu animal de estimação resolveu que seria um animal de guarda. Com certeza não deixarias ninguém tocar em mim , pequena.

Profundamente envergonhada, Gabrielle não sabia o que dizer. Isto era extremamente raro , mas as palavras fugiram dela e tudo que podia fazer era olhar para o solo e aguardar a decisão da Conquistadora .

A Conquistadora dispensa os guardas e diz para Yolker que volte dali a duas marcas de vela.

Gabrielle em pé no centro da tenda, começa a tremer devido ao esforço. A Conquistadora então faz algo inusitado. Chama Gabrielle para perto dela.

– Por que tremes assim, pequena?

– É a dor, senhora ela diminui com o avançar do dia, mas com esta agitação ficou mais acentuada.

– Vem, deita no tapete ao lado de minha cama. Talvez estando próximas , possamos nos proteger mutuamente. E assim Gabrielle foi deitar ao lado de Xena , que voltou a dormir como se nada tivesse acontecido.

Trincando os dentes para não fazer nenhum barulho, preocupada com o que a Conquistadora quis dizer chamando-a de animal de estimação, Gabrielle não conseguiu evitar de gemer a cada respiração, mas a medida que o dia avançava a dor ia se tornando mais tolerável.

Passado algum tempo, Xena abriu os olhos e observando a luminosidade percebeu que amanhecia. Levantou-se buscando sua armadura e vestindo-se rapidamente saiu para a frente da barraca. Ao perceber a presença da Conquistadora, Ephiny colocou-se imediatamente em seus joelhos, com as mãos na cabeça, instando as demais para assumir tal posição. Talvez, pensava ela, se demonstrassem humildade e respeito, a Conquistadora permitiria que Gabrielle fosse atendida.

Xena olhou curiosamente para o lago e viu aquele corpo se movendo lentamente nas águas. Já houvera duas trocas de guarda, mas parece que a tarefa foi passada junto com o turno. Os guardas que não estavam de serviço sentaram na encosta para ver a amazona nadar em busca de um chobo. Caminhando até o grupo, parou ao lado do guarda que estava lançando o chobo e pediu relatório.

– Quantas vezes ela parou para descansar Meehiel?

– Nenhuma em meu turno majestade e nada me foi relatado pelo meu antecessor.

Xena ordena que o chobo lhe seja entregue e fica olhando para Karin, que com muita dificuldade havia subido o aclive, estando parada a sua frente tremendo de frio .

– Qual seu nome?

– Karin, minha senhora.

– Quantos verões tens Karin?

– Dezesseis, senhora.

– Está com fome? Frio?

– Sim, minha senhora.

– Se eu lhe concedesse um desejo, um pedido, o que escolheria? Comida? Algo quente? Permissão para dormir? O que seria Karin? Algo viável, pois seu julgamento ainda não foi feito.

– Que minha princesa recebesse alimento adequado e pudesse tomar seu medicamento, senhora. Karin responde sem hesitar um instante .

– Realmente? Curioso.

Ephiny eleva silenciosamente uma prece a Artemis para que o pedido de Karin fosse considerado. Estava nesta prece quando a Conquistadora toca com a bota em Iodia e lhe diz que vá até sua barraca atender a princesa que teve um pequeno acidente tropeçando em seu ordenança.

–Aparentemente Gabrielle machucou o braço.

Ephiny olha fixamente para a Conquistadora mas rapidamente baixa o olhar, não sem antes fazer sinal impedindo rapidamente Solari de reagir.

–Guarda!

Um guarda surgiu, colocando o punho sobre o coração e aguardando em prontidão.

– Conquistadora.

– Providencie pão e queijo para todas elas e depois de comerem coloca-as em pé viradas para o leste. Quero que apreciem o calor do sol em seu rosto.

– As suas ordens Conquistadora .

– Menos esta, diz apontando para Karin em pé a sua frente. Ela tem permissão para ficar deitada e dormir depois de comer.

Voltando a sua tenda, Xena encontra Iodia terminando de enfaixar o braço de Gabrielle. Iodia percebe a entrada de Xena mas não modifica um momento suas atenções. Gabrielle tenta levantar-se, mas Iodia segura-a no lugar dizendo que falta pouco e ela não deveria mover-se enquanto está sendo medicada.

Surpresa com a coragem da sanadora, Xena lhe passa o odre com o medicamento e imediatamente Iodia ministra a dose correta, antes que Xena mude de ideia e retire o odre de alcance colocando-o sobre a mesa ao lado.

– Novamente ninguém de teu povo pode saber disso amazona. Enquanto tu mantiveres este tratamento em segredo, sanadora, penso em talvez permitir que tua princesa venha ser medicada. Afinal, não gosto de ver ninguém sofrendo algo que eu não tenha ordenado. Volta a teu povo e usa o alimento e pouco tempo de descanso sabiamente. Dispensada.

Iodia respeitosamente se curva para Xena e sai, quase esbarrando no sentinela que estava entrando.