A clareira ao lado da ravina
por DietrichEu não consigo entender o tempo enquanto estou esperando por ela. Sei que fiz muitas coisas esse dia inteiro. Cacei, afiei minha espada, preparei comida. Respondi a uma ou outra pessoa que ainda se atrevia a tentar ter algum tipo de conversa comigo.
Durante esse dia inteiro, já estou na clareira, já estou lá e não entendo como ainda não estou lá. Meu corpo dói porque não estou lá.
O acampamento, por fim, se recolhe. Desapareço rápido entre as árvores e sigo o caminho tortuoso até aquele local. É verdade? Ela vem mesmo? Ou preparou uma emboscada para mim? Chegarei lá e terão cem homens para me matar?
Preciso me acalmar um pouco antes de prosseguir. Não posso deixar uma imprudência ficar no caminho dos meus propósitos. Ando devagar, atenta para armadilhas ou som de passos. Não há nada. Apenas a solidão me encontra lá.
Sento no chão e aguardo. O tempo desaparece novamente até eu ouvir passos, e sei que são dela.
Ela vem com espada na mão e armadura completa. E finalmente o vejo. O chakram na cintura.
– Pronta? – ela pergunta.
Há anos, eu penso. Mas respondo um simples:
– Sim.
Ela dá o primeiro golpe. E entramos em nossa dança selvagem.
Nada pode explicar isso, nada.
Sou páreo para ela em cada golpe de espada, em cada chute e soco, em cada giro e cambalhota. Toda vez que pausamos um momento a vejo sorrindo, uma intensidade tão grande em seus olhos que acho que aí pode residir minha fragilidade. Se torna ainda pior quando ela fala:
– Você é tão boa, Callisto. Porra, você é tão boa.
Me sinto entorpecida por um milésimo de segundo que não devia e ela acerta um chute em meu rosto. Caio, mas me levanto a tempo de desviar da espada dela e acertar o punho em suas costas. Aquilo não é nada, ela se recupera e voltamos ao nosso paralelismo de antes.
Ela dá vários mortais para trás e lança o chakram na minha direção. Não sei o que me faz fazer aquilo, mas eu simplesmente o agarro.
Aquilo faz o queixo dela cair.
Giro a arma circular em meus dedos. Aquela arma é tão dela – é como se eu a tivesse inteira em minhas mãos.
– É lindo – eu falo – você quer de volta ou posso ficar com ele?
O queixo dela já voltou ao lugar.
Coloco o chakram na minha cintura e os olhos dela se estreitam.
– Fica bonito em mim, você não acha?
Ela me ataca novamente. Meus músculos já estão doendo do esforço, mas tudo continua igual. Não existe nada mais arrebatador que aquilo. Eu poderia lutar com ela até morrer.
Eu e ela somos almas malditas. Iremos para o mesmo lugar no pós morte. Me pergunto se a verei lá, se poderei lutar com ela pela eternidade no Tártaro.
Ela está furiosa porque estou com o chakram. Está tentando duramente ganhar uma vantagem e não consegue ultrapassar o nosso infindável empate.
Deve ser por isso que fez aquilo.
A única coisa capaz de me distrair.
Num momento em que estamos próximas, ela encosta os lábios nos meus e me beija. Eu vacilo. Não tenho ideia do que fazer. Nunca beijei ninguém em minha vida. Não sei porque as pessoas se beijam.
Sinto o riso dela contra meus lábios e vejo que o chakram já não está mais em minha cintura.
– Voce é a porra de uma virgem – ela fala, e se afasta.
Estou tonta. Se ela me atacasse naquele momento eu perderia. Mas ela não me ataca e eu me recupero. Estou irritada.
– Golpe baixo, Xena.
– Vale tudo na guerra, Callisto. Aprenda isso.
Ainda não sei o que dizer. A odeio tanto naquele momento.
– Por hoje é só – ela guarda a espada – mas isso acontecerá de novo. É bom demais para ser verdade e eu vou aproveitar ao máximo – ela dá as costas e some.
Permaneço lá, no frio enregelante que eu não tinha sentido antes porque estava em movimento. Tem coisas demais acontecendo dentro de mim e não me sinto capaz de entender. Solto um grunhido e cubro meus olhos com a mão. Eu a odeio. Eu a adoro. Eu quero matá-la. Eu quero estar com ela pela eternidade.
***
Faço muitas coisas nos intervalos entre meus treinos com ela. Mal posso descrevê-las, porque elas não importam para mim. Monto e desmonto acampamentos, caço, entro em batalhas ao lado dela. Mas vivo para os momentos em que nos encontramos à noite, longe de tudo e todos.
Ela fala muitas coisas, mas são poucas as que eu realmente escuto.
Hoje à noite, Callisto.
Porra, você é tão boa.
Isso é bom demais para ser verdade.
Vou me tornando ainda melhor na arte do combate, e ela também. E depois daquele beijo, estou mais atenta. Aprendi a reconhecer o olhar que significa que ela vai tentar algo do tipo para me desarmar. E não deixo ela ter essa vantagem sobre mim.
Ao mesmo tempo, um hábito terrível, que simplesmente não consigo mais evitar, tomou conta de mim.
Escuto, ao lado da tenda dela, todas as vezes que ela pega um de seus brinquedinhos, os rapazes e moças que perambulam por sua cama. Percebi que ela faz isso todas as noites em que treinamos. E sei que é só uma questão de tempo até ela saber que estou fazendo isso.
Me deito no chão frio, uma mão sobre meu estômago, meus olhos fechados. É uma melodia funesta. Não sou a única que ela chama de vadia. Ela também gosta de “puta” e suas variações. Ouço tapas, gritos claramente abafados por uma mão, gemidos que rasgam a noite e meu corpo.
Depois eu sonho. Sonho com nossos embates. A boca e as mãos delas em mim. E aquela sensação agoniante e dolorosa que atravessa meu corpo inteiro e que me faz ter uma sensação de perda de consciência. Dói principalmente entre minhas pernas.
Odeio ser um corpo.
Tenho na mente um catálogo com o rosto de todos que ela leva para a cama. Me pergunto porque ela nunca tentou nada comigo além daquele beijo tático de batalha. Será que não sou atraente?
Nunca tinha passado pela minha cabeça se eu era atraente ou não. Não era uma questão para mim. Nunca me perguntei se meu corpo, meu rosto, poderiam despertar aquele tipo de desejo em alguém. Agora me pergunto. Me pergunto enquanto deito no chão frio ao lado da tenda dela, enquanto ouço ela usar outra pessoa.
Me olho num espelho quando eu tenho oportunidade. Acho que talvez eu seja atraente. Me pareço com outras pessoas que sei que muita gente considera atraente. Tem pessoas que gostam de cabelos loiros. De olhos castanhos. De um corpo moldado. Eu tenho essas características.
Por que tudo que ela quer de mim é a luta?
Eu sequer devia estar pensando sobre isso.
Eu a conheço ainda melhor agora. Eu conheço cada movimento do corpo dela, a contração de cada músculo em batalha, todos os tons de voz, gritos de combate, gritos de paixão, conversa casual e autoritária.
Se eu soubesse a arte de fazer estátuas, eu a moldaria com as minhas mãos sem precisar olhá-la. Ela está gravada em mim. A única coisa que não encontrei é a brecha. A vulnerabilidade por onde eu farei entrar minha espada.
Encontrei a minha fragilidade. É esse corpo fraco e odioso que deseja ser tocado por ela. É a minha vulnerabilidade. E a dela? Eu preciso encontrar. É minha única saída desse delicioso tormento.
Já estou aqui há meses. Já devia ter encontrado.
Estou furiosa. E isso transparece no meu treino com ela.
Ela sorri para mim, a duplicidade pintada em seus lábios.
– Você está picante hoje. Que bicho te mordeu? – ela pergunta.
Eu apenas solto um grunhido e a ataco. A odeio tanto. Quero matá-la naquele momento. Faço de tudo para encontrar uma abertura, perfurá-la, machucá-la. Mas ela é tão boa, deuses, ela é tão boa.
Grito, colérica, desesperada. É meu erro, meu erro fatal. Ela percebe meu descontrole e rapidamente um chute me atinge, derruba minha espada, as mãos delas me agarram e ela me joga contra uma árvore. Minha testa bate com força no tronco, me desorientando. Ela achata minhas costas com seu corpo, segurando firme meus pulsos contra a madeira áspera.
Eu luto para me libertar, mas ela me aprisiona com força demais.
– Porra! Me solta! – estou me debatendo.
– Só quando você se acalmar – a voz dela é de uma doçura venenosa.
Continuo lutando, e ela me segurando. Percebo que não estou lutando contra ela. Estou lutando contra mim, contra as sensações em mim. Me debato para fazer meu corpo parar de sentir. Mas ele não para. Finalmente desisto e paro de me mexer.
– Calma, agora? – ela pergunta.
Eu balanço a cabeça para cima e para baixo, minha testa arranhando a madeira. Ela se afasta e eu sinto um vazio. Não abro os olhos, não me afasto da árvore. Só aquele tronco me mantém em pé nesse momento.
– Parece que hoje eu venci – ela fala.
Cerro os punhos. Sinto ódio. Sinto a mão dela em meu ombro e arquejo.
– É uma pena que você seja uma virgem, Callisto. Virgens são entediantes – a mão dela saiu do meu ombro, está em meu pescoço, desce pelas minhas costas – mas você é tão… – os dedos delas agora estão em minha nuca, entre meus cabelos – tão deliciosa… que estou pensando em abrir uma exceção.
Não consigo acreditar no que estou ouvindo. A mão dela em mim é a única coisa que existe.
– Você não é só uma virgem – ela continua, agora as duas mãos dela estão em minha cintura, eu, ainda de costas para ela, pateticamente sustentada por uma árvore, enquanto minha mente e corpo lutam para entender o que está acontecendo – você nem sabe beijar. Como uma pessoa como você chega nessa idade sem sequer beijar?
Por que a única coisa em que penso há anos é em matar você. Nada mais que isso. Beijos, ou qualquer outra coisa, eu nem lembrava que essas coisas existiam.
Eu só penso, mas não respondo.
A mãos dela me viram e agora estou de frente para ela. Os olhos dela são tão impactantes que me contraio.
Reconheço aquele olhar e meu corpo reage à ele, contra mim.
Os lábios dela beijam os meus e eu de novo não sei o que fazer.
– Sabe – ela fala, a boca encostada na minha – você pode tentar me beijar de volta.
Ela captura um lábio meu entre os dela e suga devagar. Me sinto à beira de um precipício. À beira da morte.
Se eu fizer o mesmo, eu não serei capaz jamais de voltar.
Mas eu faço mesmo assim. Eu a imito. Como fiz a vida toda. Prendo um lábio dela entre os meus e sorvo.
Minha mente e meu corpo se quebram. Se ela não me segurar, eu vou cair. E ela me segura. E continua, muito devagar, e dando pausas para que eu faça também. Não tenho ideia se estou fazendo certo ou bem. Apenas tento repeti-la. Muito devagar, vai se tornando automático. Vou parando de pensar tanto. Começo a simplesmente desejar sentir o gosto da boca dela.
A língua dela passa devagar entre meus lábios e sinto que vou morrer de novo. Quantas vezes ela vai me matar antes que eu a mate?
Não sei quanto tempo aquilo demora. Ela está literalmente me ensinando a beijar, com uma paciência que eu jamais esperaria dela. Ela me leva passo a passo, apenas um pouco a mais a cada tempo. Eu continuo sem saber se o que estou fazendo é agradável ou não para ela, mas eu já estou perdida.
Adoro o sabor dela. A sensação dos lábios dela. Da língua. Começo a entender porque as pessoas gostam tanto disso.
Ela me aperta contra si. Já não é mais lento, nem suave. Ela devora minha boca, ela morde devagar e eu aos poucos retorno cada novidade que me é apresentada. Me dou conta, de repente, que minhas mãos estão enfiadas nos cabelos dela e eu não lembro quando as pus lá. A aperto contra mim e ela geme.
Quando ela finalmente para de me beijar, sinto como se tivesse sido elevada aos céus. Como se tivesse sido tocada pelos deuses. Não abro meus olhos e não me importo se pareço ridícula. Ela me beijou, e aquilo era tudo que importava.
Ela toca meu rosto e eu finalmente abro os olhos. Ela está com uma expressão que ainda não conheço e não sei dizer o que significa. Não é como ela olha para seus brinquedinhos. Não é como ela me olha em combate. Não é só lascívia.
– Você aprende rápido – ela murmura.
Eu não sei o que dizer. Estou perdida nos olhos dela.