Fanfics sobre Xena a Princesa Guerreira

    I started a joke which started the whole world crying

    But I didn’t see that the joke was on me

     

    Onze anos.

    Essa era a distância entre o agora e aquele dia.

    O dia que ela entrou na minha vida e devastou tudo que eu acreditava ser bom e verdadeiro. Palavras hoje desidratadas de sentido.

    Mãe, pai, irmã, todos mortos, mas eu ainda tinha um tio, e ele me acolheu.

    O homem, pobre coitado, tentou me arrancar dos poços obscuros da vingança e do vazio. Por ele, consegui emular por alguns anos que estava seguindo em frente. Mas o nome e o rosto dela eram um fantasma acorrentado à minha alma.

    Tudo me fazia pensar nela. Dos atos mais banais às ações mais sombrias.

    Perdi tudo aos nove. Aos treze, fugi. Durante quatro anos, caminhei sobre as cinzas de Cirra como quem ocupa um corpo só porque não tem outro. Fui uma casca com nome, uma sombra com rosto.

    Um dia, com uma faca na mão – estava cortando legumes – olhei para meu tio e desejei matá-lo. O ódio que senti foi demais para minha ainda jovem, mas já arruinada alma.

    Ele tentava me forçar a ser feliz.

    Eu não queria felicidade.

    Eu não queria seguir em frente.

    Ele estava em meu caminho.

    Se tornou evidente que só havia um propósito em minha vida.

    Fazê-la sangrar.

    Com essa aceitação, minha mente limpou-se. Tornou-se dotada de nitidez inabalável.

    Eu precisava me preparar. Precisava me tornar melhor que ela.

    Precisava me tornar ela.

    Não matei meu tio. Mas fui embora naquele mesmo dia. Levei aquela faca comigo. Usei-a na primeira pessoa que matei. A atirei em um lago. A faca e a pessoa.

    Agora tenho vinte anos.

    Durante esses anos, escolhi não vê-la. Caminhava ao redor de seus rastros. Você não pode olhar direto para o sol até estar pronto. Mas ouvi as histórias.

    Ela ganhava cada vez mais poder. Ganhava títulos.

    Princesa Guerreira.

    Destruidora de Nações.

    Conquistadora.

    Todo esse tempo, sobrevivi, me preparei. Meu corpo. Minha alma. Esculpi meu ser a partir das histórias que escutava.

    Ela lutava como uma deusa na terra? Eu levei meu corpo ao limite. Ela crucificava pessoas? Eu o fiz. Ela matava mulheres e crianças? Eu também. Ela sabia torturar? Feito.

    E, enquanto eu fazia, sentia a mão dela agindo através de mim.

    Hoje eu vou finalmente vê-la. Seu rosto.

    Contemplo o imenso acampamento do exército, perfeitamente visível da árvore onde me escondo, camuflada. Batedores e patrulhas passaram por mim, mas nenhum me notou. Aprendi seus horários e movimentos. Até parece que pretendo me aproximar furtivamente. Mas não. Estou observando, adquirindo conhecimento.

    Gostaria de dizer que sinto ansiedade ou medo, mas em mim não existem tais coisas. O que existe é uma sequência de passos meticulosos. Objetivos bem definidos. Que levam, numa linha reta, ao momento da minha vingança.

    Cinco pessoas, homens e meninos, se aproximam do acampamento. O segundo em comando dela, Theodorus, os avalia. É minha deixa.

    Ando até o acampamento e logo sou notada. Um punhado de soldados se aproxima de mim, lanças erguidas. As lâminas encostam em meu corpo. Não sei porque sorrio, mas é o que acontece. Como são patéticos.

    – Estou aqui para me unir ao exército da Conquistadora – digo.

    Eles riem, como eu sabia que fariam. Sou apenas uma garota, aos olhos deles. Existem algumas mulheres no exército da Conquistadora, claro, mas são poucas. É impressionante o quanto eles conseguem desprezar uma mulher, mesmo sendo liderados por uma.

    – Volte para casa, moça, aqui não é lugar para você – diz um dos menos brutos.

    – Achei que todos tinham uma chance de se provar ao exército. Eu quero uma chance – falo, olhando para as lâminas ainda encostadas em meu corpo e acariciando uma delas com meu dedo indicador.

    Um deles me olha de cima a baixo, com uma expressão lasciva. Quero revirar os olhos, mas me contenho. Tão previsíveis. Ele ordena que os outros se afastem.

    – Você pode se provar para mim agora – ele vem com as mãos nojentas para cima de mim.

    O derrubo e imobilizo tão rápido que ele nem tem tempo de entender o que aconteceu. Estou sufocando-o e logo as pontas das lanças voltam a me pressionar.

    – Larga ele! – grita alguém.

    O solto. Ele se levanta, ofegante, olhos muito abertos.

    – Certo – ele fala, esfregando o pescoço e apontando para onde estavam os homens e meninos que tinham entrado no acampamento há pouco – fique com os recrutas. Quando a Conquistadora voltar, ela decidirá o que fazer com vocês.

    Etapas meticulosas. Vejo cada uma tão claramente.

    O sorriso que nasceu em mim não morre mais.

    Os outros recrutas me olham curiosos. Um deles tenta puxar conversa comigo, mas respondo de maneira evasiva. Não entendo porque as pessoas vivem desperdiçando palavras.

    Os recrutas se mexem, sentam, levantam, reclamam do sol, da espera. Me distraio observando meus dedos.

    Bizarros apêndices.

    O tempo não existe.

    Ela vai chegar a qualquer momento. É quando o sol se põe mas ainda existe um pouco de luz que vejo um movimento diferente no acampamento.

    Ela vem a cavalo, à frente de um pequeno séquito de soldados. E pela primeira vez acontece algo que não estava em meus planos.

    Meu corpo reage de forma que não entendo. Coração e respiração aceleram demais. Não sei o que é isso que meu corpo faz. Meu corpo, fora da arte do combate, é um estranho para mim. Fico intrigada, mas suponho que isso não muda em nada o que vem pela frente.

    Meus olhos não desgrudam dos movimentos dela. Desmonta, fala com soldados, com oficiais, entra na tenda principal, sai, entra de novo. Quando todas as luzes da manhã já se foram, e apenas a claridade tremulante de tochas agracia o acampamento, é que ela vem em nossa direção.

    Outra coisa surge em meu corpo.

    Acho que é euforia.

    Porque sei exatamente o que ela vai dizer e fazer.

    Ela nos olha, um por um. De cima a baixo, frente e costas, dentes e olhos, como se inspeciona um animal. Meu coração e respiração ainda estão com aquela aceleração absurda. Me incomoda, mas tento ignorar.

    Ela chega até mim. Quando me vê, é com um sorriso diferente do que ofereceu aos demais, como eu sabia que seria. A vejo de verdade, pela primeira vez em anos. Minha memória não me enganou. Os olhos dela são mesmo azuis. Ela é um pouco mais alta que eu.

    Minha respiração, que antes estava incontrolável, agora desaparece completamente.

    Ela segura meu queixo, como fez com os outros. A mão dela é ferro quente. Imagino que o fogo que matou minha família veio do sangue dela. Vira minha cabeça para os lados. Me disseca como fez com os outros, e os olhos dela me arranham.

    Mas ela faz comigo uma coisa a mais. Só comigo.

    Quando ela me coloca novamente de frente à ela, me agarra mais uma vez pelo queixo. 

    Seu dedo polegar passa pelo meu lábio inferior. O sorriso dela é enviesado.

    – Se não servir como soldada, servirá para outras coisas – ela diz, e os homens soltam risadas baixas.

    Sinto júbilo. A li corretamente. Ela fala o que pensei que ia falar. Minha alma é ela. E dela.

    – Deixe-os apodrecendo por essa noite – ela diz, quando finalmente me solta – amanhã os testarei.

    Os recrutas resmungam. Me afasto, encontro um lugar para me recostar e fecho meus olhos. Durmo como um bebê. Sonho com o fogo que consumiu minha família e com o fogo das mãos dela. Eles são a mesma coisa.

     

    ***

     

    Acordo com os primeiros raios do sol. Dois dos recrutas desapareceram na noite. Me levanto e me posiciono exatamente onde estava na noite anterior, quando ela me tocou. Percebo que os homens ao meu lado não conseguiram dormir. Rio baixinho. Eles são tão indignos dela.

    Ela aparece novamente e vem em nossa direção. Ela, nítida na luz do dia, parece preencher meus olhos com tudo que ela é.

    Ela pega o primeiro dos recrutas e luta com ele. Ele é patético, e ela o mata. Os dois ao meu lado tremem de pavor.

    O segundo é menos patético e sobrevive. Ela o encaminha para treinar com os outros. O terceiro tem o mesmo destino do primeiro.

    É minha vez e ela me olha com a mesma mistura de desprezo e lascívia. Não consigo tirar os olhos dela, não consigo não sorrir. Não sei porque sorrio. Me alimento da imagem dela. O vento em seu cabelo, o suor em seu rosto, o brilho em seus olhos.

    Ela me ataca e o primeiro impacto da espada dela na minha faz todo meu corpo vibrar. Ela é forte, mas eu também sou. Ela percebe e me oferece um sorriso cheio de dentes. Ela continua seus ataques, feroz, implacável. Não me sinto lutando. Me sinto dançando. Sinto que eu e ela somos uma única criatura. A besta de quatro pernas e quatro braços. Mais tarde, alguém me diria que as pessoas tinham olhado estupefatas, murmurado com admiração. Mas não vi ou ouvi nada disso. Naquele momento, ela é tudo que existe.

    Ela para, ofegante. Está surpresa, admirada. E deliciada.

    – Você é quase perigosa demais – ela fala – mas desperdício de talento é o pior crime. Você está conosco.

    Ela se afasta com um último olhar curioso e eu guardo minha espada. Alguns soldados se aproximam, apertam minha mão, me dão boas vindas. Não respondo, minha mão pende frouxa na mão deles. O sorriso convidativo deles logo se torna deslizante. Eles me acham estranha. Se afastam de mim.

     

    ***

     

    Encontro a pequena tenda que se tornará minha casa pelos próximos dias. Alta o suficiente para que eu possa andar sem roçar o tento. Peles no chão para dormir, um pequeno baú para pertences. Antes, tinha uma mulher que a compartilhava comigo. Ela tentou se tornar minha amiga, conversar. Minhas reações indiferentes a afastaram e logo a tenda se tornou só minha. Abençoo a solidão.

    Em poucos dias, o exército se move contra uma cidade. Estou dispersa no meio dos soldados. Sou só mais uma. Por enquanto. Ela faz um discurso feroz e motivador que inflama o batalhão. Eles erguem espadas, lanças e gritam. Permaneço imóvel. Ela percebe meu comportamento desviante e ergue uma sobrancelha. Respondo com meu recém adquirido sorriso.

    Lançamos-nos contra a cidade. No meio da batalha, toda minha indiferença se transforma em fúria.

    Me torno ela.

    Mato tantas pessoas, não consigo contar quantas. Os gritos que saem de mim são primais. Não paro por um único minuto, até ela ordenar. Óbvio que vencemos. Óbvio que a cidade caiu. Minhas risadas estão sem controle enquanto vejo minha espada e meu corpo cobertos de sangue. Guardo minha lâmina e quando levanto meu rosto percebo que o olhar dela está em mim novamente. Afiado e indagador.

    Eu sei o que vai acontecer.

     

    ***

     

    É noite e todos estão comemorando e aproveitando os espólios de guerra. Theodorus vem até mim.

    – A Conquistadora demanda sua presença – ele diz.

    Finalmente, entro na maior tenda do acampamento. Ando em passos pequenos, observando tudo. É simples, eficiente, sem grandes adornos. Tudo ali inspira guerra. Nada parece pessoal ou particular.

    – Sabe – é a voz dela – eu nem perguntei seu nome, em todos esses dias.

    Ela vem até mim. Não está de armadura. Uma túnica vermelha, sandálias. Os cabelos longos, soltos, caindo pelos ombros. Um copo de vinho na mão.

    – Seu nome? – ela pergunta.

    – Callisto – respondo.

    – Callisto – ela repete.

    Ouvir meu nome na voz dela me desperta algo. Ela o fala devagar, como se quisesse decifrá-lo. Nunca pensei muito sobre meu nome, mas agora que ela o disse, ele se torna algo de interesse para mim. Me pergunto porque meus pais me deram esse nome. De onde veio, o que ele significa?

    – Sabe, Callisto – ela continua – me informaram que você não conversa com ninguém, não interage com os outros soldados. Camaradagem é importante em um exército. Algum motivo pelo qual você não faz isso?

    Dou de ombros.

    – Não sinto vontade.

    – Hummm – ela toma um gole do copo – também a observei no campo de batalha. Acho que você bateu um recorde de corpos numa primeira campanha.

    Me sinto elogiada.

    – Essas não são as características de um soldado – ela prossegue – são as características de uma assassina – ela me dá as costas, coloca o copo na mesa, pega uma adaga que lá está, se volta para mim novamente. Se aproxima de mim e encosta a ponta da adaga em minha garganta – alguém mandou você aqui? – pergunta.

    – Não – respondo tão lentamente quanto uma palavra tão curta pode ser.

    Ela me circula e sinto a presença dela atrás de mim. A adaga ainda está em meu pescoço. Permaneço imóvel.

    – Você luta de forma excepcional – a voz dela está perto do meu ouvido esquerdo – onde aprendeu a lutar assim?

    – Sozinha.

    Ela ri. A ponta da adaga faz mais pressão em mim.

    – Impossível – ela fala – não gosto de mentirosos, garota.

    A mão dela se fecha com força em meu pulso esquerdo.

    – Não minto – continuo – estou sobrevivendo sozinha há muitos anos. Aprende-se de tudo nesta vida para sobreviver.

    – Ah. Uma sobrevivente. Porque sozinha? Onde está sua família?

    – Morta – a ponta da adaga agora arranha minha nuca.

    – Como morreram?

    – Assassinados – minha mão esquerda começa a ficar dormente.

    – O que você está fazendo aqui, Callisto? Melhor responder a verdade, ou será sua última mentira nessa terra.

    – Estava cansada de viver sem propósito – falo – e acho que aqui eu tenho um.

    – Um propósito – a adaga percorre um longo caminho até repousar em meu estômago e a mão que segurava meu pulso se desloca até meu pescoço e o segura. Ela me puxa contra si. Não está me sufocando, apenas me segurando. É um abraço.

    Meu corpo tem reações estranhas que não consigo entender. Não sei porque estou tremendo, pois não estou com medo.

    – Sabe, já encontrei minha cota de vadias esquisitas por todos esses anos. Elas têm seus usos. Você é uma delas? – todo esse tempo, os lábios dela não saíram de meu ouvido.

    – Talvez – respondo.

    Por um segundo, imagino que ela vai me matar naquele exato momento.

    Ela me solta.

    – Certo, Callisto – ela finalmente volta a ficar de frente a mim. O olhar dela é uma mistura de indiferença e desprezo – continue com sua bizarrice. Não me importo. E continue matando. Mas saiba que estou de olho em você.

    Por favor, esteja, eu penso, mas não falo.

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