Abrigo
por DietrichÉ minha primeira vez em um grande navio.
Estou na proa e a noite é escura. Sem lua, apenas estrelas. Tochas apagadas.
Tudo arranjado para um ataque noturno e furtivo.
Mas mesmo o cintilar fraco das estrelas e a massa revoltosa e negra que nos balança me causam um sentimento diferenciado.
Acho que é… esplendor.
É belo.
A única coisa que corta aquela contemplação é o barulho de soldados enjoando. Por um momento, receei que fosse acontecer comigo, mas o balanço me acalma.
Ela me abraça por trás. Não muito graciosamente, pois estamos ambas em armadura completa. Metal e couro nos separam, mas ela encontra um jeito de se encaixar em mim e de me fazer sentir os lábios dela em meu pescoço.
– Estamos em público – falo.
– Como se eles não soubessem – ela retruca.
– Falta pouco – começo a visualizar a costa da cidade.
– Sim – há um tom preocupado na voz dela.
– Está com receio? Se tudo correr como planejamos, será uma vitória que entrará na história.
Amo que ela continua colada em mim.
– Será – ela responde – estou perto… estou finalmente perto.
Sinto-a tremer ligeiramente. Viro a cabeça para encará-la.
– Quando essa cidade cair… as outras seguirão basicamente sem resistência. Tudo será seu – afirmo.
– Tudo – ela repete, a voz vazia. Aproveita que virei a cabeça e beija suavemente meus lábios.
– Isso não a deixa feliz? – termino de me virar dentro dos braços dela, devolvo o beijo com um pouco mais de intensidade.
– Felicidade? Eu sei lá o que essa palavra quer dizer? – ela murmura em minha boca.
Continuamos nos beijando, fervorosamente, enquanto nos aproximamos de mais um banho de sangue.
O navio atraca.
Os soldados se movem.
E começa.
Somos certeiros como as flechas de Ártemis, inquebráveis como as correntes de Hefesto, implacáveis como a fúria de Ares.
O rastro de morte e destruição que resulta de nossas mãos coordenadas rivaliza um vulcão em erupção.
Começo a me crer invulnerável, como ela.
Mas é aí que os fios dos Destinos entram em ação.
Certamente uma resposta a meus pensamentos blasfemos.
Minha cabeça se estilhaça e tudo desaparece.
***
Minha consciência vem e vai.
Quando vem, ouço gritos, vejo chamas, sinto cheiro de sangue. Sinto alguém me carregando.
Depois tudo é engolido pelo preto.
E volta. Minha cabeça dói horrivelmente.
Alguém grita o nome dela.
Estou no chão de uma casa destroçada.
Alguém envolve minha cabeça em panos. Com força e pressão muito fortes. Devo ter gritado de dor.
É ela.
Tento falar, mas não consigo. A dor me leva. Tudo some de novo.
Os barulhos da destruição reaparecem, mas estão distantes.
A voz dela me diz algo, mas não entendo. Tento falar de novo, mas em vez disso meu corpo convulsiona.
Quando novamente retorno, estou em outro lugar.
Outra casa destruída, e os barulhos da guerra já não existem lá. Consigo mover minha cabeça para o lado e lá está ela.
Algum som sai de minha boca.
– Não fala – ela diz – descansa.
A inconsciência quase me agarra de novo, mas resisto.
– Xena… – falo – ganhamos?
Ela dá um sorriso amargo.
– De uma certa forma.
– Que?
– Já disse, descanse. Quando se recuperar, saberá.
Arrastada para a escuridão de novo.
Luz, novamente, num lugar diferente. Uma casa inteira, e estou numa cama macia.
Ela está ao meu lado. Dormindo. Percebo, horrorizada, que ela está coberta de hematomas. Tento me sentar mas minha cabeça gira com força e não consigo.
Mas não apago novamente. Busco a mão dela. Consigo apertar, e ela abre os olhos. Sorri para mim.
– Como está se sentindo? – ela pergunta. Os lábios dela estão partidos.
É difícil falar. Estou muito enjoada. Mas falo.
– Poderia perguntar o mesmo a você – meus lábios mal me obedecem.
– Sua ferida é só uma, mas é mais séria.
– Que porra aconteceu?
Ela ri, enquanto faz uma careta de dor.
– Um estilhaço de catapulta te pegou na cabeça. Na têmpora.
– Eu devia estar morta, então.
– Não se eu agisse rápido, e eu agi.
– Xena, não tem como…
– Eu resolvi o problema.
– E a guerra?
Ela passa as pontas dos dedos pelo próprio rosto.
– Digamos que Darphus e as tropas não gostaram que abandonei tudo para, hum, resolver seu problema. Consideraram traição e… me colocaram no corredor.
Minha mente esvazia por um momento. Bile me sobe à garganta. Pisco várias vezes.
– Você está brincando. Como eles se atrevem?
Isso. Quero pensar nisso. Não quero pensar no fato que ela arriscou tudo para salvar minha vida.
– Não os culpo – ela fala, encarando o teto com ressentimento. E talvez arrependimento.
– Como você foi tão burra? – eu retruco.
– Acho que é minha nova marca. Fazer coisas burras – ela se senta devagar e fazendo caretas – porra, malditos… estou quebrada.
– Então deita e descansa – falo.
– Preciso trocar sua bandagem.
– Esquece isso.
– Tá brincando? Você ainda não se livrou da morte. E agora você tem que ficar viva. Perdi a porra de um exército para manter você viva. Então me deixe trocar a merda da sua bandagem porque se você morrer, eu te mato.
Ela se levanta com uma expressão amarga e pesada.
Vejo como ela manca, mesmo tentando disfarçar. Sigo os movimentos dela com meus olhos. Nossas armaduras estão jogadas num canto da casa. As roupas dela estão rasgadas, sujas de sangue.
Ela encontra uma tigela, despeja um pouco de água de um odre, rasga pedaços de tecido.
Volta para mim, os olhos apertados pela fadiga.
– Sabe – ela diz, enquanto molha o pano – um pouco de reconhecimento seria apropriado.
– Reconhecimento? – resmungo, o rosto latejando sob a bandagem antiga.
– Eu salvei sua bunda. Perdi um exército inteiro por sua causa. Você poderia, sei lá, agradecer.
Reviro os olhos, o que faz minha cabeça girar miseravelmente.
– Obrigada, majestosa conquistadora de meia dúzia de casebres – resmungo.
Ela solta um riso rouco e empurra de leve meu ombro para que eu me vire de lado.
O toque dela é tão cuidadoso.
Quando arranca a bandagem antiga, sinto a pele puxar, e devo ter feito algum som, porque ela murmura:
– Eu sei, eu sei. Aguenta firme, coisinha.
Coisinha de novo.
Se não estivesse prestes a desmaiar de novo, eu a estrangularia.
Ela limpa a ferida com água fria, tão suave quanto consegue ser.
Os dedos dela tremem um pouco. Não pela fadiga.
Pela raiva.
Raiva de ter perdido tudo. Raiva de mim. Raiva dela mesma.
Ela enrola a nova bandagem ao redor da minha cabeça com gestos rápidos e duros.
Puxa o nó com força demais, e eu grito.
– Ops – ela diz, sem o menor remorso.
Meus olhos se enchem de lágrimas.
De dor. De exaustão.
De tudo o que não sei nomear.
Quando ela termina, fico deitada, ofegante, enquanto ela senta pesadamente ao meu lado.
Ela fala primeiro:
– Você não vai morrer.
Uma afirmação.
Não um pedido. Não uma esperança.
Uma ordem.
– Claro que não – murmuro – não sem antes ferrar ainda mais a sua vida.
Durante um tempo, tudo que ouvimos é a nossa respiração irregular.
Ela sorri.
Um sorriso lento, quebrado.
E se deita ao meu lado, puxando meu corpo dolorido contra o dela com uma força que quase me desmonta.
– Não some de mim, Callisto – ela sussurra, quase inaudível.
Pressiono meu rosto contra o peito dela.
– Agora não posso. Por culpa sua.
– Você é uma puta ingrata mesmo.
– Não sei. Acho que estamos meio quites na verdade.
– Sério?
– Você tomou minha família. Eu tomei seu exército. Parece balanceado.
Sinto-a dando de ombros. Um beijo no topo da minha cabeça.
– Sabe, parece mesmo.
– Onde a gente tá mesmo? – pergunto, minha voz já arrastada de sono.
– Na casa de um amigo.
– Então você tem mesmo desses.
– Um ou outro.
– Cadê ele? Ele que devia estar nos remendando.
– Ele teve que sair.
– Baita amigo.
– Ele já está fazendo demais em nos esconder, na verdade. Não acho que Darphus vá descansar enquanto não me ver morta. Vai temer que eu recupere o exército só aparecendo lá e dando um chute na bunda dele.
– Você poderia fazer isso. Do jeito que você é filha da puta capaz de dar um jeito de convencê-los que me salvou para o bem deles. E eles vão te seguir como ovelhinhas adestradas de novo.
– Não é um plano ruim. Tirando o fato que…
Ela se cala.
– Que? – pergunto quase sem perguntar. Quero dormir, mas quero continuar ouvindo a voz dela.
– Bem… essa coisa de conquistadora… não sei se tem mais tanto apelo.
– Tá brincando.
– Acho que estou envelhecendo. Talvez eu queira… outras coisas agora.
– Que coisas? – porque estou conversando? Odeio conversar.
– Você está bem tagarela. Foi a pancada na cabeça? Afetou essa sua cabecinha maluca?
– Quem sabe. Quem sabe tudo que eu precisava era ter um pouco dos meus miolos arrancados.
– Podemos começar todo um ramo da medicina baseadas nisso então.
– Então sua nova carreira é… curandeira de vadias malucas?
– Acho que sou boa nisso.
Me achego mais dela. Estamos fedidas. Sujas. Destroçadas. Eu tento segurar a pergunta, mas não consigo.
– Por que fez isso, Xena?
– Isso o que?
– Me salvar.
A mão dela corre suave em meus cabelos.
– É uma pergunta fabulosa – ela resmunga – quando eu souber a resposta, te digo.
Sorrio no peito dela.
Ela não precisa me dizer. Acho que ela não vai dizer.
Mas eu sei.
Finalmente me permito dormir.