Fazia um bom tempo que ela não parava um pouco para sentir de fato o seu derredor, o acariciar da brisa gelada de primavera chegando, o bramir das ondas batendo no casco do navio e um silêncio profundo.

De olhos fechados, Gabrielle permanece meditando, tentando se concentrar no que consegue rastrear à distância, porém, por enquanto ela só consegue ouvir o cantar dos albatrozes, indicando que estão perto de chegar ao porto. Se concentre, não ouça, procure pelo inimigo… O que você vê?” – Gabriele força suas pálpebras para que não entre nem um facho de luz em seu olhos.

Porém dessa vez, da escuridão surgiu aquela face, de um olhar penetrante e sorriso acanhado, olhando diretamente para ela. “Se concentre, o que vê?Aos poucos suas forças vão se esgotando, o ardor começa a tomar conta de seus olhos, contrastados com um um sabor salgado em sua boca. Suas forças gradativamente migram da mente para as mãos, ao ponto de tremerem.

“Eu te vejo…”. Trancos são dados no coração, tentando amenizar aquele nó cégo formado há pouco tempo. Ao mesmo tempo um calafrio toma seu corpo, e surgem os soluços.

“Eu te amo…”. Apesar de falado quase sussurrando, em seu interior foi o berro mais alto que ela pode dar. Sua consciência espera o retorno de sua amada, mas a razão, igual a uma avalanche, a derruba na realidade e na razão, tudo se foi, só há lembranças.

Ao abrir os olhos, ainda embaçados, ela começa a admirar aquela urna de madeira, com os adornos mais belos que ja viu, reproduzindo aquela tão temida e apaixonante armadura, que durante muito tempo aterrorizou a tantos. Num ato reflexo, ela o abraça com toda a delicadeza possível. “Me perdoe, por não ter dito o que sentia, queria tanto que você estivesse aqui”.

O silêncio tomou conta dela pelo resto da viagem, o tempo, o clima, passaram desapercebidos, a única coisa que importava era a lembrança daquele olhar. Próximo a entrada do Porto havia uma estalagem, diziam que era uma das melhores comidas que preparavam lá, marujos de todos os cantos do mar Mediterrâneo iam lá para comer, então era comum se ouvir um falatório alto em vários idiomas, não muito recomendado para quem não suporta gritarias.

Apesar desse ambiente caótico, Gabrielle não conseguia ouvir nada, somente se dirigiu calmamente para a bancada. “Por favor, quanto está o valor do quarto?”. O dono da taverna, concentrado nas bebidas a preparar, e sem olhar para ela diz indiferente “São 5 denários por noite, mais 2 denários pela limpeza do quarto… Viagem longa?”

“Tavius! Cadê a bebida! Anda logo seu porco ordinário, por Poseidon!”. O berro consegue se destacar no meio do alvoroço, com um sotaque lembrando o egípcio.

De repente um estalo agudo e seco ecoou pelo ambiente. O falatório de repente cessa enquanto todos olham na direção do barulho. Gabriele olha novamente para o dono da estalagem, e sua postura mudou, olhar imponente, postura de defesa, e na sua mão uma alabarda de aço polido, com adornos em couro castanho escuro sob o balcão. “Calma aí Octávius, só achei que estava demorando de mais, não precisa se zangar!” Diz o marinheiro que reclamou agora pouco.

Ele lentamente retoma seus afazeres sem dizer uma palavra se quer, mas permanece encarando o marujo reclamão, entretanto isso não dura muito, já que Gabrielle chamou sua atenção, justamente pela indiferença com o que acabou de ocorrer.

“Moça, você não parece ser daqui… Viagem foi puxada né?”. Uma das poucas coisas que chamam a atenção dele é a calma em meio ao caos, e essa moça parada na frente dele certamente é diferente dos demais ali parados. Gabriele parece estar olhando para ele, contudo sua mente está longe de mais para reagir e responder.

Novamente o silêncio toma conta do lugar, todos olham para aquela figura imponente ilesa, olhando para Gabrielle, pálido e trêmulo. Octávius não consegue nem mesmo falar estranhando aquela figura parada diante dele. Gabrielle volta a si, percebendo a situação e responde “Não é nada de mais, obrigada pela preocupação… Poderia me dizer o que tem para a janta?”

“Se você diz… Temos carneiro assado, sopa de lebre, acém moído com legumes…” Diz Octávius ainda desconfiado, para ele aquele rosto parece familiar, porém ele não conhecia nenhum ferreiro na região que fosse hábil o suficiente para confeccionar a armadura que ela estava usando. “Lebre, por favor, e um pouco de água fresca seria bom.”, Gabrielle senta-se e cruza os braço, aproveitando um pouco da espera da janta para admirar novamente aquela urna pequenina.

“Era um de seus pratos prediletos, lembra?”, Gabrielle sussura olhando para a urna, porem dessa vez, não precisou fechar os olhos para que o inesperado ocorresse. “Gabrielle?” Ela escuta uma voz familiar a chamando vindo de trás dela “O que você quer para a janta hoje?”

Gabrielle levanta seu rosto, e não mais está na taverna. Ela percebe que está sentada em um manto castanho escuro, olhando para uma cachoeira, à direita Argo aproveitando o descanso para comer algumas maçãs numa macieira próxima, e à esquerda, os apetrechos de Xena. “Gabrielle?” A voz parece mais próxima, de repente ela sente uma mão em seu ombro, ao virar-se vê aquele rosto familiar, amistoso, porém preocupado de sempre.

Seus olhos subitamente começam a arder incessantemente, aquele gosto salgado gradativamente retoma todo o seu paladar, as lágrimas caem involuntariamente ao mesmo tempo em que ela sente vontade de sorrir. “Xena, é você mesma?

“Não, imagina, princesa Lya a seu dispor!” Xena imita uma reverência real com um ar de deboche. Gabriele não aguenta e cai na piada rindo por alguns segundos. “Princesa Guerreira, boa piada Xena”. “Vamos Gabrielle, me diga, o que se passa.” Xena senta-se próximo dela e permanece aguardando, prestando atenção. “E então…?”

Gabrielle permanece um tempo olhando para ela, reunindo forças para falar, seu coração começa a trotar de adrenalina “Estava com saudades de você… Te ver, ouvir, tem sido difícil viver sem estar contigo”.

Xena segura sua mão e entrelaça seus dedos nos dela. “Eu também…”. Gabrielle ao sentir o calor da sua mão, sente percorrer um arrepio inexplicável. “Era isso que faltava…”, Gabrielle volta a olhar para ela, por mais alguns minutos em meio a um turbilhão de sentimentos, partindo da raiva, para a alegria, luto, prazer, e por fim paz, que há tempos não sentia.

Antes que ela pudesse falar, Xena a interrompe. “Não precisa dizer mais nada, eu sei desde o começo… A resposta é sim.”. Gabriele permanece petrificada, não podia acreditar no que escutou. Ao mesmo tempo, sua amada ergue sua mão e a percorre pelo rosto dela, dá para sentir aumentar a pulsação dos corações à medida que se aproximam, e pela primeira vez, o primeiro contato que selou sua união ocorreu. De tão forte, dava para sentir as bocas pulsando entre si, em um abraço envolvente e apaixonante, a ponto de entrar em ebulição, porém foi interrompido por um momento, para uma pausa e uma troca profunda de olhares. Desta vez, ambas sem querer entoam ao mesmo tempo “Eu te amo…”.

“Acho melhor prepararmos a janta, o que você prefere, Gabrielle, peixe ou lebre?”. Xena pergunta com um ar jovial. “Podemos comer lebre, seu prato favorito”, responde Gabrielle entre suspiros.

“Tudo bem, enquanto isso, já deixei aqui do lado a lenha pronta, pode ir preparando a fogueira enquanto caço nossa janta.”. Xena se levanta, porém dessa vez sem pressa alguma, bem atípico para alguém que vive em alerta. Antes de adentrar a floresta, para por um instante, por instinto sabe que Gabrielle está a olha-la e corresponde o olhar com uma piscada e um sorriso de canto de boca.

Gabrielle então se vira para buscar a lenha, porém ouve batidas, como se fossem de um pica pau em algum tronco próximo, ela para por um instante para procurar a direção do som, porém não encontra nada.

Novamente, as mesmas batidas se repetem, desta vez parecem mais próximas, porém, nada de encontrar esse pássaro. Alguns minutos depois e a fogueira está pronta, bem a tempo de sua guerreira chegar com o jantar já curtido. “Tudo pronto?” Xena se aproxima da fogueira e dá uma afofada nas brasas com um galho.

“Sim, só falta temperar, acho que tenho ainda algumas ervas que você guardou na minha bolsa”. Gabrielle se vira para pega-las quando ouve sua amada cantarolar a musica de sua terra natal, dessa vez parece um pouco diferente em algumas partes. “Aqui estão elas”, Gabrielle se vira e as entrega para Xena que inclui na panela suspensa sob o fogo.

“Agora entendo por que você conseguiu quebrar o feitiço das sereias sobre o Ulysses…”, Gabrielle permanece sentada admirando ela enquanto canta e prepara a janta. “É mesmo, e por quê diz isso?”. Xena levanta discretamente uma de suas sobrancelhas, parece ja saber o que está por vir, mas mesmo assim ela deseja escutar.

“É seu coração cantando, tão lindo, sem falar na sua voz, dá um…” Gabrielle interrompe sua fala, a sensação de vergonha toma conta dela por completo. Por um instante, o silêncio toma conta de ambas, Xena prossegue terminando de misturar o ensopado, para que os temperos fixem bem o sabor, porém ela não aguenta segurar aquele risada acanhada. Ela então deixa a janta apurando, e se aproxima de Gabrielle, sentando-se ao lado dela.

“E então?” Xena inclina o rosto para baixo, abrindo mais os olhos, demonstrando uma cara de ansiosa, que inevitavelmente quebra a timidez de Gabrielle. “É.. sempre gostei de ouvir tua voz, me transmite paz… Mas quando você cantarola, sinto um arrepio na nuca, você já sentiu isso?”. Gabrielle pega uma folha de grama para ficar dobrando com os dedos, tentando amenizar sua timidez.

“Sim, aliás que tal se eu cantar para você?”. Xena muda sua expressão, parece mais empolgada. Gabrielle a olha espantada. “Você quer?”. Xena repete seu olhar pidão e travesso, esperando um sim.

Gabrielle, por um momento permaneceu sem reação, mas confirmou com a cabeça o sim tão esperado. Xena então muda de posição, sentando-se atrás de Gabrielle, de tal modo que Gabrielle pudesse reclinar-se sobre seu busto, enquanto ela pudesse a abraçar.

Assim começa a cantarolar, Gabrielle não sabia, porém essa posição faz com que seu corpo reaja ao canto dela, vibrando nos mesmos timbres entoados, e assim intensificando cada nota.

Gradativamente, aquele som parece estar mais próximo de Gabrielle, um calor começa a ser sentido próximo de sua orelha direita, e de repente, um curto beijo seguido de uma mordiscada, e um ronronar, foi repentino, porém momentâneo. Xena observa o arrepio se espalhar bruscamente por toda sua amada, e retorna a cantar.

Pouco tempo depois, elas percebem que a janta está pronta, se levantam, comem e preparam-se para dormir. Como um ato reflexo Xena se deita como de costume, deixando sua espada e chakram ao seu lado direito, enquanto Gabrielle se deita ao lado dela. Por um breve instante, Gabrielle não resiste e por um instante volta a admirar a face de sua amada. Porém o instinto da Guerreira já havia notado, levanta seu braço aguardando um abraço.

Gabrielle não pensa duas vezes, levanta-se um pouco para se reclinar sob o busto dela. “Dá para sentir seu coração batendo rápido, você tá bem?” Gabrielle parece um pouco preocupada. “Eu ia dizer o mesmo para você…” Xena começa a acariciar os cabelos de Gabrielle. Porém isso não dura muito.

Repentinamente Xena começa a sentir um sacudir anômalo e ininterrupto, alguns soluços e se levanta um pouco, delicadamente virando o rosto de sua amada para ver se está tudo bem. Gabrielle não resistiu e deixou transparecer aquelas lágrimas há muito tempo guardadas. “O que houve, amor?” O semblante de Xena permanece sério, investigativo.

“Por favor, me leve com você, me ensine tudo que você sabe, eu quero tanto ser como você, eu te amo tanto.”, Gabrielle luta contra os soluços para conseguir expressar por completo sua verdade tão bem guardada.

“E eu ser como você.. Nunca vou te deixar, até mesmo na morte, estarei com você.” Xena enxuga as lágrimas de Gabrielle, e a tranquiliza beijando seus olhos, logo depois descendo para sua boca, assim as aproximando mais em um abraço completo.

Poucos minutos depois, o sono toma conta delas e vão dormir, as sensações de paz e alegria são tão plenas que nada mais importa, o vento frio, o calor da fogueira, o que importa realmente é aquele pulsar sentido nesse abraço de sua amada, a sensação de segurança, estar protegida em sua fortaleza.

Na manhã seguinte, Gabrielle é acordada por um cheiro diferente, um pouco de mofo, uma claridade exageradamente forte vindo de seu lado direito, o chão parece estar muito mais macio do que de costume, atrás de sua cabeça, algo um pouco mais macio do que aquele apoio musculoso que ela ja estava se acostumando.

“Xena.. onde estamos? Xena?” Gabrielle, não sente mais aquela fragrância de sua amada, parece estar sozinha no lugar. Seu coração acelera, e força seus olhos a se abrirem rapidamente, num estado de alerta total, porém, são ofuscados pela claridade da janela.

“Como parei aqui, na… taverna… Essa não…” Gabrielle sente um nó na garganta, uma dor abdominal lancinante, como se tivesse atravessado um punhal em seu abdômen, porém aos poucos começa a ouvir vozes próximas, um pouco abafadas, vindo de seu lado esquerdo.

“Há quanto tempo ela está aí?” Diz uma voz um pouco jovial. Porém, outra voz, um tanto quanto familiar, responde: “E o que você tem a ver com isso? Não tem mais o que fazer não? Sai daqui!”. “Gabrielle? É você? Posso entrar?”.

Gabrielle já se posiciona estrategicamente atrás da porta, empunhando sua katana de modo defensivo e mantendo silêncio absoluto. De repente, um tranco, a porta enverga-se um pouco para dentro, mais um tranco, no terceiro, começa-se a ouvir os estalos das fibras da madeira se partindo, no próximo golpe, a porta se parte parcialmente pela metade, lançando algumas farpas alguns metros adiante, e mais alguns chutes são dados para que ela se abra por completo.

Antes mesmo de conseguirem adentrar no recinto, Gabrielle furtivamente aguarda o invasor entrar e antes de completar um segundo passo, aproveitando que o peso dele estava ainda sob uma perna, primeiro aplica uma rasteira nele e o encontro ao chão é instantâneo.

Ela se move rapidamente para cima dele forçando moderadamente os sais cruzados sob o pescoço dele, o suficiente para ele não se atrever a se mover, ou resistir ao golpe. Enquanto isso, ela aproveita para monitorar a entrada do quarto através do reflexo do espelho da parede, assim podendo se antecipar a chegada de reforços.

Porém, sem olhar para o invasor, solta seus sais, e instintivamente aplica os pontos de pressão sob a jugular do desconhecido. “Eu acabei de cortar o fluxo de sangue para o seu cérebro. Você tem 30 segundos, ou terá uma morte muito dolorosa se não começar a falar. Quem é você, para quem trabalha, o que veio fazer aqui, e por que invadiu o meu quarto, e qual é sua missão?”. A adrenalina está a flor da pele, não há tempo a raciocinar, só extrair a informação, processar ela, traçar uma rota segura de fuga e revisar os próximos passos em um lugar seguro. 

Enquanto pressiona ele para falar, ela ao mesmo tempo já simula mentalmente, as rotas de fuga mais furtivas, ou que se estiver sendo perseguida, consegue escapar facilmente. “Pela escada não, muita gente na taverna, se esbarrar em alguém, terá luta, não… Pela janela, se não cair direito, posso quebrar a perna, sem chance de correr… Um disfarce seria bom, mas até achar uma roupa, pena que não estou com o cajado aqui… mas tem os lençóis e a cortina, da para fazer uma corda, boa! dai passo pelo mercado da vila ao lado, e fujo pela escadaria sul, próximo a muralha, tem muitas carroças por lá, se preciso, posso me agarrar na parte de baixo de uma delas e despistar ele ou eles, quem sabe…”

“Gabrielle, cof… ah.. cal.. ma.. é o Virgil!”, Gabrielle congela por um momento, subitamente olha para ele surpresa, cuidadosamente retira os pontos de pressão, o ajuda a se levantar e a se sentar na cama.

“Virgil??? Me desculpe…” Gabrielle o analisa buscando por feridas mas retoma o foco para tentar justificar-se “foi reflexo… você está bem?”. Gabrielle desarma por um instante se arrependendo do que fez, buscando amenizar o susto e verificando se não foi gerada nenhuma lesão grave nele, porém nenhum sinal de arranhão ou hematoma.

“Cof… Cof… Não, tá tudo bem, calma, só foi um… susto” Virgil ainda está recuperando aos poucos o fôlego. Ainda olhando para o chão ele complementa: “É como se tivesse levado uma surra da Xena… Tenho de admitir… vocês são muito parecidas…” Gabrielle sente subir um rubor pelo elogio, mas permanece concentrada em seu paciente, “Uh hum…”, ela diz como num sussurro.

“Muito bem… nem um arranhão pelo visto.” A barda se levanta ainda olhando para Virgill um pouco desnorteado e permanece nessa posição por alguns longos minutos. Apesar da voz calma de sempre, seu corpo permanece rígido e de prontidão para qualquer sinal de perigo.

“Como foi que ele me encontrou aqui, eu não avisei ninguém que estaria voltando… Tem algo estranho nisso… Ele parece muito zonzo, será que ele vai ficar bem? Melhor eu preparar um chá para ele, e depois ele descança e procuro entender melhor tudo isso…”. Enquanto isso, Virgill sente que está sendo observado e vagarosamente dirige seu olhar para Gabrielle. “Gabrielle…” diz o jovem bardo com um ar embargado.

“Sim?” Gabrielle retorna abruptamente de seus pensamentos, porém seu corpo reage como se tivesse levado um pequeno susto. “Por quê tem duas de você… três…?”. Gabrielle levanta levemente as sobrancelhas surpresa com a pergunta e antes que pudesse responder, vê seu amigo amolecendo e antes de pensar tenta o segurar para não cair. Entretanto por um milésimo de segundo ele escapa de suas mãos, indo ao chão desacordado.

A barda então cuidadosamente examina sua jugular e sente sua pulsação, aparentemente normalizando. Com muito cudado, e aplicando um pouco mais de força, o levanta e o deita na cama. “Deuses, o que está acontecendo aqui… Calma… Foi só um susto… Melhor eu preparar um chá…”.

Gabrielle então se volta para sua bolsa e busca algumas ervas, dentre elas, algumas folhas de hortelã. Ela para por um instante e não resiste a permanecer olhando para elas, destaca uma, a mais bonita e a conduz para próximo de seu nariz. A fragância dela entra em seus pulmões trazendo lembranças dos chás preparados por sua amada por um breve instante, até ela retomar sua lucidez e prosseguir com o preparo da bebida.

Após acender a lareira e por a água a ferver, ela iniciou o próximo passo da receita acrescentando as folhas já trituradas ao líquido aquecido, porém dessa vez, ela vê uma mão conduzindo a dela, familiar, de aparência firme e forte, porém com um tocar delicado e gentil que a acompanhou até despejar todas as folhas. Um calafrio subiu por sua espinha, e lentamente vira seu rosto, buscando encontrar de quem era aquela mão, e novamente a vê, ao seu lado, sorrindo, porém essa visão dura pouco.

Não demorou muito e a bebida ficou pronta, preenchendo o quarto com aquele aroma tão agradável e familiar. Gabrielle então pega um copo, se serve e senta na beirada da janela, voltando sua atenção para Virgill ainda descansando, enquanto começa a apreciar o chá. “O que ele quis dizer com isso… Eu pareço com ela?… Ah ela… que guerreira, amorosa por sinal… O que eu daria por mais um daqueles olhares azulados…”. Gabrielle aparenta estar o observando, porém sua mente se perde novamente.

Algum tempo depois, o bardo começa a se mexer na cama, vagarosamente abre seus olhos e vira seu rosto para Gabrielle. Ainda recuperando seus sentidos, se senta na cama e permanece parado, dando a impressão que precisa dizer algo, porém sem saber o que falar, como falar.

A barda, então levanta-se, toma um copo e serve o mesmo chá para ele. “Obrigado…” diz ele numa voz um pouco embargada. “Sinto muito, Gabrielle… tentei chegar o mais rápido que pude…” Gabrielle se senta na cadeira próxima da cama, ficando de frente pra ele “Eu também… Obrigada, por se preocupar comigo, mas tenho de cumprir o que prometi… Para ela…” seu semblante se escurece um pouco e olha por um breve instante para o chão.

“Estive dormindo por 2 dias?” Gabrielle muda sua expressão, desta vez mais expressivo, sério. “Sim… não se preocupe com o valor da estalagem, um amigo seu pagou… Foi ele quem me avisou sobre você e pediu que viesse primeiro…” Disse ele em um tom preocupado, tentando antecipar sua reação… será que ela vai ficar brava? eu tinha que fazer algo, por elas, pelo meu pai… “Mas… quem te avisou?” pergunta a barda numa voz mais firme.

“Lord Helton… você deve se lembrar dele…” Gabrielle levanta seu rosto, suas sobrancelhas saltam de surpresa e espanto. “O sacerdote?” Em seu interior, ela sente um arrepio subindo, dos pés à cabeça. Morpheus… então não foi uma lembrança… ela está no mundo dos sonhos? mas como isso é possível, a alma dela devia ter sido libertada… Gabrielle sente um desconforto em seu estomago, e se levanta. “Ele está por aqui?” ela pergunta com um tom mais animado.

“Sim, ele está noutro quarto, chegamos aqui dois dias atrás…” Virgill reune suas forças e levanta-se ainda um pouco desajeitado. “Posso avisa-lo que você quer vê-lo?” Gabrielle confirma com a cabeça, e ambos se dirigem ao quarto que seu amigo está. Após algumas leves batidas, Elton abre a porta, um senhor com uma idade já avançada, cabelos alvos e olhar azul claro, de um certo modo a lembrando daquele olhar tão meigo e sutil, aquela sensação de vazio se intensifica um pouco, porém momentâneamente ela se recompõe.

“Gabrielle… é muito bom ver você novamente… Entre, por favor, faça de conta que a casa é sua” Helton demonstra um sorriso acalentador, enquanto ergue seu braço para o interior do quarto, reproduzindo um gesto nobre dado à realeza. Gabrielle, por um instante acaba sorrindo e aceita o convite, seguida por Virgill logo depois.

Helton então puxa uma cadeira para ela se sentar, e a acompanhando depois do outro lado da mesa, Virgill prefere sentar-se na janela aberta, ainda buscando recuperar um pouco do fôlego. O sacerdote permanece olhando um pouco para o bardo, então se vira para ela “Deixa eu advinhar, ele te deu um susto né?”. Gabrielle olhou para ele ainda consternada, e um pouco envergonhada, como se tivesse cometido um crime.

“Na verdade… não, eu que não esperava a visita…”. Helton, com um semblante mais severo retorna a olhar para o bardo, e o ouve cantarolando sua música preferida, a feita pelo seu pai, discretamente. “Pelo visto, ele foi bem recebido então”. Os três se entreolham por um instante, e soltam uma breve gargalhada.

“Helton, você tinha de estar lá… Eu bati várias vezes, mas nenhum sinal de vida, nem um som e comecei a ficar preocupado… Então usando todas as minhas forças, dei um último golpe, e a porta partiu em duas, porém quando entrei lá estava ela…” Ambos ainda sentados permanecem prestando atenção a cada detalhe que o bardo dizia, para Gabrielle aquilo foi um acidente evitável, porém para Virgill, foi uma aventura épica e se admiraram.

A vergonha gradativamente foi substituida pela admiração, um pouco de orgulho, porém não acreditando no que ouvia ao perceber jeito que ele narrava a história, fez com que ela se sentisse diferente, por completo. Então… era assim que ela se sentia, quando me via contando suas histórias?

Helton se levanta, empolgado “Bravo… bravo… que aventura meu jovem!” o sacerdote não segura seu sorriso, e se vira para Gabrielle, que permanece olhando o bardo chocada. Não demorou muito para sentir que está sendo observada e retorna a olhar para ele, porém sem conseguir falar por um breve momento.

“Viemos te acompanhar nessa jornada, minha jovem guerreira, e pelo visto, acredito que você recebeu um belo presente de alguém que te admira”. Gabrielle surpresa solta um sorriso, se preenchendo de uma calma que não sentia há dias. “Então não foi um sonho… ou uma visão?”, pergunta com um tom levemente rouco.

“Mais ou menos, Morpheus nunca se esqueceu do que vocês fizeram, porém ele pediu que viesse aqui para te avisar e garantir sua proteção. Você fez uma pequena visita pela sua passagem dos sonhos.” Helton então pega algumas frutas e as oferece para ela e ao bardo. “Então, quer dizer que era ela mesma? Não uma lembrança?” Gabrielle sente que sabe, porém recusa-se a acreditar, permanecendo com uma ansiedade juvenil aguardando pela resposta. “Sim, o elo de vocês é inquebrável… Ela mesma pediu por isso…”.

“Existe alguma forma… de…” Gabrielle interrompe a pergunta enquanto se perde em seus pensamentos. “Sim, existe… Você precisará ser forte”. Gabrielle enrigesse seu corpo aflorando novamente aquela tensão antes de batalhar, reune suas forças “Vou precisar enfrentar minha passagem dos sonhos…?”. Helton confirma com a cabeça, e permanece em silêncio.

“Podemos começar… Estou pronta”. Gabrielle diz em um tom determinado, porém Helton percebe que a resposta foi principalmente para ela mesma. “Muito bem, vamos começar…”. Virgill pede licença, e sai do quarto, levando consigo uma das cadeiras do quarto, se posicionou do lado de fora da porta, em prontidão caso seja necessário sair em defesa deles.

Helton pede que ela tome o chá de ervas e se deite na cama, enquanto ele termina os preparativos. “Esse óleo manterá seus fluidos corporais enquanto estiver na passagem… Não se preocupe, sou um cavalheiro…” Gabrielle já deitada o olha com um sorriso meigo “Eu sei, assim como aconteceu com ela, deve ocorrer comigo”.

O sacerdote permanece por um curto tempo a observando, parado, admirado do que ouviu. “Certamente minha jovem, de fato, você também herdou a sabedoria de sua amada…”. Gabrielle por um momento petrifica, espantada com o que ouviu. Helton ri discretamente “Não se preocupe, seus sonhos estão bem guardados…”.

A seguir, ele inicia o ritual, porém com a voz mais formal ecoando pelo quarto a liturgia que uma vez foi narrada para sua amada durante sua missão de resgate, porém desta vez, ambos, sacerdote e barda foram se revesando nas falas, até que ela adormeceu em um sono pacífico e profundo.

Gabrielle sente uma mudança ocorrendo em suas costas, a maciez da cama enrigecendo como pedra e esfriando, surgem sensações de fome e frio úmido que a tomam por completo ao ponto de tremer. Ela abre os olhos, firma suas mãos e aplica a força suficiente para se levantar.

Um vento frio atravessa ela, aplicando força o suficiente para se desequilibrar por um instante. Adiante dela, está uma passagem em uma floresta, e no fim dela, uma clareira com uma fogueira acesa, roupas quentes e comida pronta, ao olhar para trás, um penhasco alto, e no final, outra passagem em meio a árvores sem vida, em um terrendo acidentado e sombrio.

Deuses, é alto de mais, tenho de ficar longe disso… posso cair se me desequilibrar novamente…” De repente ela ouve gemidos, gritos, o ecoar metálico e desafinado de espadas se debatendo freneticamente ao longe, vindos lá de baixo, e um grito de guerra único e familiar à ela. “Xena? é você!”

Sem pensar duas vezes, ela olha para baixo e tenta encontrar uma forma de conseguir descer esse precipício, porém sua atenção é interrompida por uma voz, que ecoa em seu interior “Feche seus olhos… se concentre nos sons… o que você ve?”. Gabrielle relaxa todos os seus músculos, e começa a prestar atenção em cada som. 

Eu… vejo uma batalha… eu te vejo… cavalgando… cheia de fúria… desespero… esse zumbido irregular… eu conheço esse som… é seu cha… Gabrielle abre os olhos e se move instintivamente para sua esquerda. Algo passa extremamente rápido por ela, sendo capaz de sentir o deslocar do vento e um estampido oco logo atrás dela.

Ao se virar, ela nota a arma circular cravada no tronco de uma das arvores. No chão, alguns metros de cipó cortados pela arma. A barda não consegue segurar o sorriso a partir da ideia brilhante que surgiu. Pegando o cipó, começa a o amarrar enquanto de seu interior surge um novo grito, que sai como um sussurro rouco Xena… aguente firme… estou chegando… eu… te amo…