Gabrielle se aproxima da arma cravada no tronco da árvore centenária, sua superfície reflete parte de seu rosto como num espelho polido, emitindo um certo brilho ofuscante no fio da lâmina circular. Por um breve instante ela permanece parada a admirando, examinando a arma em toda sua beleza ameaçadora. É isso… veio em boa hora, pode me ajudar, mas não posso me esquecer de fazer essa surpresa para ela…

Com muito cuidado ela ergue suas mãos e segura o chakram aplicando força somente na parte interior, porém, por um curto instante, ela sente na parte mais macia de sua mão aquele cutucão de leve do fio da lâmina. Calma… isso está muito afiado, e preciso dessas mãos inteiras… mas está muito presa, preciso forçar mais… mas como?

Gabrielle pausa um pouco e volta a examinar os arredores, procurando por algo que a ajude a soltar a arma. se ao menos tivesse algo que pudesse enrolar nele… Não… o cipó poderia se partir em contato com a lâmina… tende ser algo… Gabrielle abaixa o rosto e olha para si mesma. Excelente, meu casaco! A barda então remove de si o casaco e o enrola sob a lâmina de aço.

Vamos lá… não deve ser tão difícil… só mais um pouco… Gabrielle contrai sua boca ao ponto de fazer uma careta, gradativamente suas vêias saltam tamanha a força que aplica, enquanto a arma permanece imóvel. Ela para novamente perplexa. Devo estar esquecendo de algo… não faz sentido, ela deveria ter se soltado já… Ela com certeza teria conseguido com uma mão sem muito esforço… Que força… A barda se perde em seus pensamentos, agora lembrando do rosto dela, a olhando fixamente, em um esplendor silencioso, e aquela sensação calorosa, tão agradável foi aquecendo seu coração gradativamente.

É isso então… se eu vou usar sua arma, tenho de usar como você usava… Ainda com sua imagem formada na mente dela, Gabrielle remove o casaco da arma, percebendo que há alguns pequenos cortes no que seria as costas da roupa, mas dá de ombros e o veste novamente. Após um suspiro profundo, ela então fecha os olhos e vê mentalmente sua guerreira e como facilmente remove o chakram preso de uma árvore semelhante, examinando cada detalhe, posição, minuciosamente.

Como um instinto, ela abre seus olhos, se aproxima da arma, eleva seu tronco numa postura mais imponente, de autoridade, ergue uma de suas mãos e segura a parte exposta da lâmina, sem se importar com seu fio ou com qualquer força aplicada, sua mão contrasta com seu corpo rígido e firme, tocando levemente o item como se estivesse a segurar a sua amada, sua imagem volta a ser vista em sua mente.

Antes que qualquer força fosse aplicada, ela o move levemente para os lados, assim desprendendo o item daquela rochosa superfície e emitindo um roçar metálico que ecoa em seus ouvidos. Ela o olha por um momento e o amarra em seu cinto. Muito bom… agora vem a pior parte… Gabrielle levanta e amarra o cipó na parte mais firme do tronco, enrola parte dele no seu antebraço enquanto se aproxima da borda.

O chão aos pés do precipício parecem se afastar a medida que ela chega perto daquele fim de chão. Seus pés parecem começar a perder a sensibilidade, seu corpo a cambalear um pouco, devido ao medo inexplicável de alturas. Por um breve instante, a altura daquele lugar era bem familiar. É bem parecido com a profundidade daquele fosso no templo de… Dahrak… “Gabrielleeeeee!” Ela ouve um berro angustiante vindo de cima dela e tomada pelo reflexo ergue a cabeça para ver quem era, porém somente vê um céu vazio cinzento.

Um calafrio percorre sua espinha, enquanto ela permanece estática na beirada daquele planalto elevado, porém não se passa muito para que ela escute novamente aquele berro, agora vindo das profundezas da passagem no fundo daquele penhasco. Seu dorso vibra acompanhando aquele som, gerando um temor angustiante em seu interior mais oculto. Eu tenho de chegar lá… não tem outro jeito… cresce Gabrielle… Sua voz sussurra de modo áspero, admoestando a si própria.

A barda sente novamente aquele fervor subindo até sua nuca, uma leveza incompreensível se segue, seus olhos se abrem mais, ao ponto de sentir o vento frio os transpassando. Ela se agaixa, virando de costas para o abismo, e cuidadosamente se escorregando para baixo. Por um breve momento ela sente um balançar involuntário de seus pés se desesperando em busca de terra firme, porém não dura muito, lembrando dos ensinamentos de sua amada, ela então busca enrolar o cipó numa perna enquanto a prende com o outro, formando uma mini escada móvel.

Assim, ela flexiona seu joelho, afrouxando ele no braço o suficiente para escorregar um pouco e chegar a vez de descer mais um degrau, repetindo vagarosamente esse ciclo de movimentos em um rítmo fúnebre. Não olha para baixo… não é tão alto assim… quase chegando… Pouco depois ela ouve outro berro, dessa vez, sem pronunciar uma palavra se quer, somente um uivo angustiante naquela mesma voz tão acalentadora. Sua natureza cresce instintivamente e o tremor começa a tomar conta dela por completo.

Por um breve instante suas forças falham, e começa a sentir seu peso diminuir, as rochas aceleram subindo e um vento de baixo começam a empurrar ela, entretanto sua mente se mantém olhando fixamente para frente, tentando olhar para aqueles olhos azulados, alguns segundos depois ela para bruscamente e uma leve dor é sentida em seu quadril. Terra firme finalmente…? Ela se levanta vagarosamente e examinando suas pernas, ainda um pouco consternada.

Ainda bem que estava perto do chão… que susto! Gabrielle retoma o fôlego e se vira para trás, examinando seus arredores. Não muito distante, encontra a abertura da passagem da floresta sem vida a sua frente e inicia sua corrida. Sua preocupação agora era em chegar o mais rápido possível na origem dos sons da batalha, porém, sem fazer barulho.

Os sons do combate vão ficando cada vez mais próximos, entre as árvores ela começa a ver as espadas cintilando, soltando faíscas em uma dança mortal contrastando entre os grunido dos guerreiros enquanto forçam cada golpe e uma mistura de gritos e gemidos das vítimas em fuga sem rumo. Adiante, surge o fim daquele corredor, cuja saída desemboca em uma clareira e uma vila um tanto quanto familiar.

Gabrielle observa algumas pilhas de feno próximas e procura se esconder, enquanto examina os próximos obstáculos que ela pode aproveitar para passar sorrateiramente, ao mesmo tempo sonda o lugar. São muitos soldados… mas a estratégia parece ser fraca, dispersos assim, fica facil de encurralar aos poucos… Onde será que você está…? A barda busca forçar um pouco mais sua audição, afetando seus olhos que reagem se estreitando discretamente.

Aaaaaaaaaaaah… Seu corpo vibra novamente, desta vez de modo mais frenético ao ouvir esse uivo rouco, um arrepio lancinante percorre sua espinha, seu pescoço pulsa forte, a leveza de seu corpo aumenta. É você… aonde está… eu tenho que chegar lá, onde quer que seja… AGORA!!!!Gabrielle nega-se esperar um pouco mais, antecipando a menor possibilidade de ja ter ocorrido o pior. De novo não, eu não vou deixar, nem que tenha de ser eu no teu lugar… Seus sentidos simultaneamente se reunem numa concentração jamais sentida antes, sendo capaz de sentir a direção daquele grito.

Nada mais era relevante, e ela então, deixando transparecer sua decisão irrevogável se levanta e dispara em uma corrida rápida, entre os duelos na entrada e no pátio principal da vila, não parando por nada, sem evitar se desviar dos golpes dados próximos a ela, e sendo capaz de, sem esforço algum derrubar quem cruzasse o caminho dela.

A medida que se aproximava da origem dos gritos, os combatentes incrédulos da cena, interrompiam momentaneamente os golpes, chocados com a corragem daquela jovem. Quem é essa… Que maluca! Ela vai se matar!, CUIDADO!, VOLTE MENINA, FUJA… De ambos os lados da batalha, surgiu momentaneamente um cessar fogo inconsciente, provocado pela ação da barda, que não notou nada.

Vidrados com a cena, aqueles inimgos permaneciam incrédulos, nunca tinham visto tamanha coragem na vida. Entretanto, mal sabiam eles que era o ápice de seu desespero. A única sensação que ela sentia era seu coração galopando pelo corpo aquecido da corrida, contrastado pelo vento gelado, e olhos vidrados para frente. Gabrielle repentinamente parou de frente para um estábulo, vendo do interior escuro o reflexo brilhante de uma espada se erguendo, e no fundo um choro agonizante, negando o provavel e inevitável fechamento desse pesadelo.

Sob uma respiração ofegante, a barda sente involuntariamente sua mão alcançar o chakram, seu corpo segue os movimentos, se posicionando numa postura semelhante a que sua amada usava para lançamentos à longa distância, e acrobáticamente lança a arma com uma precisão que, ela sabia, não eram suas. Ouve-se aumentar o berro daquele objeto se deslocando pelo ar seguido de um eco de um rasgo, a espada desce abruptamente, mas não toca o chão imediatamente, permanecendo, como se balançasse suspensa, e logo vai ao chão, junto com seu dono.

Outro grito sai daquele interior sombrio, porém rapidamente cessa. Gabrielle ouve aumentar rapiamente o rugido da arma lançada retornando do golpe, e reproduzindo uma meia lua, captura o chakram no ar, agora enrubrescido, porém ela não percebe e já o fixa novamente em sua cintura, enquanto dispara em uma nova carreira para o interior do recinto. O ambiente aos poucos vai se clareando, e gradualmente, começa a ver a figura de uma mulher encolhida no canto do fundo daquele lugar, tentando proteger sua cabeça e seu corpo com os antebraços e canelas, entre soluços suplicando por piedade.

A barda diminui seu rítimo, os passos firmes se desarmam, agora ela sente sua leveza retornar, sua respiração fica mais profunda, mantendo os olhos fixos para aquela vítima indefesa, num esforço sobrenatural, ela tenta superar seu pânico dizendo numa voz mansa “Oi… Calma… está tudo bem… ele não vai te machucar… eu também não… vim te socorrer… calma… você está segura agora… não tenha medo…”.

Gabrielle começa a ver sua forma mais nítida, um cabelo profundamente escuro, de mãos firmes e fortes, porém extremamente trêmulas, pés e antebraços levemente manchados após uma aparente luta corporal perdida. Os soluços mais próximos e altos. Estando a poucos passos dela, a barda se agaixa aguardando um contato no olhar, permanecendo momentaneamente em silêncio absoluto. Eu reconheço essa sensação… Ela só precisa acreditar que está segura… Tenho de a convencer que está a salvo… o que eu digo? Será que ela vai acreditar? Minhas mãos… estão ensanguentadas??? Essa não… ela não vai acreditar… o que direi? Calma… calma… vamos la… para com isso… ela vai fugir… fale algo DROGA!

“Ei… você está bem?” Gabrielle sussura para aquela figura trêmula. “Você parece estar ferida… se não tratar, vai doer ainda mais…”. Ela espera um pouco, e percebe que os soluços diminuem, enquanto os antebraços lentamente vão se afastando e revelando um olhar, familiar, muito, familiar. “Eu só posso te ajudar se você me permitir… Aceita minha ajuda?”. Ela então escuta um sussurro trêmulo e embargado. “Você não vai me machucar?”. A barda sente um peso surgindo de seu interior, sentindo o peso e a gravidade do que ouviu, enquanto começa a desvendar a face daquela mulher.

Olhos azuis como de um céu de primavera, limpo sem núvens, cabelos profundamente escuros, cuja face realça suas expressões, o rosto de sua tão saudosa amada, porém numa expressão jamais vista antes, de puro e genuíno desespero infantil, refletindo uma solidão jamais presenciada, acompanhado de um olhar de súplica. O que fizeram contigo… meu amor… o que fizeram contigo… “Gabrielle??? É você?” Xena balbucia ainda soluçando levemente.

“Sim, sou eu… Xena, estou aqui.” Gabrielle sussura tirando forças de onde não pensava ter, para soar serena e feliz, por dentro estava despedaçada por ve-la completamente vulnerável. Isso é minha culpa… onde eu estava… eu quem deixei ela assim… ela nunca vai me perdoar… ah se você soubesse… tenho de me recompor… ela precisa me ver bem… Ela percebe os braços da guerreira se abrirem, sem forças, moles ao chão, deixando transparecer sua exaustão ofegante, um tanto sonolento.

Gabrielle se aproxima, a envolve em seus braços numa posição que seja possivel ergue-la no ar, apoiando suas costas e pernas pelos braços, por tempo suficiente para a levar a um lugar seguro por ali. Ainda com ela nos braços, a barda percebe a fadiga em seu rosto ainda bem úmido do recém cessado choro. Xena percorre o rosto de sua amada com os olhos, seus braços permanecem soltos, relaxados, sem conseguir evitar transparecer um esforço para sorrir em resposta ao resgate.

A barda examina rapidamente o lugar, porém Xena balbucia “Lá… em cima… pa.. rece.. segu.. ro.” esforça-se para falar entre suspiros profundos, tentando recuperar o folego. Gabriele olha na direção apontada por ela, e retorna o olhar à sua amada, com um leve sorriso. Deuses, como ela é linda… tenho de proteger ela… mesmo tão maxucada e cansada… ela me traz uma paz que… nunca senti…? É assim que você se sentia?. Gabrielle se recupera, percebendo que Xena notou seu vacilo momentâneo de adimiração, respondendo com um levantar de sobrancelha, e um sorriso mais relaxado.

Após subir a escada, Gabrielle a posiciona deitada sobre uma cama improvisada de palha com feno, não muito confortável, porém forrado com um pano que ela havia encontrado por lá, e a cobrindo, cuidadosamente, com um lençol. Por um momento, a barda se perde olhando novamente para aqueles olhos azuis, respondendo com um sorriso meigo e levemente mais fortalecido, enquanto estava focada examinando seu rosto. “Já passou, minha… amada…” Xena levanta um pouco suas sobrancelhas surpresa, ainda aparentando um esforço para se mecher, e falar “Sua…?”. Xena a olha com um olhar pidão, levemente travesso. “Para sempre…” Gabrielle responde, agora de modo mais sereno e espontâneo, repleto de convicção.

“Você… está bem…?” Mesmo naquele estado, Xena demonstra um resquício daquela chama protetora, com um olhar esperançoso por uma resposta sincera. “Uh hum” Gabrielle ergue um canto da boca em um sorriso. Agora não Gabrielle… engula esse choro… ela precisa sentir sua tranquilidade… engole… agora… Gabrielle repete mentalmente como um mantra, esforçando-se para manter uma expressão serena, mas furtivamente uma lágrima escapa, contrastando com a face tranquila. Xena, também era muito conhecida por suas habilidades como rastreadora, visão aguçada, um detalhe como esse, jamais iria ser despercebido, e sua face reage respondendo igual.

Ambas sem perceber, num ato reflexo, e simultaneamente, enxugam aquela lágrima, e aproximam-se em um abraço gentil. Um calor, tão distante, se reaproximou delas. “Xena…” Gabrielle interrompe com um suspiro. “Gabrielle…”. Os olhares se intercalam, numa admiração mútua, na expectativa de alguma delas quebrar o silêncio. Eu não aguento mais… esse suspense, droga… por que dificultei tanto isso, durante tanto tempo… a quem quero enganar… chega… não importa mais o que ela vai dizer… tenho de confessar. A barda deixa transparecer sua guerra interna para conseguir iniciar a confissão. Porém é interrompida por sua paciente apaixonante.

“Eu soube… dentro de.. mim…”. Xena pausa, um pouco menos ofegante. “Xena, você precisa descansar, pode ficar tranquila… estamos seguras a…”. Xena a interrompe, desta vez envergando suas sombrancelhas, seu rosto transparece uma súplica. “Por favor, me deixe terminar…”. Gabrielle ascende com a cabeça, e aguarda paciente.

“Eu tive… por tanto tempo… medo de te perder… te desviar do seu caminho… sua… paz… eu queria te ver, fazer feliz”. Xena mantem-se examinando a reação dela. “Depois de um tempo… eu percebi que não era mais uma amizade… e estava disposta a ir além… me neguei isso”. Ela pausa novamente para recuperar o folego, enquanto Gabrielle sente a segurar em sua mão direita, a conduzindo para cima de seu coração. Um olhar mais brilhante é lançado para a barda.

“Eu… confesso… também fiz isso…” Céus… o coração dela está galopando… igual ao meu. Gabrielle mantém-se em silêncio, respeitando o pedido dela, que prossegue. “Eu cansei… de esperar… que se dane… eu… a…”. Xena é interrompida abruptamente, notando que mais uma lágrima escapa de sua salvadora. A barda, ainda emudecida aproxima seu rosto do dela, e delicadamente deixa-se unir sua boca com a dela, preenchendo cada canto desta união, e sendo correspondida igualmente.

Aquele ardor nos olhos, o sabor salgado em sua boca foram contrastados com a doçura sentida neste contato único, tão bem guardado durante tanto tempo. Um suspiro de alívio é sentido. “Então é isso…” Xena ainda confusa mantém o olhar fixo nela. “Juntas para sempre…” completa Gabrielle, retomando seus sentidos.

A barda então se levanta um pouco, e busca prosseguir examinando o restante do corpo dela, em busca de lesões ou arranhões, enquanto ouve Xena sussurar algo quase inaldivel “Finalmente… posso dormir tranquila hoje…”. Gabrielle não consegue segurar um riso, recebendo dela uma levantada de sobrancelha. “E então… qual é o plano” Xena a pergunta, com um ar distraído. “Depende… você se refere a fuga, ou ao casamento?”. Gabrielle, levanta uma sobrancelha, acompanhado de um sorriso travesso.

Xena surpresa, não contém um espasmo reagindo ao que acabara de ouvir, “É você mesmo…? O que fez com minha barda?”. Xena brinca com a pergunta denotando um tom sarcástico. “Ah.. eu também queria ter dito isso antes… Já era tão obvio assim… mas ficavamos com medo…” Gabrielle deu de ombros, enquanto foi interrompida pela guerreira “à toa..”. Ambas se entreolham e soltam uma curta risada.

“Muito bem, senhorita dura na queda…”. Gabrielle se ajeita próximo a ela. “Qual é o prognóstico, doutora?” Xena levanta uma sobrancelha, esperando uma resposta. “Bem, nenhum osso fraturado, achei umas hematomas, mas vou cuidar bem delas para você…”, Gabrielle tenta simular uma expressão de seriedade, enquanto ela prossegue noutra pergunta travessa. “E o tratamento?”.

“Bem, no seu estado, recomendo um repouso, sem emoções fortes… e uma pomada para suas feridas. Que para sua sorte, tenho aqui pronta para uso.” Gabrielle corresponde o tom brincalhão, contudo tendo um resquício de preocupação. Xena então se ajeita na cama, ascentindo com a cabeça aceitando o tratamento.

“Muito bem, vamos começar”. Gabrielle cuidadosamente remove sua túnica, e inicia o tratamento, espalhando a pasta de ervas com babosa em cada ferida, terminando cada uma com um leve beijo. “Ei… doutora, isso faz parte do tratamento?”. Xena levanta seu rosto para encontrar o olhar de sua amada. “Só se você aceitar…”. Xena exibe um sorriso e reclina novamente, deixando que sua barda prossiga.

Após alguns minutos, Gabrielle concluiu o tratamento, se moveu para trás dela, que se ergueu um pouco e se reclinou sobre seu abdomen, encerrando um suspiro profundo. Gabrielle a envolve em um abraço, correspondida pela guerreira que relaxa por completo. Ela permanece a olhando por um tempo, admirando sua tranquilidade, enquanto descansava. Então é assim que ela me via, sentia, quando eu ficava assim com ela… que sensação maravilhosa… mas ela ainda está bem frágil… ela nunca foi assim… o que fez ela mudar tanto… como? A barda permanece analisando cada detalhe, repassando e finalmente absorvendo a realidade, porém o instinto da guerreira falou mais alto, e ela se virou para sua barda, olhando fixamente para ela.

“Ei… está tudo bem?” Gabrielle retorna à sua lucidez “Ei.. sim… está melhor?”, ela retorna a pergunta com um ar meigo. “Um pouco… então essa é sua passagem dos sonhos mesmo… bem agitadinho, não acha?”. Gabrielle suspira. “Sim…”. Xena muda seu olhar, transbordando receio, mas pergunta. “Fui eu que o deixei assim?”. Gabrielle sente um peso em seu peito, notando a vergonha tomando conta dela, que começa a se diminuir em seus braços, antecipando a temida confirmação. “Acho que sempre tive isso, dentro de mim… Mas escolhi esconder… seu foco me fez conter isso…”. Sua guerreira surpresa permanece imóvel.

“Eu te avisei… não importa as consequências, eu nunca te deixarei.” Gabrielle diz, com um ar de certeza resoluta, recebendo um apertar num abaço pelo abdomen. “Ei… calma aí..” Gabrielle solta uma risada jovial, em resposta a face tranquila de sua amada.

“Vamos descansar um pouco,  temos que prosseguir a caminhada logo.” A barda diz com um ar pensativo. “Tem algum plano?” Xena pergunta um pouco sonolenta. “Acho que sim… só não sei o que esperar… como foi contigo… agora é comigo…” Xena a interrompe, olhando com uma expressão séria “Conosco…”, Gabrielle, corresponde repetindo o mesmo para ela, porém, transparece que isso foi mais para ela do que uma resposta para sua amada.

Gabrielle sente um leve cansaço, e se permite relaxar momentaneamente o corpo, e cai num breve sono, ambas permanecem por algum tempo assim até despertarem. Entretanto, ao acordar, a barda nota que as feridas em sua amada desapareceram, A pele, antes pálida está mais corada, e sua amada mais fortalecida, porém, ainda aparentando uma fragilidade pouco controlada.

“Ei.. está melhor, minha dorminhoca?” Xena brinca com ela um pouco. Gabrielle responde com um sorriso. “Sim, e você?”. Xena ascende com a cabeça, com um olhar mais aberto que o de costume, e sobrancelhas levemente elevadas. “Vamos prosseguir então, está pronta?”, sua guerreira confirma com a cabeça, e Gabrielle a ajuda a levantar-se.

“Se eu não perceber algo, me avise, combinado?” Gabrielle espera a confirmação de sua guerreira, que ascende a cabeça. Tem algo de errado, ela está muito diferente, essa fragilidade não é normal… será que ela sempre foi assim e não percebi? Ela é tão bela assim, mas seria bom ter um pouco da guerreira por perto… pode ser que ela esteja adormecida… mas não vou me arriscar… tenho de garantir que dará tudo certo… Gabrielle prossegue com cautela, conduzindo Xena, segurando em sua mão.

Do outro lado da clareira há outra passagem, levando a outra clareira, dessa vez um pouco diferente, a vila parece vazia, mas não se arriscam a atravessá-la pelo centro, rumando entre as vielas, silenciosamente. Xena se mantém logo atrás dela, que prossegue cada passo pacientemente, com sua katana desembanhada, pronta para habilmente desferir defesas rápidas, devido a postura adotada pelo trajeto.

Repentinamente, ouve-se um barulho, de um vaso se quebrando no chão, parecendo que foi de um esbarrão acidental, e a seguir, passa por elas um gato malhado, a toda velocidade, desaparecendo entre as árvores, como se estivesse em fuga. Elas dão de ombros, mas mantém-se em alerta total. Assim elas conseguem chegar na passagem, mas permanecem no mesmo rítimo, todo cuidado é pouco.

Chegando na próxima clareira, elas encontram um lugar um tanto familiar, a casa da família de Gabrielle, a grama parece ter sido aparada recentemente, as luzes da casa estão acesas, e ouve-se um falatório de seu interior. Ambas se olham levemente surpresas, porém, por dentro, já sentiam a coesão do lugar… Elas prosseguem num passo mais acelerado que antes, até chegarem próximo da porta da sala.

A porta se abre lentamente, porém não conseguem notar quem a abriu, Xena a olha consternada, preocupada se era seguro entrarem, porém uma forte tempestade se iniciou, e ambas se obrigaram a entrar, buscando um leve abrigo do temporal raivoso. A porta se fechou sozinha, assim que chegaram no meio da sala. Passos pesados são dados na direção delas. E do corredor, surge uma figura familiar, para Xena, porém Gabrielle custou a assimilar quem era.

Um senhor alto, de cabelos e bigode branco, trajado em uma armadura escura, cuja força poderia ser descomunal para a idade. Um olhar firme e sombrio, suficiente para amedronta-la, porém, Gabrielle estranhamente não é capaz de sentir nada, mantém-se ápatica a ele, retornando o olhar hostil. Entretanto, ela sente a mão de sua amada apertar seu braço. Você… está trêmula? Quem será esse homem… o que ele… fez… não é possivel… Gabrielle tenta olhar para sua amada, enquanto observa atentamente o desconhecido, porém antes de conseguir, escuta sua guerreira gaguejar “Pai???”.

Gabrielle é tomada por um calor, semelhante ao de uma espada sendo aquecida para a forja, suas mãos se posicionam segurando o cabo da katana, e mantendo a distância dele, e Xena, atrás dela, tentando a cobrir, como um escudo romano. “Atrius… Por quê não estou tão surpresa em te ver aqui? Ou devo dizer… Ares…”.

O guerreiro interrompe seu andar lento, em seu cinto, desembanha uma espada, executa algum malabarismo curto, rodopiando algumas vezes a frente dele, porém lança a espada ao chão de madeira, fincando ela com força, fazendo com que ela permaneça em pé, balançando por alguns segundos. “Há quanto tempo, meninas… Já estava com saudades.”

“O que você quer?” Gabrielle manter um ar imponente, sua voz emana um ar de autoridade e firmeza que surpreendem o possível oponente. “Eu? Só vim visitar vocês, um pai amoroso como eu, não suporta ficar longe da família por muito tempo…”. Atrius deixa soltar um leve sorriso irônico, mas mantém-se no lugar, e observa a katana de Gabrielle, já desembanhada, e  apontada para ele. “Você quer mesmo fazer isso, minha jovem, mesmo eu estando desarmado?” O guerreiro abre os braços mostrando que não há mais nenhum armamento com ele.

Gabrielle então, sem fazer esforço algum, ergue-se de sua postura de defesa, levanta sua espada, mantendoa na vertical, e somente a solta, a katana, devido a sua afiação bem feita, afundou um pouco na madeira em um golpe seco e imovel. Chamando a atenção do guerreiro. “Impressionante, minha pequena… Bela espada, economiza muito esforço para ti… dano eficiente diria.”

“Sim, nem sempre a força e a violência são a resposta, sem paz, sem amor, a vida não faz sentido… você já amou?”. Gabrielle pergunta calmamente.

Atrius, surpreso, fica por um tempo sem responder, mas mudou de ideia, e respondeu “Amar… depende muito, minha cara… veja minha filha…” ele aponta para Xena, que instintivamente se recolhe e recua. “Ela amava sua família, mas amava brincar de lutar…” Xena recua mais. “essa divisão fez com que ela perdesse sua inocência de sangue…” A guerreira sente uma pontada em seu interior e se encolhe mais, um olhar angustiante surge. “do mesmo jeito que aconteceu com você” Apontando para Gabrielle, agora.

Xena se ajoelha, apoiando suas mãos no chão, trêmula, como se tivesse levado um soco na boca do estômago, seu olhar arregala-se, e iniciam-se os soluços, ela deixa transparecer sua luta interna tentando conter sua dor, sua vontade juvenil de sua criança interior, de chorar. “E isso minha cara, é o destino… Quem na familia foi assim? EU.” Afirmou resoluto, erguendo o tom firme, e olhando para sua filha. “Quem é a destruidora favorita do papai, quem?”. Xena, exausta, se desequilibra, e inerte se entrega a dor, a vergonha e ao desgosto “Eu…”. Gabrielle entra na frente do guerreiro, e olha firmemente para ele. Que covarde, baixo… como ousa falar assim… ela nessa condição, tão vulnerável e… indefesa… se eu pudesse, só por um instante… só me de um motivo… um gesto para mim… só isso… e logo acaba… eu juro… que te despedaço por dentro… essa jugular… vou partir em duas!…

“O que foi Gabrielle, está com raiva né, você pode acabar com isso, levante sua espada, e passe aqui… não, muito rápido e misericordioso… não… vou deixar melhor as coisas..” Atrius se ajoelha e aponta para sua artéria. “Você pode aplicar o ponto de pressão, faça isso, será muito mais divertido… Ah, só um segundo, essa posição não está boa, Minha filinha não vai conseguir ver…” Atrius se vira um pouco. “Pronto, agora sim ela vai conseguir ver de ‘camarote’ tudo…”. Gabrielle arregala os olhos, sentindo um despreso visceral pelo que ouviu.

Enquanto isso, a guerreira permanece abatida, ajoelhada no chão sem forças para emitir qualquer som, olhando para ele sem sinal de vida alguma, apática aparentemente, revivendo suas memórias sombrias numa espécie de transe. Gabrielle, a olha, e reconhece sua expressão. Ela está a ponto de explodir, eu tenho de impedir isso.. antes que seja tarde.. ela não vai aguentar se isso ocorrer… “Muito bem, você tem certeza que quer isso?”. Gabrielle pergunta resoluta, e sente Xena a olhar friamente.

“Ande logo, e me liberte desse desgosto, de ver minha filha desse jeito…”. Gabrielle permanece o encarando, porém não se move imediatamente. Ela puxa a katana, e a embanha novamente, se virando para sua amada, e a levantando. Por fim, se vira, e em um tom brando, responde diante de sua feição perplexa “Ninguém dá o que não tem… Sentimos muito por você, só espero que você consiga sentir o amor que sinto pela Xena, só o amor pode te salvar… Te desejo sorte. Adeus.” Atrius, repentinamente desaparece tal como uma fumaça.

Gabrielle retorna seu olhar para sua amada, que está se recompondo lentamente, a medida que retoma sua consciencia, encontrando o semblante manso e meigo da barda, esboça um sorriso e um suspiro e saem da casa, contrapondo com sua postura ainda cambaleante e retraída.  A barda precisa equilibrar a força para apoia-la, enquanto sonda os arredores. parece que falta pouco… há mais um caminho à frente… outra clareira… vamos logo para lá… Seus pensamentos são interrompidos por um aumento no seu peso. Ela olha para sua guerreira, que lentamente cai ao chão, com uma fadiga incompreensível.

“Ei… você está bem?”, Gabrielle se agaixa para acudir ela, seus olhares se cruzam novamente enquanto a barda a envolve em seus braços. Aqueles olhos azuis refletem um brilho diferente, de admiração acanhada, ao mesmo tempo, de arrependimento. Gabrielle… eu não aguento… é muito para mim… me ver assim, tão… frágil… sempre fui assim… eu não sou boa para você… mas… me salve, por favor… Olhando fixamente para ela, Xena reúne suas forças e sussura: “Me perdoe… minhas forças sumiram…” seu olhar se abaixa constrangido, relutante para prosseguir, ela suspira momentaneamente “Vá.. se salve.. não quero ser um peso para você…”. 

A barda sente um nó em seu estômago, encurvando suas sobrancelhas, “Ei… não ouse dizer isso… é a minha vez agora, de ser forte por você, não me negue esse direito!” soltando um sorriso, com delicadeza a levanta, e a conduz para a próxima passagem, cantarolando para ela sua musica preferida, enquanto recebe um sorriso meigo, acompanhado de suspiros, profundos.