Vício
por DietrichXena poderia ser uma grande atriz, se ela quisesse.
O jeito que ela contou a farsa da morte de Theodorus, eliciou lágrimas em alguns. Pessoas tiveram que ser contidas em sua ânsia de buscar vingança imediata.
Ela, sabiamente, não me tornou sua segunda em comando. Darphus ganhou a honra. Contrito, consternado, assumindo o encargo com a tristeza e com a missão de fazer jus ao legado de Theodorus, nas palavras dele. Mas quando ele olhou de lado por um segundo, eu vi o brilho esquivo em seu olhar.
Xena pode contar com a corrupção da natureza humana para ajudar na consolidação daquela mentira. A dor da perda de Theodorus não é tão grande a ponto de nublar os movimentos dos jogos de poder e das pessoas que o anseiam.
Alguns percebem minha absoluta indiferença àquele discurso e me olham com aversão.
E pela primeira vez aquilo me atinge.
Não porque me importo com eles, mas porque percebo com cada vez mais força que sou uma pessoa quebrada. Por causa dela.
Eu não consigo ter amigos. Não consigo me relacionar com as pessoas. Não consigo me importar com nada. Tudo porque aconteceu algo comigo que partiu minha alma de forma que não consigo ser normal. E ela foi a causa. Ela se certificou em ser a única coisa que minha alma consegue sentir.
Minha única fonte de algo próximo a sentir-se viva.
Ela é uma prisão. Ela acorrentou minha pessoa à ela de forma, suspeito, irreversível.
Estou condenada a viver a vida de uma parasita, se ela me quiser, e a morrer, se ela um dia me rejeitar.
Ela ofereceu a vida dela a mim. Mas não existe vida para mim sem ela.
Olho para as pessoas ao meu redor. Tento imaginar que eles são pessoas. Que têm vidas reais. Vidas internas. Talvez algo interessante para conversar.
O sentimento de indiferença em mim é tão real que me irrita.
Nesses momentos, meu ódio por ela volta. Eu penso quem eu seria se eu tivesse tido outra vida. Se ela não tivesse arrancado minha alma, engolido, e eu só tivesse acesso à mim perto dela.
Eu recuperaria minha alma se a matasse? Ou ela morreria junto com ela?
O acampamento está de luto. O grito “por Theodorus!” se tornou comum ao lado de “por Xena!” “pela Conquistadora!”
Deuses, ela conseguiu não perder o exército. Ela realmente conseguiu. Ela realmente é capaz de qualquer coisa. O mundo ser dela, é uma questão de tempo.
– Você está pensando com força hoje – diz a voz dela em meu ouvido.
Sim, isso mesmo, eu estava no acampamento, ouvindo o discurso dela, e agora estou na cama ao lado dela, e algo aconteceu entre esses dois eventos, mas eu não sei exatamente o que, porque ela também roubou minha capacidade de perceber o tempo. Então, me perdoe se meu relato é quebrado.
– Porque diz isso? – pergunto.
– Sua testa está franzida como nunca antes.
– Não sabia que estava tomando notas sobre minha testa.
– Me fale seus pensamentos.
Dou risada.
– Você não quer realmente saber.
– Eu quero.
– Não quero falar – resmungo, dando as costas a ela.
– Então vou começar a tentar adivinhar.
Deuses. Ela já está me irritando. Desde quando temos conversinhas pós-sexo? Ela não pode só dormir e me deixar em paz em minha autocomiseração?
– Você está se odiando porque está na cama com sua inimiga – ela chuta.
Ranjo os dentes.
– Algo assim. Mas não exatamente isso – respondo, entredentes – o problema não é estar na cama com você.
– Qual o problema então?
– O problema é que não tenho como estar na cama de mais ninguém.
– Huummm – ela se enrosca em mim, os lábios deslizando por meus ombros e meus cabelos – está com vontade de experimentar outras pessoas?
– Não. Nem um pouco. E esse é o problema.
– Você é confusa pra cacete, Callisto.
– Eu sei. E esse também é o problema.
Os beijos dela agora descem devagar por minhas costas.
– É meio… cativante, devo dizer – ela responde, entre beijos.
– Feliz que minha miséria a entretem.
Sinto o sorriso dela colado em minhas costas.
– Não é isso, coisinha…
Coisinha. Que porra é essa? Temos quase a mesma altura.
– Me conte sua miséria. Quem sabe posso fazer algo sobre.
– Pensei que tínhamos concordado que somos duas idiotas sobre esse tipo de conversa? – retruco – porque essa mudança?
– N’ sei – a resposta dela é abafada pelo fato da boca dela estar ocupada em beijos dispersos por todo meu corpo. Todo meu ser já está aceso. Imagina tentar raciocinar e sentir raiva quando o objeto de sua raiva está lhe beijando.
– Você mesma disse. Na primeira vez que conversamos. Sou uma vadia esquisita. E estou condenada a ser uma aberração. Eu devia…
Me calo.
Ela para de me beijar e me vira, me forçando a encará-la.
– Devia ter me matado? – ela pergunta.
– Ou simplesmente morrer – completo.
– Não morra. Aberrações tem o direito de estar vivas em sua aberrância.
Oh, deuses, de novo. Ela me fazendo disparar em gargalhadas.
– Que porra de frase é essa?
– Você é bizarra. E acha que eu te fiz assim, não foi?
– Estou errada?
– Parcialmente. Não nego minha participação. Mas em algum momento, você escolheu esse caminho. E isso está com você. Não comigo.
Minhas unhas se enterram nos braços dela. Ela se contrai, mas vejo o prazer em seu rosto.
– Não senti como uma escolha – falo, irritada – me sinto uma prisioneira. De mim. De você.
– Uma escrava de suas paixões? Mas isso é apenas ser humana, Callisto.
– Humanos tem paixões. No plural. Você tem sua coisa de conquistadora. Você bebe vinho e conversa com oficiais e soldados. Você lidera. Eu… eu só tenho você. E isso me enlouquece.
Beijo-a com tanta raiva que machuco seus lábios. Sinto gosto de sangue. Continuo devorando-a, pescoço, colo, seios. Mordo com força, deixo marcas. Arranho até ela estar coberta de linhas vermelhas.
– E você – continuo. Ela queria que eu falasse? Estou falando – você sabe disso. E se aproveita disso. É sua fissura, sua droga, maldita. Porque você é uma viciada. Porque você odeia sua vida e quer viver no limite. Eu sou só mais uma garrafa de álcool ou um cigarro de ópio para você.
Tenho três dedos dentro dela, bem fundo. Ela está totalmente aberta para mim, vermelha e gemendo, perdida. Talvez ela nem esteja mais me escutando.
E eu faço o que ela quer. Uso meu ódio para fazê-la gozar. É a pira dela. Me sinto escravizada. E não consigo parar.
E eu já sabia, mas dessa vez eu sei em meus ossos.
Eu sou viciada também.
Nunca toquei em álcool ou cigarro, mas não preciso, porque tenho ela.
Ela está tremendo incontrolavelmente sob mim.
Mas não paro de fode-la até ela praticamente desmaiar.
Talvez, agora, ela cale a boca.
Mas, deuses, ela não cala. Quando ela recupera a voz, ela continua.
– Você está certa, Callisto. Você é isso para mim. Mas você não é só isso.
Esfrego uma mão no rosto, sem querer ouvir. A mão que está encharcada do gozo dela.
– Eu sou sua única coisa – ela continua – e você está certa, eu tenho muitas faces. Mas só uma é verdadeira. Essa, aqui, com você.
O que ela fala não tem sentido.
– Eu sou um monstro, agora. Você também. Pelo menos lá fora, é o que somos. Mas eu também já fui uma menina que perdeu alguém e saiu para se vingar do mundo – ela ri – você foi um pouco mais focada do que eu. Você foi mais sábia, nesse sentido.
A voz dela é uma corrente contínua.
– Eu sou uma aberração também. Talvez, melhor em fingir que não sou. E nesse sentido, você é mais íntegra do que eu.
A mão dela entrelaça a minha.
– Às vezes, também penso quem eu seria se tivesse feito escolhas diferentes no meu caminho. Talvez eu pudesse ter superado a morte do meu irmão, a rejeição de minha mãe, a rejeição de toda minha vila, e tentado ser uma garota normal em algum lugar em vez de espalhar sangue pelo mundo. Decisão que acabou atingindo você.
Não estou mais escondendo meu rosto. Olho para ela. Ela me olha de volta.
– Você é tão única para mim quanto eu sou para você. Sou quebrada também, só que de um jeito diferente. E só você vê isso. E sabe disso. E pode usar isso contra mim. Isso é um respiro. Um alívio que não troco por nada. Isso é vida. Isso me faz sentir humana.
Solto uma risada trêmula.
– Estamos condenadas uma à outra, é isso? – falo.
– Não – ela sussurra – estamos salvas uma pela outra.
E ela me abraça. Se enrosca em mim como se eu fosse o fio de sua vida.
Não sei quanto tempo ficamos assim: pele contra pele, alma contra alma, sem força nem vontade de nos separar.
Sei apenas que, por um instante, minha mente para de gritar. Meu peito para de rasgar.
Percebo, agridoce, que a amo como o inferno.
Percebo, também, que não tenho chance no dia em que ela não se importar mais comigo. Mas enquanto ela está aqui, eu vou mergulhar nisso inteiramente. É doente. Mas é o que tenho.
E vou fazer o melhor que posso com isso.