Capítulo 8
por Officer KirammanPassado
Ah, o tempo. O tempo é a única entidade que mostra fria indiferença à tudo e a todos. Não importa a ocasião. Um olhar, uma lágrima, o ferimento de uma flecha, um beijo, as gotas da chuva caindo, os flocos de neve, as folhas das árvores, os pássaros voando, o fogo ardendo. O tempo não pára para nenhum deles. O tempo não pára para que se lamba as feridas da guerra. O tempo não pára para que juntemos os inúmeros cacos de uma cerâmica que se partiu. O tempo não pára para que um coração partido volte a ficar inteiro, mesmo aos pedaços, ele deve continuar batendo e Imogene sabia disso. Mas, sobretudo, o tempo não pára, para que possamos ter um momento prolongado ao lado daqueles que amamos.
Ainda que todos considerassem a idade avançada de Lord Hedwyn uma vitória incomum dada a época que vivia, Imogene faria qualquer coisa para que o avô pudesse permanecer ao seu lado por mais alguns anos. Infelizmente, os deuses já haviam sido generosos demais, e o patriarca Callaghan perdia as forças a cada dia.
Numa tarde de outono, trancafiado em seus aposentos, pedindo somente a companhia da neta ao seu lado, Lord Hedwyn Callaghan finalmente descansou. Ainda que todo o conselho quisesse saber quais foram as últimas palavras do ancião, Imogene nunca lhes disse.
Ela sabia que os desafios que enfrentaria agora seriam inúmeros. Encontrava-se praticamente sozinha, e sentia o peso das responsabilidades. Nos dias que se seguiram, ela sentou-se na ponta da mesa do conselho, e declarou-se como Senhora de Devonshire. Ela sabia que muitos ali estavam em desacordo, mas teriam de aprender a viver com isso. Ela sabia que haveria quem lhe quisesse tomar o posto. Ela sabia que ganhar o respeito dos homens do Palácio era uma missão quase impossível, mas que outra escolha ela teria? Se a perspectiva da partida de Ayleen não lhe atormentasse tanto o coração, talvez ela tivesse uma dose maior de otimismo… Seria como ainda ter um pedaço de família, perto de si.
Assim, ela continuou sua rotina. Gerenciando os negócios do palácio, atendendo as necessidades do povo, andando pelas ruas e falando com pessoas, muitas dessas lhe prestando condolências pela partida de Lord Hedwyn, fossem elas sinceras ou não.
E foi numa dessas rondas pelas vielas de Devonshire que o fatídico evento que mudaria sua vida aconteceu. Alguns diziam se tratar de um desentendimento, alguns diziam se tratar de traição. O fato é que Imogene entrara numa luta contra seu até então braço direito, Lord Bae, uma luta das feias. Primeiro ouviu-se espadas cantando, e depois, quando elas foram ao chão, os murros, chutes e joelhadas. Qualquer um que tivesse visto Imogene lutar no pátio de treinamento do Palácio Callaghan três anos antes, apostaria todas as fichas nela, mas o inexplicável aconteceu. Talvez por destino, talvez pelo ânimo abalado, talvez pelo coração partido…
Ao fim da briga, o corpo maltratado da morena estava ao chão, o rosto coberto de sangue, os olhos inchados devido aos socos recebidos, lábios partidos e rara era uma parte do corpo que estivesse sem hematomas.
Ela foi arrastada de volta ao Palácio por alguém que lhe reconhecera ali jogada numa rua qualquer. Ayleen, ao vê-la naquele estado, desesperou-se e chamou o melhor apotecário que conhecia, depositando nele e nos deuses a sua fé. Um dia e meio se passou até que a morena recobrasse a consciência, mas suas dores eram tantas que seu olhar era capaz de traduzir o quanto ela preferia estar ainda desacordada.
Horrorizada com o fato e com o coração em mil pedaços ao ver a pessoa que amava daquele jeito, Ayleen adiou o casamento em algumas semanas, com a intenção de permanecer no palácio até que Imogene melhorasse.
Mas ainda que os hematomas e ferimentos fossem cicatrizando com o passar dos dias, Imogene não parecia apresentar nenhuma melhora além desta. Seus olhos eram sua única fonte de expressividade. Presa a uma cama, incapacitada, não proferia nenhuma palavra senão gemidos. Não se levantava. Era banhada por criadas e dependia delas para ser alimentada, ainda que Ayleen imediatamente assumisse essa função com todo o zelo e cuidado.
Ayleen implorava diariamente ao apotecário que encontrasse algo, fosse uma erva, fosse um fungo, fosse qualquer tipo de medicina que restaurasse as forças da morena, mas era em vão. Segundo ele, apenas o tempo poderia dizer, ou reverter o mal que havia sido feito. E que outra escolha ela teria, senão rezar aos deuses e esperar o tempo agir?
E ele agiu. Com lentidão quase cruel, mas agiu, fazendo com que ao menos Imogene conseguisse se levantar da cama; mas se locomover era outra situação bem mais complicada. Sua voz voltara, mas não era a mesma. Não tinha a rouquidão macia de antes, não tinha nenhuma articulação clara, senão balbucios e palavras tortas. O apotecário explicou que as dificuldades motoras e o dano à voz provavelmente eram provenientes dos golpes que levou na cabeça. Que os impactos que sofrera nos membros e principalmente na cabeça haviam lhe “estragado” além do que ele era capaz de consertar com seus remédios e poções. E na noite em que Ayleen recebeu essa notícia, toda a força que tentava demonstrar até então se esvaiu. Ela chorou. Chorou como não chorava desde aquele dia em que conversou com Imogene sobre ter aceitado se casar.
Que justiça era essa a dos deuses? Permitir que uma pessoa forte, sagaz, determinada, e sábia como Imogene fosse reduzida à beira da invalidez? Que mal pudesse andar e falar? Ayleen foi tomada de um sentimento incomum. Raiva, muita raiva. Quando deu-se por si, desejou ser fisicamente forte como a amiga, para que pudesse enfrentar Bae e vingá-la. Tanta raiva que seus punhos chegavam a doer de tanto apertá-los, imaginando-os ao redor do pescoço de Bae. Mas há muito ele havia partido de Devonshire, sendo procurado pela guarda do Palácio Callaghan e não encontrado. E após a raiva, veio a impotência. Ela estava cansada de apenas reagir a tudo, de não ter em suas mãos as rédeas de nenhuma situação.
Mas colocadas à parte as dores emocionais, outro problema que afetava a muitas pessoas se instalava. Devonshire não tinha ninguém ao seu comando. Era um povo sem governo. O palácio Callaghan não tinha mais ninguém para regê-lo. O que seria do povo, à mercê de algum bárbaro qualquer que resolvesse reivindicar o território para si, tomando o ouro, as esposas e matando civis? Diante do impasse, Ayleen jogou a única carta que tinha em mãos. Declarou à Agur Drachen que prosseguiria com o matrimônio se o acordo anterior continuasse valendo. A proteção do seu exército seria estendida ao condado, preservando o bem estar de todos os que ali viviam. Condição aceita por Agur, que não perdeu a oportunidade de agregar o território à Cornualha, se tornando Senhor de um território muito maior do que o seu, sem precisar gastar ouro, tempo ou energia que a guerra por território demandava. É claro que mais uma condição foi imposta por Ayleen: Imogene seria acolhida no seu Palácio na Cornualha, onde moraria por quanto tempo quisesse ou necessitasse.
O coração de Ayleen se apertava diante da decisão. Sentia-se com se estivesse traindo o povo que considerava seu, entregando-o à Drachen, sentia-se traindo Imogene que tanto desejo tinha de continuar o legado Callaghan. Mas que escolha tinha? Não poderia apenas dar às costas a Devonshire e sua sina incerta, e, sobretudo à Imogene, que provavelmente, jamais teria condições de governar novamente.