Capítulo 25

Os olhos de Ayleen ardiam de cansaço e suas têmporas latejavam, talvez de sono, talvez pela tensão. Ela estava sentada em um banco muito velho perto da lareira, empunhando seu arco e flecha enquanto fitava a imagem de Agur que retribuía com um olhar cheio de ódio. Eventualmente o homem se agitava o suficiente para ela pensar que conseguiria soltar as amarras, e nesse caso, ela não sabia quais seriam suas chances contra ele, mas o mais incômodo era escutar todas as palavras repulsivas que ele lhe dirigia nas últimas horas. O sol quase atingia o meio do céu, e mesmo que o clima ainda estivesse frio, Ayleen sentia as palmas de suas mãos suadas e palavras ecoando em sua cabeça que eram o suficiente para lhe causar as mais diversas reações de nojo.

Ela podia tentar amordaçar Agur, ou ainda quem sabe, lhe acertar a cabeça com algo pesado o suficiente para desacordá-lo, mas ela sabia que o cansaço que sentia lhe deixava com os reflexos lentos demais para conseguir reagir, caso ele tentasse algo. Não era apenas uma noite mal dormida. Haviam sido várias. Ela lamentou não ser tão forte quanto Imogene, mas daí lhe ocorreu que talvez a amiga não estivesse em tão bom estado também.

Um pensamento intrusivo começava a se formar. E se quando ela voltasse, Agur a pegasse desprevenida. Afinal ele estava entre a porta e ela, ainda que caído ao chão e amarrado, mas aparentemente bem alerta. Por que ele estava alerta? Mal tinha comido, pensou ela. Deveria estar fraco, mas ainda assim parecia em melhor estado do que ela. Obviamente ele tinha dormido. Isso talvez já fosse vantagem o suficiente. Os pensamentos intrusivos começavam a tomar conta. E ela se não conseguisse se manter acordada e simplesmente o sono fosse mais forte do que sua própria vontade e seu instinto de sobrevivência? O que Agur faria? Ele conseguiria fazer algo? Ela olhou para o ferro da lareira que tinha retornado para o lugar, e ponderou se deveria atirá-lo longe o suficiente pela janela para que não estivesse ao alcance do tirano. Ou talvez pudesse ela mesma o acertar e terminar com essas preocupações? Não, ela não conseguiria. Se acertasse fraco demais, ele permaneceria acordado e mais furioso. Se acertasse forte demais, poderia matá-lo, e isso não era uma opção. “Pelos deuses, como se mede essas coisas?”.

Seu estômago se retorceu, com outro pensamento intrusivo chegando. Do que adiantaria se livrar do ferro? Se ela adormecesse ele poderia lhe matar com uma flecha. Não, ele não conseguiria atirar com as mãos amarradas…, mas poderia rasgar sua garganta com a ponta dela. Do que adiantava ter uma arma se ela não lhe fazia se sentir mais protegida, ponderou ela. Bom, se ela não tivesse um senso moral forte o suficiente, já a teria usado. Mas ela não tinha certeza de que conseguiria tirar a vida de alguém, e além disso, não sabia quais seriam as implicações da morte de Agur para o plano delas. Se livraria do tirano, verdade. Mas e seu exército, o que faria?

Por um momento lhe pareceu tão simples a ideia de simplesmente acabar com a vida dele. Ele havia tirado tantas vidas, direta ou diretamente. Ele havia desgraçado a vida de tantas pessoas. Ele havia matado sua segunda família, os pais de Imogene. Ele a havia violado. Ele havia vendido tantas pessoas como escravos. Do que valia a vida dele?

Os nós de seus dedos ficavam brancos enquanto ela apertava o arco, sentindo a textura da madeira em sua mão, como se isso pudesse talvez lhe manter alerta. Ela estava nauseada. Concluiu que definitivamente não conseguiria tirar uma vida, pelo menos não naquele momento. Ela fechou os olhos por alguns poucos segundos, somente para reabri-los novamente sentindo-se um pouco zangada com Imogene por ter lhe deixado ali e estar demorando tanto.

Mas será que ela tinha culpa? E se tivesse ocorrido algo no meio do caminho. E se ela tivesse sido capturada pelos romanos? E se ela nunca mais a visse? Não, isso seria terrível. Ela estaria completamente sozinha sem Gene. Sua cabeça pesava ainda mais, e os pensamentos intrusivos começavam a fazer um turbilhão que era QUASE palpável dentro do seu crânio. O que faria? Sequer sabia se Muirne ainda estava viva… Do que adiantaria viver num mundo sem ninguém? Sem seus pais, sem a família que lhe acolheu, sem seus amigos druidas, sem… sem a pessoa que amava.  Parecia tudo tão injusto. Lutar, lutar, lutar e o mal ainda…ainda prevalecia? Do que adiantava lutar? Talvez devesse apenas ceder e … finalmente…descansar. Parecia bom, descansar.

Ela foi acordava pelo som de dois estalos muito altos. Seu coração se acelerou tanto que quase a fez perder o ar por alguns segundos. Quando conseguiu focar sua visão borrada, viu que o primeiro estalo tinha sido a porta que fora arrebentada, provavelmente por um chute. E o segundo, o joelho de Agur, que … também havia sido…arrebentado por um chute?

-Afasta-se dela, seu porco imundo.  –  O homem caiu de lado, urrando de dor e segurando a própria perna enquanto Imogene se dirigia a Ayleen, que sobressaltada levantou-se e a abraçou com uma força quase feral.

-Pelos espíritos, me desculpe, eu…eu não aguentei ficar acordada.

-Está tudo bem. Está tudo bem agora. – Imogene lhe aconchegou em um abraço cheio de desespero. – Eu não devia ter lhe deixado aqui.

Ayleen não sabia o quanto tempo havia dormido, mas aparentemente foi o suficiente para que Agur conseguisse soltar as amarras dos seus pés com um lado cortante de uma das pedras soltas da parede e tentado avançar sobre ela. Por providência dos deuses ou por mera sorte, Imogene conseguiu impedi-lo bem a tempo.

-A única razão pela qual eu não corto sua garganta agora é porque eu não precisarei ser a pessoa a fazer isso, seu imundo – ela disse chutando as costas de Agur que ainda segurava o joelho, pálido de dor – E se quiser algum conforto, é melhor beber desse odre pois é a única coisa que lhe trará um pouco de alívio.

O homem olhou para o odre cheio de chá de mandrágora um pouco reticente, pois sabia das implicações em bebê-lo, mas também sabia que nenhuma das duas mulheres faria qualquer questão de lhe deixar confortável. Por fim, deu um gole no líquido, em busca de um pouco de analgesia para o membro quebrado.

Imogene o segurou pelos braços e o jogou para o lado, amarrando novamente suas pernas, sob protestos e urros de dor. Por fim, o levantou nos ombros com uma facilidade que só poderia ser fruto do momento de adrenalina que passava e o jogou em cima do cavalo como se o mesmo não passasse de uma carga.

-Me desculpe Ayleen, precisaremos seguir andando. É o único jeito de levar esse imundo conosco. Ele não conseguirá andar.

A loira assentiu. Queria fazer mil perguntas sobre o que havia acontecido em Portland, se havia dado certo, sobre o que fariam em seguida, mas ainda estava um pouco em choque pelo medo que havia passado, o que a fez caminhar emudecida pela maior parte do caminho até Glastonbury.