Quando Ayleen abriu os olhos, atingidos pelos fracos feixes de luz de uma manhã fria, viu a silhueta de Gene na entrada da caverna fitando o lado externo. Agur estava apagado, talvez de cansaço ou frio que havia passado dormindo perto da entrada, e a morena estava imóvel sentindo o ar gelado e perdida em pensamentos. Quando Ayleen se aproximou, lhe tocando o braço ela virou-se e soltou um longo suspiro.

-Problemas?

-Não. Talvez parte de uma solução, mas você não vai gostar.

Ayleen a olhou nos olhos, hesitante e um pouco apreensiva com a última frase. Gene fez um gesto com a cabeça pedindo que ela lhe acompanhasse para o interior da caverna onde estavam esparramadas suas coisas e onde Agur não as poderia ouvir caso acordasse ou mesmo estivesse fingindo dormir. Elas sentaram-se e a loira esperou pacientemente pelo resto da explicação, mas Gene parecia hesitante em prosseguir com ela, como se tentasse decidir se o plano era plausível ou apenas um devaneio.

-Eu preciso fazer algo – começou – para equilibrar nossas chances. Ainda que a resistência esteja se mostrando bastante competente no que se propôs, eles estão longe de serem um exército de fato. E Agur, bem ou mal, ainda tem um pequeno exército que talvez seja fiel a ele.

-Entendo – ela respondeu pacientemente esperando o resto da explicação.

-Poderíamos seguir cegamente numa missão de resgate a Bae e aos demais cativos, mas a gente não sabe o que vai encontrar lá. E estar às cegas implica em maiores riscos. Não estou disposta a arriscar… sua vida.

-Gene…

-Não, escute. Nós estamos a um dia e meio de Glastonbury. Mas tem algo que eu preciso fazer e irá nos atrasar. Eu preciso fazer um desvio e seguir a sul, para Portland. Mas não tem como irmos todos juntos porque seria mais perigoso e demoraríamos mais. Então iremos até Dorchester e quando chegarmos lá, acredite em mim, eu odeio ter que lhe pedir isso, mas eu preciso que você permaneça na região e mantenha Agur seu prisioneiro até eu voltar. Eu calculo que levarei em torno de pouco mais de meio dia a cavalo até lá e quando eu voltar, seguiremos para Glastonbury como planejado.

-Isso é loucura Gen, o que você precisa fazer em Portland? E onde eu ficaria em Dorchester, com Agur como bagagem? Como eu vou manter esse brutamontes na linha sem você?

-Eu prometo que vou lhe explicar tudo e que acharemos um jeito. Mas por enquanto eu apenas preciso que confie em mim, certo? Eu passei a maior parte da noite acordada pensando em algum outro modo de fazer isso, e acredite, é a opção mais segura.

-Eu confio em você. Mas… – ela parou por um momento e fechou os olhos claramente frustrada. – Tudo bem. Mas você vai me ajudar a encontrar sementes de papoula e mandrágora o suficiente pra dar um sossega leão nele. Eu não quero ter que cravar uma flecha naquele couro mal cheiroso pra fazê-lo se comportar. Prefiro que ele fique dopado e não me cause problemas.

– Parece um bom plano – ela sorriu orgulhosa.

Sedento e privado de comida como Agur estava, não houve desconfiança nenhuma quando Imogene lhe jogou um cantil cheio de chá da mistura de plantas feita por Ayleen. Ainda que o gosto lhe parecesse estranho, ele não estava em posição de protestar, pois sua garganta clamava por algum líquido há bastante tempo. Nas próximas horas seu andar se tornou um pouco mais lento e desajeitado e seus olhos claramente lutavam para permanecer abertos. Sua aparência parecia a de alguém que havia exagerado severamente nas doses de hidromel e talvez isso fosse útil. Quem imaginaria que um bêbado sujo, malcheiroso e maltrapilho era na verdade o autoproclamado rei?

Ao chegarem em Dorchester após horas de caminhada mais lenta, dada à situação de Agur, Imogene optou por adentrarem o bosque para se manterem longe dos olhos da civilização e evitar perguntas desnecessárias. Para a surpresa de ambas, encontraram em meio às árvores o que devia ter sido no passado uma adorável choupana, mas agora estava reduzida à ruinas.

Uma parte do telhado faltava e o que restava dele estava coberto  de ramas de cipós com algumas flores amarelas espalhadas por sua extensão. Algumas pedras da parede, também coberta de vegetação, estavam soltas, mas com o clima frio do período, certamente serviria ao propósito e podia-se até dizer que ostentava certa graciosidade. Muito melhor do que acampar ao ar livre ou mesmo procurar alguma caverna. Protegeria Ayleen do vento frio da noite e serviria de abrigo contra qualquer possível estranho que os encontrassem, afinal, ninguém pensaria em revirar as ruínas de um casebre em tão mal estado.

Ayleen tirou sua bolsa de viagem do cavalo e montou uma pequena cama improvisada no chão empoeirado da velha cabana, enquanto Imogene procurava um pouco de madeira para tentar acender uma lareira que há muito não via qualquer tipo de calor. Agur estava deitado, encostado em uma das paredes de pedras com suas mãos e pés firmemente amarrados. Ele não estava mais amordaçado, mas a única coisa que saía de sua boca era de fato baba e não palavras. Por um momento Ayleen se perguntou se não havia exagerado na concentração das plantas, mas decidiu que isso estava longe de ser uma preocupação. O bem estar de um crápula como aquele realmente não lhe importava. Só esperava que conseguisse mantê-lo sedado por tempo o suficiente até Imogene voltar de sua missão, seja qual ela fosse.

Quando ela voltou do lado externo, com uma braçada de lenha grossa o suficiente para manter a loira aquecida durante uma noite, Ayleen lhe pressionou novamente.

-Então. Qual o plano?

Imogene lhe olhou bastante séria, certa de que não fugiria da inquisição.

-Preciso ir ao porto porque posso encontrar soldados romanos lá. E então, lhes entregarei uma mensagem – disse, tirando de suas vestes o pergaminho com o decreto de Agur.

-Mas essa mensagem… É para o exército de Agur. E pelos deuses, o que você quer com romanos? Não temos problemas o suficiente com isso? – disse apontando para Agur, ainda desacordado.

-Esse pergaminho tem o selo e a assinatura de Agur. Quanto ao resto dele, eu preciso que me ajude a fazer algumas…mudanças. Quanto aos romanos, pretendo fazer deles uma solução temporária. Você vai entender quando reescrevermos esse pergaminho.

Ayleen assentiu, entendendo finalmente e com suas habilidades de escrita, ajudou Imogene a fazer as alterações necessárias.

A morena esperou um par de horas até que o cavalo recuperasse as forças e se alimentasse e partiu, mesmo que a noite já tivesse caído. Quanto antes fosse, antes voltaria para Dorchester pra garantir a segurança de Ayleen e para seguirem com o plano.

Ayleen não podia dizer que havia de fato dormido.  Toda vez que seus olhos começavam a fechar e lhe mandar pra um estado de semiconsciência, ela acordava sobressaltada pensando que Agur poderia estar há poucos centímetros com as mãos prestes a apertar sua garganta. Ela sabia que era um pensamento pouco realista, afinal, diferente dela, ele dormia um sono profundo o suficiente para ser incapaz de escutar uma cavalaria barulhenta chegando. Era quase de manhã, a cor do céu, que ela podia contemplar através do buraco no telhado, podia lhe dizer que o sol logo nasceria. Ainda que não fosse tão boa com mensuração de distâncias como a amiga, ela imaginava que Imogene deveria estar perto de Porland nesse momento. Ela bocejou e esfregou os olhos que pareciam cheios de areia e retirou algumas sementes e um pedaço de queijo da bolsa. Um pouco de nutrição poderia lhe ajudar a manter as forças apesar do cansaço. O frio era bastante incômodo, e o fogo da lareira dava os últimos suspiros, mas ela não achava seguro alimentá-lo agora que estava claro, temerosa que a fumaça pudesse chamar a atenção de alguém. A última coisa que queria nesse momento era encontrar algum estranho. Decidiu pegar o odre e ir atrás de água e se tivesse sorte, quem sabe poderia encontrar algumas frutas.Talvez a caminhada lhe aquecesse um pouco para tirar o desconforto.

Quando voltou de sua caminhada, abriu a porta e foi surpreendida por um Agur cambaleante que tentou avançar sobre ela, segurando um ferro da lareira com as duas mãos amarradas e tentando lhe acertar, mas devido ao seu estado ainda entorpecido e aos pés amarrados, ela facilmente desviou fazendo-o cair sem equilibrio e bater de cara no chão. Ele grunhiu em dor e frustração e agitou as pernas, em vão. Tanto suas mãos quanto seus pés estavam suficientemente presos. Ele rolou, ficando de barriga pra cima novamente e tentou disparar uma enxurrada de ofensas, mas sua fala ainda estava arrastada o suficiente.

-Par… vadias….me drogou… matar…vocês.

-Cale-se Agur, não me obrigue a lhe amordaçar novamente ou lhe acertar uma flecha. Eu não atiro muito bem, e mesmo que tente evitar algum orgão vital, pode ser que eu erre e acabe acertando. – ela disse pulando por cima das pernas do homem e se dirigindo à sua bolsa. Pegou o odre com chá de mandrágora e semente de papoula e jogou em direção dele. – É sua escolha. Tome ou morra de sede.

O homem, com os olhos cheios de raiva, mas ainda mostrando claramente sinais de torpeza, cuspiu em direção a ela, sem forças o suficiente para acertá-la. Ela sabia no entanto que conforme as horas passassem, caso ele não tomasse mais uma dose, ficaria mais difícil controlá-lo. Ela só podia rezar para que Imogene voltasse logo.