Capítulo 14
por Officer KirammanDevon era inconfundível para Imogene. Sabia que se aproximavam do condado quando sentiu o cheiro da resina dos plátanos e viu de longe inúmeras pessoas nos campos de trigo e de batatas. Ela havia crescido naquela terra e apesar de todas as adversidades que enfrentava nesse momento, retornar a Devon era como um acalento.
Ela tinha plena noção de que o local não era o mesmo, afinal, agora haviasoldados de Agur patrulhando as ruas e os tributos eram pagos à Coroa atual, mas ainda assim, era seu lar e isso a fazia lembrar de uma das razões pela qual estava lutando.
Conforme se aproximavam e passavam pelos campos, começavam a entrar numa área mais povoada, com diversas casinhas rústicas, vielas e becos compondo uma paisagem um pouco mais agitada. A vida, ali, apesar de tudo, continuava. O peixeiro negociava um pescado fresco, os apotecários vendiam suas poções e ervas. Havia um cheiro fétido de couro sendo curtido que era trazido pelo vento, mas logo ele dava lugar ao cheiro de algo delicioso sendo preparado em alguma das Tavernas próximas, sendo suficiente para Imogene lembrar que fazia mais de um dia que não comia ou bebia.
-Não podemos ir ao palácio – disse Rana desmontando do seu cavalo e amarrando-o numa estaca em frente de uma taverna – tem homens de Agur lá. Me acompanhem.
O resto do grupo fez o mesmo e os quatro adentraram a Taverna. Era um estabelecimento não muito grande, mas maior do que as outras construções adjacentes. As paredes de pedras cinzentas eram iluminadas com candeeiros posicionados estrategicamente e haviam várias mesas com bancos de madeira, algumas poucas delas ocupadas. Perto do balcão, alguns barris velhos serviam de assento para quem quisesse ficar mais perto das bebidas ou ouvir as notícias que o Taverneiro tivesse para contar. Imogene sorriu levemente. Já havia estado ali antes.
Enquanto entrava, foram surpreendidas por um senhor barbado, barrigudo com uma bandana amarrada na cabeça que segurava um indivíduo bêbado pelas vestes e o arremessava porta afora. Ele entrou novamente, batendo uma mão na outra e virou-se para eles.
-Em que posso ajudá-los? Bebida, refeição, hospedagem ou conselhos?
-Alderick! – exclamou Imogene.
Ele apertou os olhos fitando a garota que havia visto inúmeras vezes pelas vielas do condado.
-Imogene? Pelas barbas de Merlin, você está aqui?!
-Alderick, precisamos conversar – disse Rana com afobação – Eu tenho uma mensagem do grupo de Paddrick. A fortaleza de Drachen deve estar destruída nesse momento, mas houve mais capturas, eu acho que Devon não ficará livre do tráfico por muito tempo. Quando Drachen voltar da campanha contra Clauvegris ele certamente virá para cá e precisamos montar um plano de contingência.
-Se acalme minha jovem. Antes de mais nada vocês precisam de um bom prato de ensopado, uma caneca de vinho e, se me permitem pontuar – disse torcendo o nariz – um banho e descanso. Depois conversaremos direito e vemos o que é possível fazer.
Alderick os acomodou em uma mesa sobre a qual colocou uma pesada bandeja com um pernil de javali enquanto sua esposa, uma senhora de avental, rechonchuda como ele, de cabelos brancos presos num coque firme e sorriso amável, distribuía quatro tigelas de um ensopado aromático na mesa. Alderick voltou com um grande pedaço de pão, um odre de vinho e um jarro de água.
– Comam e bebam por conta da casa. Os deuses sabem que vocês estão precisando.
Imogene observava Ayleen devorando a tigela de ensopado e pedaços de javali de maneira voraz. Por um momento riu, pensando no que sua mãe falaria sobre os modos de uma dama, mas estava feliz em ver a loira se alimentando finalmente.
-Me desculpe Imogene – disse Rana tomando um longo gole de vinho – Eu não havia lhe contado tudo sobre a resistência porque pretendia fazê-lo no momento certo.
-Você me contou o necessário naquele momento. Mas eu não fazia ideia de que as coisas iam além dos muros da Fortaleza de Drachen.
-Elas vão especialmente além. – Enoch levantou os olhos do prato que devorava- Temos gente em todos os condados que foram, ou serão vítimas de Agur. Cardinham, meu lar, foi destroçado por esse porco imundo. Meus irmãos foram vendidos como escravos para os romanos.
-Escravos? Mas Agur odeia os romanos – indagou Imogene confusa.
Enoch riu com certo desprezo.
-Típico da “realeza”. Dentro dos muros do palácio e completamente alheia ao que acontece ao seu redor. Drachen nunca teve intenção de impedir os Romanos. Ele sabe que o que resta do Império está decadente, e quer se aproveitar disso. O Império se tornou grande demais para se sustentar e está rachando, sem força de trabalho e cheio de conflitos. O Imperador Augustulus e seus homens estão desesperados por força de trabalho e dispostos a pagar uma boa quantidade de ouro por escravos e escravas. Agur sabe disso. Suas campanhas de conquistas dos condados bretões não são para fortalecer seu próprio exército fazendo o povo jurar lealdade a ele, são para capturar homens e mulheres para vendê-los como escravos para os romanos da Gália. Nesse exato momento é o que ele deve estar fazendo em Clauvegris. Quando a Resistência atacou a Fortaleza dele na ponta da Cornualha foi para enfraquecer os recursos e desestabilizar suas forças.
-Vocês mataram gente inocente – disse Imogene entre os dentes.
-Nós matamos soldados fiéis ao tirano – rosnou Enoch – Nossa intenção não era ferir nenhum dos servos internos do palácio. Inclusive ajudamos a evacuar as cozinheiras, os serviçais e principalmente os idosos e crianças. Se alguém morreu foi porque foi pego em fogo cruzado entre os guardas e nós.
-Você tentou me matar porque achou que eu estava do lado de Agur – disse Ayleen, levantando os olhos do seu prato pela primeira vez. Não era uma pergunta, era apenas uma constatação.
-A intenção inicial era apenas te raptar e ter uma moeda de troca para libertar os escravos que ainda não foram vendidos. Mas sim, eu pensei em lhe matar quando as encontrei na estrada. Eu odeio tudo que tenha a ver com esse tirano. – disse Enoch batendo com seu cálice de vinho na mesa num sinal de raiva.
-Sua moeda de troca nunca funcionaria. Eu não represento nada além de um acordo de para Agur. Eu mal o conheço. – explicou ela, estoica olhando para o nada – Ele partiu para Clauvegris dois dias após o nosso casamento e nunca mais o vi. Certamente ficaria aliviado em se livrar de mim e não precisar mais honrar nenhum acordo. Iria poder devastar Glastonbury à vontade e provavelmente se sentiria inteiramente dono de Devon.
Imogene olhava furiosa para um ponto fixo da mesa. Se sentia tola por não ter percebido a estratégia de Agur antes e cheia de ira por saber o que o tirano estava fazendo com os condados bretões. “Fazia todo sentido”, ponderou ela. Aquela não era a terra dele. Não era o povo dele. Não era seu sangue. Ele era apenas um estrangeiro, com sede de ouro e sangue. Não se tratava apenas de seu ego agora, esse maldito rei autoproclamado precisava ser impedido.
-Por que você nunca me falou sobre isso, Rana? – perguntou Imogene. Seu tom não era acusatório, era apenas triste. Uma tristeza que lamentava o que não havia antevisto, lamentava não ter agido antes.
-Essas informações correm por uma rede de contatos muito específica, Imogene. Alguns servos do palácio de Agur sabiam, especialmente os cozinheiros e cozinheiras.
-Sempre se respeita os cozinheiros – exclamou Alderich orgulhoso, puxando uma cadeira para perto do grupo e sentando-se.
-Mas a comunicação é complexa – continuou Rana – as mensagens são passadas de modo cauteloso, porque confiança é uma peça-chave. Você, apesar de tudo, era “parte da corte”. Quando te retiraram da ala dos serviçais e te colocaram em aposentos ao sul do castelo ficou difícil manter o contato necessário. Eu te informei o que era possível, mas não podia falar sobre a quão extensa era a rede de resistência. Eu soube do ataque um dia antes do retorno de vocês de Glastonbury. Eu a teria avisado, Gene, mas não consegui fazê-lo a tempo. Eu sinto muito.
A esposa de Alderick os instalou em alguns aposentos bastante rudimentares, mas confortáveis. Enoch continuou no salão da taverna conversando com Alderick noite adentro. Rana e Imogene trocaram algumas palavras antes de se recolherem para descansar e a antiga serviçal entregou um volume embrulhado num manto para a morena. Ayleen havia adormecido em um catre simples, ou pelo menos era isso que ela queria que Gene acreditasse. Ela não queria conversar essa noite. Precisava compreender a mistura de sentimentos que agora poderiam lhe turvar a razão.