“Gabrielle, como você faz pra lidar com o derramamento de sangue?”… E ela me disse “Sua mãe me disse uma vez que ou você faz o que tem que fazer, ou acaba morta, que não sobra tempo pra pensar muito sobre isso. No começo pra mim isso era bem difícil Eve, porque eu nunca tinha derramado sangue. Já te contei sobre isso?”
“Não” – Respondi.

E ela, puxando as Sai para ter algo com que entreter as mãos e para ficar mais confortável, sentou no chão. Nós ainda estávamos no templo, pedimos autorização pra passar a noite e outras pessoas ficavam por ali também. Estava relativamente bem iluminado, tinha até uns ferreiros, armeiros e gente que vendia também ervas e ajudava curandeiros. “Teve uma vez Eve, não lembro se já contei isso pra alguém, mas foi duro lidar com estes fantasmas… teve uma vez em que a turrona da sua mãe nos arrastou por todo o caminho até a Bretanha. Ela disse que queria ajudar Boadiccea, mas ela só tomou essa decisão depois de saber que Júlio César estava lá. E eu preciso contar isso pra você. César, Júlio César, era um militar com sede de poder. Naquele tempo Roma era governada por três pessoas. Ele, Pompeu e Crassos. Um querendo o pescoço do outro.”

“Ouvi algo” – disse eu remexendo a terra. E ela prosseguiu movimentando as sai sentada, como se estivesse começando a deixar transparecer algo há muito tempo enterrado.

“Bem”… ela então me olhou profundamente com aqueles olhos verdes límpidos e eu senti muito carinho por quem ela era, apesar da nossa idade próxima, Gabrielle era minha segunda mãe, eu sabia disso. “A Bretanha tomou minha inocência… de vida e de sangue. Eu deixei de ser uma jovem menina lá e me tornei mãe”

E ali eu não sabia o que dizer, eu nunca ouvi nada sobre Gabrielle ter um filho ou filha… “Na Bretanha sua mãe foi atrás de César e eu fiquei pra trás, nós chegamos lá com um desgraçado, que eu achava que era digno de confiança, eu era muito inocente naquela época.” – Eu pensei em rir porque não conseguia pensar na estrategista Gabrielle que liderou as amazonas contra o filho de Ártemis, a grande rainha Gabrielle que lutou pela minha vida, como uma jovem inocente. Mas era real. Gabrielle em algum momento foi inocente… “Quantos verões tinham se passado?” – Perguntei.

“Acho que 19 verões, eu sei que muitas meninas já são mães de várias crianças com estes verões. Entendo isso. Mas sabe, Eve, eu nunca pensei que poderia passar por aquilo. Eu fui levada até a Bretanha pra perder a minha pureza de alma. Para que Dahak, um deus sangrento e malévolo, que desejava ser o único Deus, me tomasse à força como mãe de seu rebento.”

“Nunca ouvi falar de Dahak”

“Foi há muitos anos Eve. Muitos anos. Se Esperança estivesse viva, ela teria mais verões do que você hoje. Pelo menos uns dois verões a mais.”

Eu não sabia o que dizer. Mas perguntei “como perdeu sua pureza de sangue ali? Digo… não parece que no meio de tudo … Desculpe…” E ela baixou os olhos, guardou as Sai nas botas novamente e abraçou os joelhos. “As coisas são como são. Era um plano. Me fizeram pensar que eu tinha que defender o jovem que tinha viajado conosco e que estava no templo, mas era tudo parte de um plano dele. Eu matei ela… a sacerdotisa que seria oferecida como vaso de um deus… cruel…” e ela ficou em silêncio por um tempo. Baixando a voz disse “se eu soubesse… não sei… acho que teria feito tudo do mesmo jeito… as coisas são como são… Mas logo que matei ela. O sangue caiu no altar e Dahak me tomou. Eu era o sacrifício ali. E eu não sabia. Ele me tomou e colocou em mim sua semente.”

“Eu sinto muito Gabrielle.” – E eu realmente sentia. Senti como se fosse dentro de mim, como se fosse eu, e queria chorar por essa história… e perguntei “O que aconteceu com…” ela me cortou “Esperança morreu. Esperança era cruel. Ela morreu e teve que morrer. E essa história eu ainda não estou pronta pra falar. O que importa Eve, é que depois que você mata, não tem mais volta. Mas você aprende ainda mais a respeitar a vida. Você sabe que é assim, não é?”

“S-Sim.”

“Eu quero que entenda” – E aqui ela falou com a autoridade de uma rainha, havia poder em seu olhar – “a morte e a vida são partes da mesma coisa. Você sabe disso porque um dia, no passado, antes de você ser Eve, você foi Callisto. A sua vida continuou. Era pra você ter não apenas uma mãe, mas duas mães. Eu fiz de tudo por você. Eu e Xena tentamos forjar nossa morte por você, pra te salvar. Nem sempre o caminho do amor, de Eli, é um caminho que te isenta do sofrimento ou de ter que matar pessoas. A vida é assim Eve. Feliz ou infelizmente, a vida é assim. Você precisa fazer o que tem que fazer em alguns momentos e depois enterrar os corpos com uma prece, se for o caso. Eu quero que saiba, que não precisa carregar o mesmo fardo que eu, pode conversar comigo. Eu sei que matar – pra você – não é algo novo. Mas as escolhas de amar e lutar às vezes podem te fazer sentir-se culpada. Não sinta”.

E com isso ela tocou no meu joelho e eu, que estava emocionada porque me sentia acolhida e amada ali, fiquei quieta. E ficamos as duas ali nessa cumplicidade que é ser mãe e filha. Era isso, Xena havia ido embora e eu não sabia exatamente o que estávamos fazendo aqui no Japão, mas eu não havia perdido minha outra mãe. Olhei pra frente e percebi que a vida continuava acontecendo ao meu redor. O tempo todo. Nascer e morrer eram parte do mesmo ciclo do amor. “Deus do amor, me perdoe por levantar meus punhos uma vez mais, mas não vou deixar que morram aqueles que eu puder defender. Aprendi a lutar e vou usar essa ferramenta pela vida, não pela morte ignóbil.”