O aspecto de Gabrielle mudou com a última frase de Xena. Ela se empertigou, passou um pano no rosto e falou:
_ Descobrir mais sobre… seu sacrifício? … como assim?

_ Agora que tudo passou, precisamos refletir a respeito disso com a cabeça mais fria, precisamos rever nossos passos, pois parte do que fizemos… eu não segui minhas próprias regras, eu fui passional e penso que fiz isso talvez por culpa. Às vezes quando os sentimentos nublam nossos pensamentos, nós ficamos confusos…

_ Claramente fez, Xena, por culpa, e o fantasma do seu passado. Eu pensei muito sobre tudo isso nos últimos dias. E você ouviu todos os meus pensamentos. Você sabe o que eu penso daquela Akemi. Ela nos levou ao precipício, deu uma tatuagem para me proteger e te deixou para morrer e antes de você partir, ela simplesmente disse “AH, Xena, você precisa ficar morta”… Ela te traiu da primeira vez e te traiu novamente Xena. Não consegue ver isso?

_ Não estava pensando dessa forma até ouvir seus últimos pensamentos e sentir a sua dor ontem…

_ Sinto muito…

_ Não sinta. Isso pode mudar tudo.

_ Pode…

Gabrielle sentia dores nos olhos, nos músculos, sentia-se quase doente de tanto chorar, se alimentar mal, e tentar processar o improcessável. Mas Xena vir falar com ela sobre isso e abrir uma possibilidade de pensar sobre o caso, foi absolutamente imprescindível para ela sentir um novo vigor.

_ Xena, o que te fez não duvidar de Akemi?

_ … o meu passado… no passado … Akemi…

_ Você a amava não é?

_ Acho que sim..

Gabrielle mudou um pouco sua expressão e ficou visivelmente contrariada. E Xena continuou tentando evitar uma crise de ciúme. Sim, Xena estava entre o reino dos vivos e dos mortos e Gabrielle com ciúme. Ela estava ficando vermelha e com o olhar fixo.

_ Agora não é hora disso. Seu passado é seu passado, mas permitir que isso ainda a afetasse… não passou pela sua cabeça que ela poderia estar tentando te usar como fez anteriormente? Ela não te usou para matar o pai dela? Não te usou para que você a matasse porque ela não teve coragem de fazer isso?

_ Sim, ela me traiu. E foi isso que levou à morte de todas aquelas pessoas, pois enlouqueci de dor e eu não estava muito bem…

_ E o que te garante que ela não fez isso novamente?

Xena se empertigou. Gabrielle havia tocado num ponto sensível, duas vezes. Estava afiada. Também, pudera, semanas em sofrimento para que Xena admitisse que sentiu algo pela outra e isso a levou a morte.

_ Olha Gabrielle… – Disse Xena passando a mão nos cabelos e tentando fazer uma cara de que não tinha feito nada daquilo por maldade.

_ Não Xena, não começa.

_ Desculpe, meu corpo espectral sente muito.

Gabrielle começou a rir e em sequência disse:

_ Xena, o que Akemi ganharia com a sua morte?

_ Não sei Gabrielle, mas estou pensando nisso desde que começamos a conversar. Precisamos investigar todas as hipóteses.

_ Não faz o menor sentido…

_ Mas eu ma..

_ Não ouse! Você não matou ninguém, foi um ACIDENTE a morte de todas aquelas pessoas.

*Toc Toc*

_ Pode entrar.

_ Está tudo bem, senhora Gabrielle? – Disse um homem alto, magro, com a pele queimada de sol, cabelos lisos, olhos castanhos profundos, nariz aquilino e barba rala por fazer, talvez uns 19 anos, 20…

_ Tá sim, Cirilo.

_ Ah… é… que a senhora tá falando sozinha outra vez…

_ Cirilo, estou pensando alto. Resolvendo minhas questões internas, tem algo contra?

_ Na.. não..

_ Cirilo, tem algo para comer nesse navio? Laranjas?

_ Ah.. tem.. e peixe também.

_ Se puder me fazer a maior gentileza que um cavalheiro como você poderia fazer, estou com muita fome, pensar dá fome.

_ Claro, claro… você é uma heroína. Merece tudo.

Xena do outro lado ria dessa Gabrielle que estava brava e ao mesmo tempo esperançosa e que não sabia lidar com essa atenção estranha que geralmente era direcionada para Xena. Mas, também parecia ter melhorado e muito seu espírito e humor.

_ Cala a boca Xena.

O marinheiro a olhou curioso:

_ Desculpe?

_ Oi?

_ Nada não senhora, achei que tivesse falado comigo.

_ Não falei nada. – Ela piscou tentando mudar o foco.

Ele, levemente incrédulo achando que por ficar ao lado dela também estivesse começando a ficar um pouco maluco, saiu da cabine. Gabrielle se virou contrariada e falou entre dentes:

_ XENA.

_ HAHAHAHAHAHAHA Gabrielle…

_ Eu só não te derrubo, porque você está visivelmente transparente e atravessável!

Xena então passou as mãos nos cabelos de Gabrielle.

_ Você foi a melhor coisa que já me aconteceu.

_ Não me desconcentre. Precisamos pensar se você precisa ficar aí ou não. Aliás, você queria ficar ? Digo… em algum momento chegou a cogitar não aceitar a proposta de Akemi?
_ Até pensei, mas no momento não tínhamos tanto tempo para cogitar se eu ficaria ou não morta, o plano dela foi meticulosamente arranjado para me avisar do meu final bem depois… – disse isso meneando a cabeça.

_ Você consegue conversar com outras almas penadas? Digo… seres etéreos assim como você? – ela colocou a mão na boca tentando não rir da situação. E Xena fingiu que não era com ela respondendo como se Gabrielle não estivesse tentando brincar com ela.

_ Acho que consigo, afinal converso com você que nem é espírito… o que está planejando?

_ E se fosse atrás de almas que conheceram Akemi? Não estamos tão longe assim do território e você deve ser mais rápida nessa forma do que eu aqui nesse barco…

_ Conheci muitas pessoas também, isso pode ser um pouco peri..

_ Xena, não tem como te matarem novamente, tem?

_ Não sei, não vou arriscar me afastar de você. Também não sei se chego lá novamente. E provavelmente isso vai implicar em não nos vermos por alguns dias, mas eu volto pra você, ok?

_ Vou aproveitar pra voltar a me exercitar, se acontecer algo preciso reagir.

Xena abraçou Gabrielle do jeito que conseguiu e lhe deu um beijo, Gabrielle sentiu isso como se pequenas partículas de ar gelado a tocassem e isso lhe arrepiou a nuca.

_ Volto logo.

_ Se cuide, não terei como salvar seu couro. – Disse com um meio sorriso e Xena sorriu de volta.

_ Vou me cuidar.

—-

Xena olhou para Gabrielle pela última vez antes de se virar para a proa do navio. O vento soprava através dela, era a constante de sua nova realidade. Ela fechou os olhos, concentrando-se na Terra do Sol Nascente. Uma onda de incerteza a inundou, um sentimento que ela raramente conhecia em vida. “Por que estou hesitando?”, pensou ela.

As primeiras tentativas de se mover como um espírito foram desastrosas. Ela tentou caminhar, mas seus pés não tocavam o convés. Tentou correr, mas se viu flutuando sem rumo, como uma folha ao vento. “Isso não é como antes”, murmurou ela para si mesma, frustrada com sua falta de controle.

Com determinação renovada, Xena começou a experimentar. Ela se concentrou, tentando se mover na direção desejada. Lentamente, ela começou a entender – era menos sobre movimento físico e mais sobre vontade e pensamento. “É como nadar em um oceano sem água”, pensou ela.

Ela voltou para onde Gabrielle estava. “Não é tão fácil quanto eu esperava”, admitiu Xena. Gabrielle olhou para ela, seus olhos cheios de preocupação e amor. “Você vai descobrir, Xena. Você sempre faz.” As palavras de Gabrielle deram a Xena a força que ela precisava. Ela sorriu, um sorriso que carregava tanto agradecimento quanto determinação.

Nos dias seguintes, a rotina de Xena foi definida por uma série de encontros inesperados e instrutivos. Ela se encontrou vagando sem rumo, flutuando entre realidades, quando uma alma passante chamou sua atenção.

“Você parece perdida, moça,” disse uma alma que parecia um velho pescador, sua voz tão áspera quanto sua aparência.

“Eu suponho que estou,” respondeu Xena, um pouco surpresa com a abordagem.

“Primeira vez como um espírito?” ele perguntou, com um sorriso astuto.

“Não exatamente, mas dessa vez não é igual as outras” Xena respondeu.

“Para mim, parece uma novata. Veja, é tudo uma questão de intenção. Você tem que pensar para onde quer ir, não apenas andar. Experimente.”

Xena fechou os olhos, concentrando-se. Quando os abriu, ela havia se movido alguns metros. “Isso é incrível!”

“Leva prática, mas você pegará o jeito. Boa sorte!” E com isso, o velho pescador desapareceu na brisa.

Em outro momento, enquanto tentava passar por uma parede de madeira, uma alma jovem e alegre apareceu ao seu lado. “Ei, você está fazendo isso errado,” disse ela com uma risada.

“E como se faz ‘certo’, então?” Xena perguntou, divertida apesar de si mesma.

“Relaxe. Não tente forçar. É como mergulhar na água, você só precisa… fluir,” a jovem explicou, demonstrando ao passar facilmente pela parede.

Xena tentou novamente, dessa vez com uma abordagem mais suave, e para sua surpresa, passou pela parede sem esforço. “Obrigada,” ela disse, grata pela ajuda.

“De nada! Vejo você por aí!” A alma jovem acenou antes de se dispersar no ar.

Cada alma que Xena encontrava oferecia um fragmento de sabedoria ou um novo truque. Um músico errante lhe ensinou como ouvir os sussurros do vento, e isso seria bastante útil, uma antiga guerreira compartilhou com ela a arte de se mover com propósito, e uma criança lhe mostrou como encontrar alegria nas pequenas coisas, mesmo na eternidade.

Através desses encontros, Xena começou a ver seu estado espectral não como uma limitação, mas como uma nova forma de liberdade. Ela aprendeu a se mover com confiança, a interagir com o mundo de maneiras que nunca imaginou possíveis. E com cada nova lição, ela sentia que estava se aproximando do seu objetivo final: desvendar os mistérios do Japão e, talvez, encontrar a chave para as verdadeiras intenções de Akemi.

Finalmente, ela sentiu que estava pronta. Ela se concentrou no Japão, nas lembranças de sua última batalha lá. Mas dessa vez, a memória veio acompanhada de um sussurro, uma voz que ela não reconheceu. “Cuidado com as sombras do passado, Xena. Elas nem sempre são o que parecem.” Intrigada e alerta, Xena sabia que essa seria a chave para o próximo capítulo de sua jornada

Xena permaneceu na ponta de uma árvore, mas nem sabia o país em que estava ao certo, voou por vários países nesses dias em vez de conseguir retornar ao Japão, tentando, os olhos fechados, a brisa passando através dela. A voz desconhecida que sussurrara o aviso ainda ecoava em sua mente. “Cuidado com as sombras do passado.” O que isso significava? Ela conhecia as sombras do seu passado muito bem, ou pelo menos pensava conhecer.

Ela se concentrou novamente no Japão, desta vez mais cautelosa, preparada para o que pudesse encontrar. As memórias da última batalha eram vívidas, carregadas de emoção e conflito. Ela se permitiu ser levada por elas, sentindo a conexão espiritual a puxar em direção ao Oriente.

Quando abriu os olhos, encontrou-se sobrevoando um Japão que parecia diferente, mas ainda familiar. As cores eram mais vivas, os sons mais claros, e tudo parecia estar imbuído de uma energia etérea. Ela voou sobre as antigas aldeias e campos, sobre as montanhas cobertas de névoa, em busca de algo, embora não soubesse exatamente o quê.

Sua busca a levou a um templo antigo, escondido entre as montanhas. O lugar exalava uma energia mística, e ela podia sentir a presença de muitas almas. Uma delas se destacava, envolta em uma aura de sabedoria e paz. Era um velho monge, sentado em meditação.

“Você busca respostas,” disse o monge, sem abrir os olhos.

“Sim,” respondeu Xena. “Sobre o passado. Sobre Akemi.”

O monge abriu os olhos, revelando íris profundamente castanhas. “O passado é um rio complicado. As correntes podem ser traiçoeiras.”

“Não tenho muito tempo para enigmas,” insistiu Xena. “Preciso saber se… se há algo mais que eu deveria ter visto.”

“Para ver claramente, você deve entender todas as correntes desse rio. Não apenas as suas próprias.” O monge se levantou. “Venha comigo.”

Ele a guiou para dentro do templo, onde pinturas antigas adornavam as paredes. Cada uma contava uma história, e Xena sentiu que cada história era um pedaço do quebra-cabeça que ela precisava resolver.

O monge parou diante de uma pintura em particular. “Aqui,” ele disse. “Comece aqui.”

A pintura mostrava uma figura guerreira, não muito diferente de Xena, lutando contra um dragão. “O que isso significa?” perguntou ela.

“É o começo de uma jornada,” respondeu o monge. “Uma jornada que você deve empreender para entender o verdadeiro papel de Akemi em sua vida.”

Xena olhou para a pintura, sentindo que estava à beira de uma nova revelação. “E como eu começo essa jornada?”

“Escutando as histórias que estas paredes têm para contar. E entendendo que cada história tem muitas faces.”

Xena assentiu, bastante contrariada porque estava sem Gabrielle e quem era realmente boa nessas palhaçadas era Gabrielle… preparando-se para mergulhar nas histórias do templo, sabendo que cada uma delas a levaria um passo mais perto da verdade sobre Akemi, e talvez, sobre si mesma, ela começou a analisar o quadro.

 

Nota