Capítulo 9
por Officer KirammanPresente
Ayleen estava debruçada sobre alguns velhos livros na mesa em seu quarto. O sol brilhava lá fora, tornando o dia propício para longos passeios ou mesmo para sentar-se ao jardim do palácio, mas ela não tinha interesse nisso. Seus olhos atentos percorriam as linhas de escrituras há muito feitas por sua mãe.
Não era típico dos druidas escreverem sobre sua cultura. Assim como boa parte dos celtas, eles eram contadores de histórias, não escritores. Poesias eram feitas para serem declamadas, não postas em pergaminhos, e o seu conhecimento era passado de geração em geração, não colocado em livros para mofar.
Mas escrever a respeito foi a saída que sua mãe havia achado. Gwen era filha de uma grande sacerdotisa da comunidade druida. Todos esperavam que ela seguisse os passos da mãe, o que era o “normal” de se ocorrer, contudo o destino mostrou que tinha outros planos.
Passado
Em sua juventude, Ennid Anderith e Deidre Callaghan, ainda no frescor da idade e sem preocupações com palácios e feudos de terra – o que ainda dizia respeito aos seus pais – costumavam cavalgar juntos, pelo simples prazer de desbravar campos, descobrir novas cavernas, rios ou simplesmente caçar javalis ou outros animais. Como eram jovens de famílias consideravelmente ricas, os frutos da caça eram sempre distribuídos para aqueles mais pobres que encontravam pelo seu caminho, ou entregues às tribos dos Icenos que habitavam as margens dos pântanos, fazendo com que conquistassem a simpatia e gratidão do povo em geral.
Embora de famílias diferentes, os jovens consideravam-se quase como irmãos, e enquanto a vida adulta não os chamava para responsabilidades maiores, celebravam o laço que compartilhavam buscando aventuras juntos e fazendo um juramento mútuo de que quando finalmente assumissem o comando dos respectivos condados, governariam como homens justos e não como tiranos gananciosos sobre os quais ouviam tantas histórias.
Foi numa dessas aventuras que o destino desenrolou seus fios e fez com que Ennid se distanciasse do colega de caça e entrasse cavalgando num pequeno bosque atrás de um javali. Ele desceu do cavalo e caminhou silenciosamente com uma lança, certo de que em poucos minutos estaria celebrando mais uma conquista, mas não foi exatamente o que aconteceu.
Ennid caminhou até algumas pedras, abaixo das quais um leve declive revelava lá embaixo um córrego. Subindo nas pedras e equilibrando-se, avistou lá embaixo o animal bebendo água e preparou a lança, prendendo a respiração. Quando estava pronto para dar um salto e soltar a lança em direção ao porco, sentiu sua bota se prendendo numa fenda da rocha e assim caiu de mau jeito, batendo a cabeça e rolando ladeira abaixo, desacordado.
Deidre Callaghan já havia passado mais de uma hora procurando o amigo, mas o modo como Ennid havia caído fazia com que a vegetação alta de perto do rio lhe escondesse. Em vez de ser encontrado pelo amigo, foi uma jovem de vestes brancas que descia ao rio com alguns odres para encher, que encontrou o jovem desacordado. Quando Ennid acordou, encontrou-se encostado com a cabeça apoiada em um tronco de árvore. Sua testa ardia devido à batida e sentiu algo molhado e gelado nela, o qual tentou tirar.
-Tire a mão – ouviu uma voz irritada lhe ordenar.
Olhou para o lado, incerto e avistou a jovem loira que não devia ter mais de 17 anos lhe fitando.
-Isso é um emplastro de ervas, vai ajudar no ferimento.
-Quem é você? Como você me achou?
-Eu devia ter voltado para a aldeia há horas! Você desviou todo o meu caminho! Meu nome é Gwenyvier, a propósito.
-Eu sou Ennid – disse fazendo uma careta de dor ao se levantar – Obrigado por ter me ajudado…e me desculpe por tirar você do seu caminho
Mas mal os dois jovens sabiam naquele momento que o “caminho” que o destino lhes apresentava era um bem diferente. Ennid perdeu as contas de quantas vezes voltou a aquele córrego só para ver Gwen novamente, e como não podia ser diferente, ambos se apaixonaram.
Alguns anos depois, Gwen anunciou à família que deixaria a aldeia druida para se casar com Lord Ennid Anderith, e embora sua mãe tivesse outros planos, deixou que a filha fosse livre para o que quisesse. Ennid sucedeu seu pai e se tornou Senhor de Glastonbury, comandando o povo do condado, mas mostrando um carinho especial aos druidas devido às origens da esposa. Gwen embora não convivesse mais diariamente com os sacerdotes, filósofos e curandeiros, os visitavam frequentemente e passou então a fazer anotações sobre tudo que podia aprender deles, já que a convivência constante não era mais uma opção. Essas anotações, ela passou para sua filha e agora, Ayleen as revirava em busca de respostas que não encontrava.
Presente
Fechou o livro frustrada e soltando um suspiro pesado, e algumas horas depois, no salão comunal anunciou aos conselheiros presentes.
-Preciso fazer uma breve viagem. Preciso que mandem preparar uma carruagem pequena para mim. Não é preciso um comboio, não quero companhia em excesso, apenas o necessário para me deslocar até Glastonbury.
Lord Bae, que na ausência de Agur havia ficado como representante dos negócios do rei, pigarreou levemente.
-Isso é completamente inadequado, Vossa Majestade. Na ausência de nosso Rei, não é adequado que nossa Rainha saia por aí sem o conhecimento dele.
-Então talvez o senhor queira enviar uma ave com uma mensagem avisando a ele, porque adequado ou não, isso não me impedirá de ir.
-Com todo respeito vossa majestade, nosso Rei ordenou que eu regesse os assuntos do reino em sua ausência e eu não posso permitir que vossa majestade saia assim, afinal…
-Então talvez devesse começar a regê-los agora, atendendo a aquela multidão de pessoas lá fora, desesperadas por um emprego ou um pedaço de pão, enquanto os guardas comandados PELO SENHOR, as tratam a pontapés e exploram pobres taberneiros sem pagar pela comida que consomem.
-Isso não é assunto que uma mulher possa compreender, vossa majestade e …
-Com licença? Lord Bae, há algumas semanas o senhor teve a ousadia de dizer que eu devia aprender a tratar meus servos do modo correto. Pois bem, estou começando agora. Responsável ou não pelos assuntos do reino na ausência de Drachen, o senhor É apenas um servo do reino. E não me parece correto que um “mero empregado”, queira dar ordens à sua rainha. Deste modo, goste o senhor ou não, eu vou viajar até a Glastonbury, e estou ordenando que mande preparar uma carruagem para mim. Então no lugar de gastar seu tempo tentando me dissuadir dessa ideia, por que o senhor não começa a cumprir suas ordens agora? Quero tudo pronto até o amanhecer. – Terminando ela levantou-se de sua cadeira e saiu, deixando um bastante irritado Lord Bae para trás para lidar com os olhares que o resto do conselho lhe lançava.
Ayleen não tinha por princípios fazer uso do seu poder. Não gostava de se utilizar de sua hierarquia para conseguir coisas, porque não se considerava “esse tipo de pessoa”. Mas estava farta da postura arrogante de Lord Bae, que se exibia orgulhoso como mão direita do rei, após praticamente ter apunhalado Imogene pelas costas para conseguir o posto. Não aceitaria que um crápula daquele interferisse em sua vida, e se para isso, tivesse que fazê-lo ouvir umas boas verdades em frente a todo o resto dos homens do palácio, que assim fosse.
Visitar Glastonbury era o que lhe importava agora, e sabia que precisava ir, custasse o que custar. Uma ideia fixa havia se instalado em sua mente, e quando isso acontecia, era muito difícil que conseguisse se concentrar em qualquer outra coisa. Ainda sentindo o rosto queimar pelo pequeno confronto com Lord Bae, caminhou pelo palácio por alguns minutos, chegando até uma das alas mais distantes. Era onde ficavam os aposentos de alguns conselheiros, apotecários, do próprio Lord Bae e de Imogene. De início Agur tinha ordenado que instalassem Imogene na ala de serviçais num quarto pequeno e pouco confortável. Ayleen ficou furiosa com a decisão não sossegou até que conseguisse um lugar melhor para a amiga. É verdade que se estivesse em suas mãos, colocaria todos os serviçais em aposentos melhores, mas não havia nada que pudesse fazer e no momento, a preocupação era tirar de lá a amiga cujo corpo debilitado sofreria ainda mais num lugar desconfortável e frio. Uma batalha por vez, tentava se lembrar constantemente.
Caminhou até a porta de Gene, e após bater levemente, adentrou o quarto. Era menor do que o seu, mas ainda assim havia uma cama macia, uma pequena lareira e um conforto rudimentar. Imogene estava deitada, mas quando ouviu Ayleen entrando levantou-se com um pouco de dificuldade, sentando-se na cama e sorrindo ao ver a amiga. Ayleen sentou ao seu lado e lhe abraçou. A morena esticou-se, apoiando as costas no colo de Ayleen que lhe envolveu nos braços e ficaram assim em silêncio durante vários minutos.
-Partirei para Glastonbury amanhã pela manhã – afirmou a loira quebrando o silêncio – E quero que venha comigo, Gene…
A morena resmungou algo que soava como uma interrogação malformada por sua voz debilitada.
-Você sabe que os druidas têm grandes curandeiros, não sabe? Eles dominam as ervas com mais habilidade do que qualquer apotecário desse palácio, e eles têm os favores dos deuses. Talvez eles tenham uma resposta para restaurar a sua força… Fazer com que você volte a ser como era.
Ayleen ouviu um suspiro pesado da morena.
-Você virá comigo, não virá? – Imogene balançou a cabeça afirmando que sim. – Se isso der certo, Gene, pelos deuses, nada me faria mais feliz do que a ver bem novamente.
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As cabanas dos druidas eram construções simples, geralmente misturando pedras, madeira e palha, fazendo uso de qualquer material que a natureza pudesse prover no momento oportuno. Não havia espaço para luxo na vida daqueles que tinham como dever curar a alma do mundo, ainda que essa missão fosse ficando mais árdua a cada dia.
Foi numa dessas casas, pequena e simples, mas com um aconchego incomum que tinha aroma de frutas vermelhas e casca de árvores, que Ayleen e Imogene foram recebidas por Muirne, uma senhora que aparentava ter uns 50 anos de idade, longos cabelos que mesclavam fios cinza e outros completamente brancos, um pouco armado, os quais eram coroados com uma tiara feita de um pedaço de cipó e folhas secas. Ela usava um vestido simples, desgastado pelo tempo e uma quantidade incomum de colares feitos de pedras, conchas e sementes. Sua voz era grave e um pouco rouca, e ela falava pouco, poderia se dizer que apenas o necessário, mas seus olhos comunicavam muitas coisas que ela deixava de verbalizar. E foi com um daqueles sorrisos sinceros, daqueles que não são dados apenas com os lábios, mas também com os olhos cheios de rugas como um mapa de uma vida, que ela recebeu Ayleen.
-Bem-vinda, pequena. Eu estive lhe esperando.
A loira queria se jogar no colo daquela anciã que havia conhecido quando criança e derramar ali todas as lágrimas que vinha guardando durante meses. Queria pedir pra ficar ali, encolhida em peles quentinhas na frente daquele fogão de pedra simples para o resto de sua vida. Queria renunciar a tudo que havia sido jogado no seu colo e nunca mais voltar para o castelo onde vivia, mas então ela se lembrou que era adulta, e que escolhas difíceis agora eram parte de sua vida.
A anciã serviu uma xícara de chá para as duas mulheres e a bebida era tão saborosa que parecia ser capaz de curar as feridas de uma alma calejada, e foi entre um gole e outro daquele néctar, que Ayleen explicou para Muirne o motivo da visita.
A anciã pediu que Ayleen permanecesse na cabana descansando, até mesmo dormindo se pudesse, e ordenou que Imogene lhe acompanhasse em uma caminhada curta até uma clareira. Ela lhe olhou cética por alguns momentos, mas anuiu e, com sua bengala, saiu naquela caminhada silenciosa, chegando num local de chão plano onde um círculo de várias pedrinhas arredondadas se formava. Havia algumas flores e conchas formando linhas que cruzavam aquele círculo. Imogene nunca havia visto algo parecido, mesmo em todas as suas viagens e olhou curiosa o desenho formado, mas não ousou abrir a boca para perguntar nada. Muirne sinalizou com um mero gesto pedindo que ela se sentasse em um ponto específico daquele círculo. Aparentando dificuldade, ela deixou a bengala que se apoiava cair ao chão e sentou-se de pernas cruzadas, Muirne permaneceu em pé em sua frente lhe olhando fixamente. Com um graveto ela traçou alguns rabiscos na terra fina que envolvia das pedras e flores, franzindo a testa e por fim soltando um suspiro pesado. Ela deu as costas para Imogene, como se fizesse menção de sair do círculo e deixá-la, mas parou no meio da ação. Olhou nos olhos azuis em sua frente mortalmente séria e inquiriu?
-Por que você está mentido?
A morena não respondeu. Apenas lhe fitou com um olhar confuso, que pareceu enfurecer a anciã.
-Criança estúpida. A devoção que Ayleen tem por você é tão grande que chega a cegá-la. Mas você não pode enganar os deuses e os espíritos. – Sua voz subitamente se tornou mais grave e gutural – ME RESPONDA. POR QUE MENTE PRA ELA?