Capítulo 1
por Officer KirammanTempo Presente
Os últimos raios de sol do dia tingiam o céu de laranja servindo como plano de fundo para aquele extenso comboio de carruagens que seguiam por uma estreita estrada de pouca vegetação levantando poeira enquanto passava. Faltava pouco para chegar à Fortaleza Drachen. Dentro de uma das pequenas carruagens, dois olhos verdes sustentavam um olhar cansado e apático, enquanto sua dona tentava não pensar no destino que lhe aguardava. Havia sido uma decisão difícil estar ali, mas existiam tantas coisas mais importantes em jogo e ela sabia que dificuldades ainda maiores estariam por vir e evitava se desesperar. Desespero não ajudaria e não era o esperado de uma dama.
-Lady Ayleen – disse uma das criadas, levantando a tolda da carruagem e interrompendo seus pensamentos. Falta pouco para que o comboio chegue na Cornualha. Em poucas horas estaremos na Fortaleza.
-Por favor, Rana. Me chame apenas de Ayleen. Você me conhece desde que eu era uma menina, nada mudou. – a criada assentiu e Ayleen continuou – onde está Gene?
-Lord Drachen ordenou que ela ficasse no último comboio com os serviçais.
Ayleen curvou os lábios numa expressão preocupada, mas não falou nada. A viagem seguiu-se, com o trotar manso dos cavalos enquanto a noite caía.
A imponente Fortaleza Drachen, pertencente à Lord Agur Drachen – ou, a verdade seja dita, fora tomada por ele à custo de muito sangue derramado – , agora esposo de Ayleen, ficava no alto de uma colina rochosa. Ao leste da construção estendia-se a praia brumosa e o mar de onde ventos gelados vinham, e ao oeste os campos de plantações de grãos e pasto para os animais. Muitas casas, a maioria delas bastante pobre se amontoava aos arredores, intercaladas por pequenas barracas de comércio onde ferreiros, alfaiates, apotecários e açougueiros garantiam seu sustento.
O interior do castelo era frio, pouco iluminado à noite. Alguns archotes eram posicionados nos corredores e salões, mas os jogos de luz e sombra que eles proporcionavam só faziam deixar o ambiente ainda mais lúgubre, como se refletisse os ecos do passado sangrento daquele lugar.
Ayleen foi instalada num aposento grande, com uma lareira ao canto, uma cama de dossel e uma penteadeira com espelho. Apesar de aparentemente projetado para ser confortável, o quarto era frio e impessoal. Ayleen sentou-se no pequeno banco em frente ao espelho e analisou sua própria imagem. Seu rosto emoldurado por cabelos loiros dourados se mostrava cansado, olheiras circundavam seus olhos verdes e a poeira da viagem tornava seus cabelos opacos. Ela ansiava por um banho quente e uma cama confortável, mas além de tudo isso havia muito mais preocupações e dúvidas pairando em sua mente, entre elas, o medo de ter tomado uma decisão errada.
Não era como se tivesse escolha. Se casar-se com Agur Drachen era provavelmente a única chance para garantir o bem-estar de todos os homens fiéis ao clã Callaghan, que assim fosse feito. Os Callaghan tinham feito demais por ela e por sua família. Quando seus pais morreram com a epidemia de peste que assolou Glastonbury, foi Deidre Callaghan e sua esposa que lhe acolheram em seu palácio em Devon como protegida da família e lhe trataram como uma filha, em vez de lhe largar ao destino certo de se tornar a criada no palácio do novo senhor que assumiria Glastonbury. Sozinha no mundo, sem seus pais Ayleen acolheu em seu coração os homens e servos Callaghan como seu povo, o que fazia todo sentido, afinal seu pai, Ennid Anderith, tinha Deidre Callaghan como um irmão de coração. De todos os senhores de terra, ele era o único que respeitava as crenças e filosofias druida tão presentes na vida de muitas pessoas dali.
Apesar da dor da perda de seus pais na epidemia, era com saudosismo que lembrava de sua infância e adolescência no Palácio dos Callaghan. Era um tempo feliz, apesar de tudo. Tantas coisas ruins haviam acontecido desde então… Havia perdido tantas pessoas e tantas pessoas haviam sofrido sem merecer. Agora com apenas 19 anos, sentia o peso de responsabilidades maiores do que se achava capaz de suportar, mas não restava escolha senão reagir. Uma batida na porta interrompeu suas divagações, e após responder afirmativamente a porta se abriu dando passagem a uma figura frágil, curvada, que se locomovia com dificuldade, apoiada numa bengala rústica.
-Imogene – sussurrou Ayleen com um pequeno sorriso – Estava preocupada com você.
A outra mulher se arrastou com a bengala para mais perto de Ayleen e devolveu um sorriso torto sem falar nada. Seu corpo era frágil e esguio, apesar de alto e seu rosto demonstrava um olhar cansado e triste.
-Drachen não tinha direito de te tratar dessa maneira. – continuou a loira – Talvez se eu falar com ele, ele permita que você tenha um lugar melhor no palácio. Eu sinto muito. – Suspirou tristemente.
Imogene não respondeu de imediato. Apenas fitou os olhos tristes de Ayleen e balbuciou algumas palavras, o máximo que suas dificuldades lhe permitiam, das quais a outra mulher conseguiu filtrar daqueles resmungos um “Você…bem?”.
-Eu vou ficar bem. – Ayleen respondeu, embora sua voz não tivesse tanta convicção. Ao menos eu não preciso dormir no mesmo quarto que ele… Senhora Aidren disse que ele me requisitará quando quiser… Bem, você sabe.
Imogene lhe fitou triste.
-Talvez não seja tão ruim, afinal – continuou a outra com um otimismo pouco convincente- Muita gente gostaria de morar num castelo como esse, perto do mar. Eu apenas gostaria que todos fossem tratados bem como o Lord Callaghan tratava.
Duas batidas foram ouvidas à porta e Rana entrou, indo até Ayleen e começando a lhe escovar os cabelos e ajeitar o vestido amarrotado.
-O Lord lhe convocou ao salão comunal, milady.
Ayleen suspirou e deu um sorriso triste para Imogene, que retribuiu e se arrastou mancando para fora do aposento.
—–
-Eu não pretendo fazer da Cornualha apenas um estado independente, mas também um reino forte. Nós não vamos baixar a cabeça para a escória Romana, nós vamos olhá-los nos olhos e nos levantaremos diante deles quando eles ousarem pisar no nosso território. Eu não vou prestar juramento de fidelidade nem entregar o meu ouro a nenhum Imperador. Se eles nos quiserem como aliados, muito bem. Mas subordinados, jamais. Nós não somos os bárbaros que eles estão acostumados a destruir.
Ayleen permanecia calada sentada ao lado do marido, que discursava com sua voz trovejante para um salão repleto de homens, seus súditos, alguns ali de vontade própria, outros nem tão contentes assim.
– Como todos sabem um reino independente precisa de um punho de aço, que não hesite em esmagar o inimigo e transpassar barreiras em busca de território e poder. E a Cornualha PRECISA desse poder, se quiser resistir ao invés de se tornar uma fonte de escravos do Imperador. Chega de nos encolhermos acuados nessa ponta do fim do mundo. Devonshire é nossa agora! É por isso que eu, Agur Drachen II, tendo clamado o trono de Senhor da Cornualha há 10 anos e agora estendido meu poderio ao condado de Devon, declaro esse feudo como um reino independente, e, por conseguinte, me autodeclaro Rei da Cornualha.
Uma extensa onda de burburinhos e sussurros se espalhou diante de todo salão, que agora se mostrava dividido entre homens com sorrisos satisfeitos diante da promessa de um lugar de honra servindo ao Rei e homens com expressões horrorizadas, certos de que Agur Drachen, o Sangrento senhor das terras havia finalmente perdido todo o juízo.
Era verdade que se a Cornualha – e diga-se se passagem, todo o território galês – quisesse resistir a ser invadida e dizimada pelo avanço Romano, necessitaria de um líder com punho de aço para tal feito. Mas na opinião da maior parte do povo, Agur Drachen não era nem de longe a pessoa mais adequada para esse posto. Um Rei devia ser feroz, destemido e ousado, mas acima de tudo precisava também considerar o interesse do seu povo, coisa que Agur já havia deixado bastante claro que não tinha intenção de fazer, no momento em que destronou Lord Vortigern do seu posto de Senhor da Cornualha.
Agur Drachen II era um guerreiro viajante, o qual dizia ter vindo das terras frias, onde vikings travavam batalhas sangrentas em nome de deuses nórdicos. Após a morte do seu pai, reuniu os homens que outrora foram fiéis à Agur I e partiu para terras desconhecidas, sempre em busca de batalhas e pilhagens que lhe rendessem ouro e poder. Aquela vida se mostrava um negócio lucrativo, e por consequência, todo tipo de mercenário sangrento se juntava ao bando até que este tomou as proporções de um pequeno exército. Em algum ponto dessa história, Agur II, com quase 45 anos, decidiu que ouro não era mais o suficiente. Ele precisava de prestígio, de poder, de reconhecimento, e foi quando um exército de 5 mil homens aportou e invadiu a Cornualha, que sendo um território pacífico e despreparado para conflitos, facilmente sucumbiu, que Agur finalmente conquistou o que ansiava. O seu senhor, Lord Vortigern, foi decapitado diante do seu povo, que chorou a perda de um líder que talvez não tivesse a mesma ousadia ou ferocidade que Agur, mas tinha honra e preocupação genuína com seu povo. Entretanto, aparentemente a sede de poder nunca é saciada, e agora Agur II, ou O Sangrento Drachen, como era chamado por muitos, se autodeclarava rei.
-Amanhã pelo começo da tarde, vocês prestarão seu juramento de fidelidade ao seu Rei. Em três dias, o exército real partirá numa embarcação rumo a Clauvegris aportando aos pés das montanhas Prescelly. Vocês têm duas escolhas…morrer com a lâmina do machado em seus pescoços como covardes, ou seguir em batalha e se tiverem sorte, viver para lutar outro dia.
A multidão foi dispensada e aos poucos se dispersou portões afora, a grande maioria, consternados. Agur e Ayleen continuaram sentados nos tronos por alguns momentos, o suficiente para que a esposa do rei reunisse coragem para perguntar.
-Quanto tempo pretende ficar em Clauvegris, meu marido?
-O suficiente para reduzir à poeira qualquer líder que resista ao meu exército. Um reino não se faz com dois condados. Se quisermos poder para resistir, ou se mostrar imperantes diante dos romanos, precisamos de território. E eu pretendo tomá-lo, custe o sangue que custar.
Ayleen engoliu seco, temerosa, mas precisava reunir coragem para uma segunda pergunta.
-O que ficou estabelecido sobre Glastonbury…Aquilo ainda…
-Eu não vou mexer com seus malditos druidas por enquanto. Eles não são um problema meu, no momento. Mas se o orgulho deles se mostrar um obstáculo no futuro, você sabe que será inevitável.
-Eles não buscam poder, Meu Lord.
-Rei – rosnou ele.
– Eles apenas querem ter o direito de venerar a natureza e suas crenças em paz.
-Como eu disse, isso não é um problema meu, por enquanto.