Capítulo 3
por Officer KirammanPassado
Poucos anos antes,,,
Uma mulher de ondulados cabelos negros apoiava-se levemente numa sacada, observando de cara fechada os eventos que ocorriam lá embaixo. Barulhos de espadas, chutes e corpos causando baques surdos no chão pareciam incessantes, assim como gritos de fúria misturados com risadas descontraídas.
Um homem bastante alto, de cabelos já grisalhos e olhos azuis, vestindo uma capa cinzenta aproximou-se por trás dela e lhe abraçou a cintura.
-Deidre… – ela sussurrou, aliviando a tensão do corpo ao sentir os braços acolhedores do marido.
-O que te aflige, minha senhora?
-Pelo amor de todo panteão celta, isso são modos de uma dama se portar? Olhe só para ela lá embaixo, aquelas vestes…masculinas, imundas. A poeira, os hematomas…e o linguajar, O LINGUAJAR, por todos os deuses.
-Minha esposa… Depois de todos esses anos, você ainda tinha esperança de domar Imogene? Depois de tudo que ela já fez? Ela já é quase uma adulta – riu o marido. – Além disso, você já pôde realizar seu desejo de “criar uma dama” através de Ayleen.
-Eu só não entendo por que ela não pode ter os modos de Ayleen. Colocar um vestido não é o fim do mundo! E transformar aquela trança horrenda num penteado decente também não seria ruim. Ela é uma jovem tão bonita, Dreide, eu apenas não entendo por que…
-Você sabe que quanto mais insistir, mais ela vai se afastar. Já tivemos uma prova bastante certa disso, minha senhora. Não há nada a fazer a não ser aceitar o espírito selvagem da nossa filha. Você sabe que eu não era muito diferente quando jovem.
Não era a primeira vez que Imogene Callaghan era o assunto das reclamações e dores de cabeça do casal. Deidre não podia dizer que havia ficado triste com o nascimento de uma menina, mas sem dúvida, nos primeiros meses se pegou mais de uma vez pensando em como seria bom ter um rapazinho para seguir seus passos. Para sua surpresa, já em tenra idade, Imogene recusou-se a tomar parte nas brincadeiras de chá no palácio e colocar os vestidos pesados a menos que realmente se fizesse necessário. No lugar de passar seus dias em companhia das criadas ou de sua mãe, passava-os correndo pelas ruelas de Devonshire ou assistindo os homens do pai treinarem golpes de espada. Não demorou muito para que ela mesma tomasse posse de espadas de madeira usadas nos treinos e começasse a girar pelos cantos, e para o horror de sua mãe, passasse os dias fingindo enfrentar inimigos que só existiam em sua imaginação.
Muitas vezes haviam tentado lhe impedir, e as serviçais recebiam ordens severas para que mantivessem a menina rebelde dentro do palácio, mas era em vão. Ela sempre conseguiria pular alguma janela, escapar por algum vão ou simplesmente escalar algum ponto mais baixo da muralha e dar um jeito de fugir.
Quando tinha 9 anos, Ayleen chegou ao castelo. Ennid Anderith e sua esposa, senhores de Glastonbury haviam sucumbido à peste, e ainda não tendo um herdeiro homem, suas terras foram usurpadas por outro senhor e deste modo, Deidre Callaghan que tinha o finado amigo como um irmão de coração, assumiu Ayleen Anderith como sua protegida, cuidando da menina como se fosse sua própria filha. Para a esposa de Deidre, tinha sido uma alegria, já que o casal falhou nas demais tentativas de conceber outro herdeiro, e ter uma outra criança no palácio, sobretudo uma menina, que podia influenciar um comportamento mais adequado em Imogene, lhe agradava muito.
Mas tinha sido em vão. Nem mesmo Ayleen, que sendo um ano mais nova do que Gene, já se comportava como uma verdadeira dama, conseguiu “endireitar” a rebelde menina de cabelos pretos e brilhantes olhos azuis, embora sua mãe se recusasse à desistir e tentasse com determinação impedir o comportamento completamente “inadequado” da filha.
Isso tudo ocorreu até uma fatídica manhã, quando uma das criadas foi acordar Imogene que naquele dia completava 14 anos, e não encontrou nenhum sinal da jovem em seu quarto. Todo o palácio, e em seguida a própria vila foram vasculhados, mas a filha dos Callaghan simplesmente tinha desaparecido.
Os meses, estações e anos que se seguiram foram repletos de lágrimas, lamentos e do coração apertado dos pais da menina e também de Ayleen. A princípio achavam que ela podia ter sido raptada por algum bárbaro, ou mesmo por algum rival de Deidre, mas todos os informantes e patrulhas de busca que Callaghan havia mandado voltavam sem nenhuma notícia, fosse boa ou ruim. Ninguém em Devonshire havia visto Imogene, era como se simplesmente a jovem tivesse evaporado no ar. Era seguro dizer, que a presença de Ayleen no palácio era a única coisa que evitou que a esposa de Deidre fosse à loucura devido à dor do desaparecimento da filha. Durante aqueles anos, mesmo Deidre Callaghan, conhecido por seu comportamento altivo e corajoso, caiu numa melancolia profunda sentindo em seus ombros o fracasso como pai.
Três longos anos de luto se passaram quando na manhã do primeiro dia da primavera, Deidre foi despertado do seu sono com o barulho de uma algazarra vinda do pátio embaixo da janela de seus aposentos. Três dos seus melhores homens estavam tendo um momento MUITO difícil tentando deter um indivíduo encapuzado que lhes esquivava com movimentos rápidos, ao mesmo tempo que lhes enchia de pancadas com um cajado. Mesmo com espadas e estando em número maior, os homens usando armadura eram pesados demais para conseguir algum golpe efetivo e previsivelmente acabaram os três no chão.
Deidre já estava prestes a um ataque de fúria, e quando ponderava entre chamar o resto da guarda ou descer ele mesmo fazer o trabalho de três incompetentes, a figura encapuzada puxou o capuz para trás, revelando um sorriso zombeteiro, olhos azuis e o brilhante cabelo negro preso numa longa trança.
-Olá, papai.
Ao receber a notícia do retorno da filha, Aderyn Callaghan se sentiu tomada de tantas emoções que não sabia se batia, maldizia ou tomava a filha nos braços em prantos. Escolheu de início a terceira opção, mas as reprimendas não tardaram. Ainda que o casal se sentisse mais feliz do que jamais poderia expressar vendo a filha viva e bem em sua frente novamente, Imogene sabia que teria infindáveis explicações a dar aos seus pais, e foi com conformidade e calma que se dirigiu a eles, quando ambos a chamaram para a inevitável conversa.
Deixou que o bombardeio de perguntas terminasse antes de responder, e começou a falar com voz serena e comedida.
-Eu realmente sinto muito por ter causado a perturbação que causei com minha ausência. Sair daquele jeito foi um erro, mas foi a atitude que eu, com aquela idade julguei mais correta. Hoje vejo o quanto os magoei e espero que me perdoem por isso. Eu não posso dizer, no entanto que me arrependo da minha decisão, eu teria partido de qualquer modo, o que poderia ser diferente é o modo como o faria. – Aderyn fez menção de interrompê-la, mas antes que pudesse, Imogene continuou.
-Na maior parte desses três anos, eu estive na terra dos samurais. Avô Hedwyn me contou quando eu era criança, os contos que ouviu de bardos, menestréis e mascates viajantes, sobre o povo que conseguia ser mais rápido do que o ar, mais ágeis do que os linces e fortes como gigantes. Sobre o povo que podia vencer uma luta, fosse com uma espada ou com as mãos vazias. Eu sabia que vocês jamais permitiriam que eu aprendesse com o mestre de armas do palácio ou que empunhasse uma espada de verdade, por isso eu parti. Parti para me encontrar. No começo foi difícil, como seria para qualquer menina daquela idade. Mas em vez de me render às dificuldades, eu usei-as como vantagem, afinal uma criança magrela como eu era passaria despercebida em muitos lugares. E foi assim que eu me infiltrei em carruagens e navios, até chegar naquela terra desconhecida. Após muita insistência um velho samurai aceitou me treinar e me submeteu à uma disciplina rígida na qual aprendi mais coisas do que apenas a lutar, mas isso terei tempo de relatar depois. O fato é que apesar de eu ter partido, eu nunca deixei de amá-los. Eu não fui embora porque não os amava ou porque tinha raiva por não deixarem que eu fizesse o que gostaria. Eu fui embora porque eu precisava aprender. Muitos vão dizer que foi uma aventura tola… mas para mim, foi a escola que eu precisava frequentar. Eu espero que me perdoem.
-Apenas me faça um favor, Imogene. – falou Deidre com a voz firme embora seus olhos estivessem marejados – Se alguma vez na sua vida você resolver partir novamente – e eu sei bem que não poderei te impedir – ao menos nos avise para que saibamos que nossa filha ainda está viva.
Ayleen reencontrou Imogene no pátio do palácio. Quando a viu, bem, inteira, ainda que tão mudada, abriu o sorriso mais sincero que dava nos últimos 3 anos. Sua veste oriental de cor azul escura contrastava com o vestido de tons claros que Ayleen, num abraço apertado e cheio de saudade. Ambas se sentaram num dos bancos do jardim do palácio embaixo de uma frondosa árvore, onde conversaram por horas.
-Você…você está tão mudada – disse a loira, ainda sorrindo e não deixando de esconder a surpresa – Quero dizer, olhe para você. Nós costumávamos ter a mesma altura, e hoje você tem a altura do seu pai!
-Bom, olhe para nós, não temos mais 13 e 14 anos. – respondeu Imogene rindo. Sua voz era firme, com uma rouquidão leve que apenas a deixava mais bela aos ouvidos. Seu rosto angulado, ostentando dois olhos azuis como safiras tinha algumas cicatrizes que se faziam visíveis só para quem olhasse de perto, como Ayleen fazia agora. Os cabelos negros não estavam mais soltos e esvoaçantes como quando era criança, mas sim presos numa longa trança. As pernas e braços fininhos da adolescente de três anos atrás haviam dado lugar a membros longos e fortes, ainda que Imogene ainda fosse bastante magra, porém diferente do corpo reto e esquelético da Imogene de 14 anos, a Imogene de agora ostentava as curvas de uma jovem de 17 anos, estas escondidas debaixo das vestes largas.
-Eu achei que nunca mais fosse te ver.
-Seja sincera, você deve ter ficado feliz de não me ter por perto por algum tempo. Ao menos não tinha mais ninguém para te arrastar para brincadeiras malucas como as ideias que eu tinha.
-Realmente, Gene, escalar aquele carvalho não foi a experiência mais prazerosa da minha vida, principalmente por causa da surra que levamos depois, mas ainda assim eu senti saudades. Mais do que você pode acreditar. E hoje eu te vejo novamente…tão…realizada. Tão adulta. Cuidando de si mesma…E eu fico feliz por te ver assim – os olhos verdes de Ayleen brilhavam com sinceridade – Porque parece ter valido a pena. Perto de você eu ainda me sinto aquela criança frágil de três anos antes.
-Não se preocupe. Eu posso cuidar de você- disse Imogene lhe segurando a mão e sorrindo.
-Certo…apenas me prometa que você não vai tentar me convencer a subir em nenhum carvalho novamente. – riu Ayleen.
-Palavra. Mas você não é a mesma criança frágil de três invernos atrás. Você devia se olhar no espelho de vez em quando.
Ayleen corou levemente ao comentário e continuou.
-Eu…eu estive estudando as escrituras que minha mãe me deixou. Não é muita coisa, porque ela deixou os druidas quando ainda era muito nova, mas…é um jeito de eu me sentir mais próxima deles.
-Você nunca mais foi ao templo deles?
-Não – balançou a cabeça negativamente – Você sabe que eu os amo, e os considero parte de mim. Mas eu não pertenço lá.
-Entendo.
-Todas as vezes que eu vou até eles, eles tentam me convencer a ficar entre eles, estudar, aprender sobre filosofia, sobre as ervas, sobre as histórias.
-Pensei que você gostasse de tudo isso.
-Eu gosto. Mas vocês são a minha família, e eu não vou deixá-los. – disse com determinação.
-Um dia você se casará com algum senhor de terras e será inevitável. – Imogene comentou com uma apatia notável na voz.
-Você também.
-Não. Eu não vou deixar o Palácio Callaghan. Meu avô construiu esse lugar, meu pai assumiu o comando e eu cuidarei dele e do seu povo quando meu pai não estiver mais entre nós. Sabe, é uma das razões pela qual eu tinha de aprender a lutar. Não existe um herdeiro homem na minha família, e eu não vou deixar que qualquer Senhor de Terras de moral questionável assuma tudo isso através de um casamento arranjado. Meus pais podem achar uma ideia ridícula, mas eu não preciso que ninguém acredite em mim. É o que eu farei de qualquer modo.
-Eu acredito em você. – Ayleen disse com sinceridade lhe olhando nos olhos.
-Acredita? – Imogene perguntou quase chocada. Ela não esperava que ninguém tivesse fé nas suas ideias, uma vez que para todos, uma mulher no comando de um feudo de terras era uma ideia absurda.
-Você é uma das pessoas mais determinadas que eu conheço. Não é porque todos dizem que é errado, que realmente seja. Você já provou que não nasceu para uma vida em bailes de corte e chás vespertinos ou para um casamento baseado em interesses políticos.
-E você?
-Eu…Eu não sei. Eu gosto da minha vida como é. Mas suponho que não tenho escolha. Eu não sou especial como você, e eu não posso ficar sozinha para sempre.
-Você é. E você não está sozinha. Você sempre vai ter um lugar aqui. Eu…Quero dizer, nós, sempre cuidaremos de você.
Ayleen sorriu timidamente e tentou mudar o assunto.
-Você devia ir ver o seu avô. Ele vai ficar feliz em saber que você voltou.
-É, eu deveria.