Encruzilhada
por Dietrich– Voce não vai me matar – ela murmura.
Eu vou, penso. Meus dedos fecham com força ao redor do punho da adaga. Mas minhas mãos não conseguem mover a arma.
– Você matou minha família – murmuro – destruiu tudo… tudo.
Meu corpo me trai novamente. Minha mão treme e é aí que ela golpeia minha mão e eu solto a arma. Ela me empurra e estou no chão, ela sobre mim, segurando minhas mãos em minhas costas.
Não tenho resistir. Um vazio aterrador me tomou novamente. O mesmo de onze anos atrás. O mesmo de quando percebi que tinha perdido tudo.
Perdi novamente.
– Você quer saber a verdade, Callisto? – a voz dela contém aquela frieza aguda que antes estava em minha própria voz – não lembro realmente de Cirra.
O vazio em mim é perturbado por uma pancada de dor.
– Quero dizer – ela continua – uma vila que destruí? A sabe-se lá quantos anos? Perdi a conta a muito tempo.
Ela solta minhas mãos, mas continuo imóvel. Ela se levanta e continuo largada no chão, como um cadáver.
– Mas estou impressionada – a voz dela continua se derramando sobre mim – nunca, ninguém, chegou nem perto de conseguir o que você quase conseguiu hoje. Não se sinta derrotada. Foi um feito impressionante.
Apenas encaro o chão abaixo de mim, mas ouço os barulhos. Ela está caminhando, sentou-se em algum lugar. Líquido se derramando. Provavelmente um copo de vinho ou algo ainda mais forte.
Sou atingida pela delicadeza de um tecido.
– Cubra-se – ela diz – está frio.
Pisco, confusa. Minha mão agarra o tecido. Algo volta a mim e tenho forças para me sentar. Me enrolo no pano.
Finalmente consigo olhar para ela.
Ela também se cobriu e me observa, escrutinadora.
– Quando vai me matar? – pergunto – sua melhor chance é a agora. Não vou resistir. E quem sabe… – baixo os olhos – quem sabe eu possa ver minha família de novo.
Ela apenas continua bebendo pequenos goles do copo e me olhando. Depois de um silêncio infinito, ela se manifesta:
– Você disse que veio em busca de propósito – ela fala – era me matar?
– Sim.
– Única e exclusivamente?
Estreito os olhos, tentando ler as intenções dela. Ela está sorrindo.
– Você é minha igual, Callisto. A única que encontrei nessa longa jornada sangrenta que estou caminhando. Não vou me livrar de você.
Ela levanta, atravessa a tenda e senta-se na cama. Estou no chão aos pés dela.
– Acabei de tentar matar você.
Ela lê meus lábios mais do que me ouve, minha voz é quase inexistente.
– Você quer saber um segredo, Callisto? – ela coloca um dedo sob meu queixo e empurra, me forçando a erguer os olhos para ela.
– Qual?
– Não valorizo minha vida tanto assim.
– Que?
– Não me entenda mal – o dedo dela traça e acaricia meu rosto – não quero morrer. Mas algumas coisas são mais importantes do que um cego instinto de sobrevivência. Uma vida longa mal vivida ou uma vida mais curta e mais interessante… prefiro a segunda opção.
Ela pega a adaga que estava na cama e joga aos meus pés.
– Fique com ela.
Pego a arma em minhas mãos. Subitamente, tudo que quero é enterrar a lâmina no peito dela. A encaro e sei que ela vê o instinto assassino em mim novamente.
– Gosto desse brilho em seus olhos – ela diz.
Oh, deuses.
Eu começo a rir sem parar e largo a adaga novamente.
– Você é uma vadia esquisita, hein Xena?
– Suponho que eu seja – a voz dela é divertida.
***
Ela dorme na cama. Eu permaneço no chão, acordada, como um animal abandonado.
Mais uma vez, me debato para nomear as coisas desconhecidas que ocorrem em mim.
Eu sabia pouca coisa. Ódio e vingança. Depois aprendi corpo e paixão.
Acho que agora é… vergonha.
Estava fadada ao fracasso desde o início. Por ingenuidade. Não a ingenuidade de quem nunca viu algo ruim ou conheceu a tragédia. Mas a ingenuidade da pureza do ódio.
Ninguém que é puramente uma coisa só vê o todo.
Perdi minha pureza de ódio.
Ela perdeu a pureza da vilania.
Estou quebrada e a imagem dela dentro de mim também está quebrada. Achava que a conhecia de dentro pra fora. Mas não sei quem ela é.
Ela é o monstro que destruiu Cirra. Eu sou o monstro que nasceu de suas cinzas. Mas o que mais ela é? O que mais eu sou?
Finalmente me levanto, ainda nua e apenas envolta na coberta. Olho ao redor, minha armadura espalhada pelo chão. Provavelmente devo apanhá-la e sair dali. Quem sabe sair do acampamento e nunca voltar. Quem sabe me jogar de um precipício, ser partida por pedras. Ou me atirar no mar e deixar as águas me enterrarem.
Ou atear fogo em meu próprio corpo, sentir a dor que minha família sentiu.
Dedos entrelaçam os meus e tremo.
Me viro, ela está de olhos abertos, cravados em mim.
A mão dela agarra a minha com mais força, ela me puxa e caio sentada na cama.
– Fique aqui – ela diz.
Posso realmente não fazer algo que ela me pede? É algo que sou capaz? Se sou, ainda não descobri.
Deito ao lado dela. Ela fecha os olhos, parece se entregar ao sono novamente.
Agora não estou encarando o chão ou o vazio. E sim as costas dela. Os cabelos. O rosto adormecido.
Sinto uma espécie de paz que jamais senti na minha vida e meus olhos se fecham sozinhos.
***
Essa paz não dura muito. Não existe descanso para minha alma.
No dia seguinte, acordo sem ela ao meu lado, ouço a movimentação no acampamento. É dia de campanha, de ataque. Visto minha armadura, mas ela se encaixa de forma estranha em mim. Minha espada. A adaga que ela me deu.
Saio da tenda e encontro o batalhão já preparado.
Ela não ia me acordar? Ela ia me deixar dormir e sair para matar e pilhar sem mim?
O sorriso que ela direciona à mim de cima do cavalo é de silenciosa cumplicidade. O exército se põe em marcha.
A cidade estava pronta. Preparada para enfrentar a Conquistadora. O cerco dura dias. Fome, sede, morte. Mato como nunca antes. Mas tem algo errado. Algo errado dentro de mim.
Consigo ver o rosto de cada pessoa que perece sob minha espada. Eles sempre tiveram rostos?
Isso não impede que eu trespasse uma infinidade de corpos.
Vencemos, mas o custo foi alto. Porém, de alguma forma, o discurso inflamado dela aos soldados convence a todos que foi uma vitória espetacular.
Mas não me convence.
Ocupamos a cidade. Estamos instalados em casas, e ela e os oficiais em um pequeno palácio.
Um deles diz que ela estava me chamando.
Ela está no maior aposento. Ainda em armadura e coberta de sangue e sujeira. Contempla um mapa em uma mesa. Vejo cansaço em sua postura.
Os olhos dela suavizam ao me verem.
– Se não é minha assassina favorita – ela diz.
Também estou cansada. Fisicamente. Os últimos dias foram realmente duros. Não costumava perceber tanto meu corpo, mas não tenho mais esse luxo. Por causa dela, mais do que nunca eu sou um corpo.
– O que você quer? – pergunto.
Ela passa a mão por cima do mapa.
– Eu sei que você sabe que nossa vitória não foi tão boa assim. Perdi um terço de meus oficiais. Um quarto de meus homens. Se algum general esperto dessas províncias tiver um pouco de cérebro, aproveitaria para me derrubar aqui. Ele perderia muitos homens, mas quem sabe, poderia ganhar a batalha.
– Você ainda tem sua reputação – falo – as pessoas tem pavor de você. Mesmo se alguém com cérebro planejasse algo, teria dificuldade em mobilizar as tropas em fazer a coisa realmente acontecer. E a moral das suas tropas… você também tem essa vantagem.
Ela corre uma mão pelo cabelo dela, que parece uma juba de tão sujo e bagunçado que está. Ri quando os dedos travam no meio do caminho.
– Deuses, estou uma porca – ela fala.
– Todos nós.
Mais um silêncio. Quero estar ali com ela e quero estar longe dela.
– Porque ainda está aqui, Callisto?
Baixo os olhos.
– Não sei para onde ir – murmuro, minhas mãos se fechando no punho da minha espada embainhada. Desfilam em minha mente as vidas que foram apagadas por ela. Incontáveis. Um oceano de sangue em minhas mãos.
Ou nas dela? Ou são a mesma coisa?
– Você tem todos os requisitos para buscar o poder. Físicos e mentais. Porque não o faz?
– Poder? – repito, ainda sem erguer os olhos – por que?
– Essa é a grande questão, não é? Poder. Ou você o quer, ou você não o quer – ela finalmente se levanta e caminha devagar em minha direção – ou você pensa que não quer, mas quando o tem… torna-se prisioneiro dele.
– É o que você é? – ergo os olhos para ela – uma escrava de suas paixões?
Ela ergue uma sobrancelha.
– Não somos todos?
Ela me dá as costas.
– Tem uma banheira enorme atrás daquela porta. Vou tirar toda essa porcaria do meu corpo. Quer se juntar à mim?
Mais uma vez aquela risada descontrolada é arrancada de mim. Só ela consegue fazer isso. Fazer meu corpo desencontrar assim, de súbito.
– Oh, Xena… você é uma figura.
– Isso não é uma resposta.
Eu tento pensar, mas a verdade é que não quero pensar muito. Minha mente registra, em alguma parte dela, que ela nunca repete seus brinquedinhos. Pelo menos não sem um longo intervalo de tempo entre a repetição. E estou ali. Pela terceira vez.
– Estou logo atrás de você – respondo.
E a sigo.
É realmente uma banheira grande.
– Desenho romano – ela fala, displicente – cada vez mais nosso povo quer imitar aquela gente.
– Não gosta deles?
– Os mataria a todos, se pudesse. Talvez o faça, eventualmente – ela para, me olha – me ajuda a tirar a armadura?
– Você não precisa de mim para isso – falo.
Mais um sorriso tremulante. Fronteiriço. Nos lábios dela.
– Não. Mas você vai fazer?
– Eu tenho escolha? – caminho até ela em passos pesados, rápidos, largos e solto uma das presilhas da armadura dela sem nenhuma delicadeza – você é a porra da comandante e sou somente a porra de um soldado.
Ela morde os lábios, os cantos da boca ainda curvados para cima.
– De quem você está com raiva, Callisto?
Não respondo, apenas continuo retirando as peças da armadura. Ela sabe de quem estou com raiva.
Quando não tem mais nada na pele dela além de sangue e da sujeira, ela me pergunta:
– Precisa de ajuda com a sua?
– Não.
– Como quiser – ela entra na banheira.
Deuses, eu sou patética.
Posso ser um brinquedo repetido, mas certamente sou um brinquedo.
Com quase a mesma irritação, me desfaço do couro e do metal que me cobre. Sei que ela está olhando cada movimento meu.
Não posso negar que é um alívio mergulhar na água e me livrar de todas aquelas placas secas de sangue e merda.
Mas sei que não estou ali só para ficar limpa.
Não demora para eu sentir as mãos delas em meus ombros. Os lábios dela em meu pescoço.
Sei que mexo com ela. Já tive a prova disso. Mas ela me destrói. Odeio e não consigo resistir.
– Sabe, Callisto… você tá me devendo um orgasmo.
As mãos dela em minha coxa.
– Eu estava quase lá… e você tinha que arruinar tentando me matar.
As unhas delas entram em minha pele. Sinto arder. Minha mente já está devastada. Já pertenço à ela.
– Então termine o que começou… uma coisa ou a outra.
Ela me puxa, me beija. Nenhuma suavidade, pura fome.
Ela desliza algo em minha mão. Uma maldita adaga.
Aperto o corpo dela contra mim, a lâmina em minhas mãos roça as costas dela.
– Isso tudo é tédio, Xena? – falo, nos segundos que nossas bocas se descolam. Escorrego a lâmina pelo corpo dela sob a água e sinto-a tremer – nunca um de seus… amiguinhos… usou uma faca em você?
– Eles tentam – ela lambe da base do meu pescoço até minha orelha e meu fecho no punho da adaga quase se solta – mas nenhum pode me ferir de verdade.
Isso me deixa cega. A empurro contra a parede da banheira e a beijo com fúria. A adaga está encostada na garganta dela, e quase na minha também. Minha outra mão se mete entre as pernas dela.
Continuando de onde parei em nosso último encontro.
Ela me aperta contra ela com força quase assassina.
Minha ânsia de fodê-la e matá-la são tão próximas. Ela está certa.
Odeio que é exatamente isso que ela quer e estou oferecendo de bom grado.
Maldita pervertida.
E eu também, porque aquilo é a coisa mais deliciosa que já fiz em minha vida.
Meus dedos entram fundo, a lâmina pressiona com força seu pescoço. Sinto a pulsação dela através da arma, e as contrações em meus dedos.
Desço para seus seios e me perco neles. Não sei mais como está a adaga que seguro contra ela. Talvez eu esteja a machucando, talvez não. Ela geme alto.
Ela se desfaz contra mim.
Me sinto uma deusa.
Volto a encará-la e há sangue no pescoço dela. Apenas um pequeno corte onda a ponta da adaga estava. Consigo me segurar para não cair em risada de novo.
Bem, eu queria fazê-la sangrar, e consegui.