Pergaminhos
por Dietrich– Ora, ora, Theodorus. E eu achando que você tinha perdido suas bolas na batalha de Corinto.
A imperatriz voltou à mesa e largou-se na sua cadeira.
– Bem. Obrigada a ambos por mostrarem a imensidão de minha própria covardia. Está na hora de eu voltar a simplesmente ser a porra da imperatriz dessa merda de Grécia. Gabrielle, você não vai ser enviada a lugar nenhum. O que você vai fazer é estudar comigo todas essas porcarias de pergaminhos. Theodorus, deixe a sacerdotisa de sobreaviso. Se o que eu ler nesses rolos não me desagradar, ofereceremos à Callisto o esquecimento. E se ela não concordar – Xena cerrou o punho e olhou para Gabrielle – eu pessoalmente enfiarei uma faca no coração dela.
Gabrielle não soube o que dizer. O olhar de Xena trazia raiva e uma dor visível. Theodorus pareceu simplesmente aliviado.
– Sabia que veria a sabedoria, minha senhora – o homem falou, se levantando – vou agora mesmo. Senhora Gabrielle – o homem estendeu a mão para ela – a senhora é surpreendente.
Gabrielle apertou a mão do homem, ainda meio sem acreditar em tudo aquilo.
O homem bateu continência e saiu.
– Espere que lembre do meu aviso, Gabrielle.
– Sobre cortar minha garganta?
– Esse mesmo.
– Lembro perfeitamente.
– Ótimo – a imperatriz sacudiu a cabeça, com olhar cansado – vamos começar nossa sessão de leitura.
– Exatamente o que devo procurar nesses pergaminhos?
Xena mais uma vez sorriu, exasperada.
– Algo para fazer eu me sentir melhor sobre o fato que vou mais uma vez destruir a alma de Callisto. Algo que me convença que estou tomando a decisão certa.
– E se não houver?
– Aí voltamos para o que funciona. O bom e velho assassinato.
Gabrielle ficou reflexiva um tempo. Depois falou:
– Eu gostaria da chance de esquecer tudo e começar de novo. E você?
Xena sacudiu a cabeça.
– Eu não mereço esquecer.
– Então uma parte de você já sabe que existe uma compaixão no esquecimento.
Xena encarou a loira.
– Você é a porra de uma filósofa? Parece que estou conversando com aquele intragável do Sócrates.
Gabrielle arregalou os olhos.
– Você conhece Sócrates?
– Nunca conheci uma criatura mais insuportável.
– Então eu sou insuportável?
Xena revirou os olhos.
– Está vendo? É disso que estou falando.
Gabrielle não conseguiu evitar um pequeno sorriso.
– Eu também posso ser a merda de um Sócrates – resmungou a imperatriz – o que você acha de Callisto receber um ato de suposta compaixão, Gabrielle?
Gabrielle parou para refletir um minuto.
– Eu a odeio profundamente. Mesmo sabendo de sua história. Mas, ainda assim, prefiro perdoá-la e dar a ela uma chance do que ter mais sangue derramado nisso tudo. Sabe, pessoas às vezes perdem vidas inteiras por causa de uma escolha errada – Gabrielle baixou os olhos e engoliu em seco – e todo mundo merece recomeçar.
Xena a encarou firmemente por um tempo, depois deu de ombros.
– Tá, tá – Xena resmungou, impaciente – vamos ler essas drogas.
***
Xena sentia-se pior à medida que lia. Tudo que encontrava fazia ode à memória e repúdio ao esquecimento.
Deu uma olhada em Gabrielle e a loira parecia muito concentrada e imersa na leitura. Reparou que a loira parava eventualmente para fazer anotações em um pergaminho vazio. Não conseguia ler, mas via que ela tinha uma letra pequena e organizada, que seguia numa linha reta sem esforço. Riu por dentro ao lembrar de suas próprias garatujas.
– Acho interessante o fato de que está tentando basear uma decisão política em filosofia, Xena – disse Gabrielle após finalizar um pergaminho.
– É, Platão também me disse isso.
A loira ergueu os olhos mais uma vez.
– Também conheceu Platão?
– Tentei tê-lo como conselheiro por um tempo. Outra criatura intolerável. Mandei-o embora.
Gabrielle sacudiu a cabeça e voltou a ler.
– O que está encontrando por aí? – perguntou a imperatriz.
Gabrielle a encarou.
– Nada que você vá gostar – respondeu Gabrielle, com um tom de voz compassivo – em termos de fundamentação filosófica… os textos parecem unânimes em condenar o esquecimento como uma maldição. Mas, na minha opinião, isso é uma arbitrariedade histórica. Esse elogio da memória vem dos tempos em que não tínhamos escrita, e precisávamos da tradição oral para manter as coisas vivas. Esse elogio é datado. E desumano, na minha opinião. Acho o esquecimento um presente dos deuses aos mortais. Sem ele, não seríamos capazes de seguir adiante perante as dores da vida – deu de ombros – mas esse é só meu pensamento.
– E você é cheia deles.
– Se eu não puder ter nem meus pensamentos, o que mais posso ter?
– O que mais, de fato? – Xena largou o pergaminho e fez menção de falar algo, mas foi interrompida por batidas nos portões do salão. Revirou os olhos e falou com voz dura:
– Entre.
Um soldado entrou e bateu continência.
– Desculpe interrompê-la, senhora conquistadora – o homem falou – a princesa das amazonas deseja vê-la.
Xena ergueu uma sobrancelha. Gabrielle sentiu todo o sangue subir ao rosto e tentou parecer displicente, mas percebeu um olhar intrigado da soberana em sua direção.
– Deixe-a entrar – falou a morena.
O homem bateu continência e abriu passagem. Terreis entrou e fez um aceno para ambas as mulheres. Gabrielle não sabia para onde olhar.
– Perdão pela interrupção – a amazona falou – na verdade, senhora, estava procurando por Gabrielle.
Xena apenas olhou para a loira, que estava cor-de-rosa.
– Ah – começou Gabrielle, sentindo-se atravessada pelo olhar das duas mulheres – Terreis, estou um tanto ocupada. Questões importantes. Posso falar com você mais tarde?
– Claro. Peço desculpas – amazona falou, parecendo tranquila – posso esperá-la na biblioteca?
– Sim, com certeza – Gabrielle agradeceu mentalmente aos deuses por não gaguejar.
A amazona apenas fez duas breves mesuras e saiu do salão. Quando os portões se fecharam novamente, Gabrielle tentou simplesmente voltar a ler, mas o olhar que Xena estava lhe lançando naquele momento era impossível de ignorar:
– O que foi? – perguntou a loira.
– Você me diz.
– Não há nada a dizer.
– Então você é amiga da realeza amazona agora?
A resposta não é da sua conta veio até a ponta da língua de Gabrielle, mas ela lembrou que estava falando com a imperatriz.
– Sim. Pode-se dizer que sim.
– Bem – Xena deu de ombros, ainda com um sorriso maroto nos lábios – fico feliz que esteja fazendo amigos e se adaptando a vida na corte e na cidade grande, Gabrielle.
– Ah… obrigada.
Xena estralou os dedos e se recostou na cadeira.
– Quer saber Gabrielle? Já chega de leitura para mim. Vou ignorar os filósofos e escutar você. Pode levar isso de volta para a biblioteca. E agradeço a ajuda.
Gabrielle hesitou um segundo, confusa, mas logo se levantou e começou a recolher os pergaminhos. Segurou-os junto ao corpo e antes de sair, voltou-se relutante para Xena.
– Você… poderia me dizer o que Callisto decidir? Eu gostaria de saber o que vai acontecer com ela.
Xena assentiu.
– Te direi.
Gabrielle saiu do salão, apressada.
***
Gabrielle percorreu lentamente o caminho até a biblioteca, a cada passo sentia-se mais nervosa. Tudo aquilo com Callisto, mais a presença de Terreis estavam sendo um pouco demais para ela processar. Foi tentando respirar para se acalmar mas ainda assim um sentimento de quase pavor a assolou quando finalmente entrou na biblioteca.
Não viu Terreis imediatamente, mas quando deu alguns passos a avistou em meio a algumas estantes, lendo um pergaminho. Depositou os pergaminhos que carregava na mesa mais próxima.
Terreis ergueu o olhar assim que notou Gabrielle se aproximando, e um sorriso tranquilo se formou em seus lábios.
– Olá, Gabrielle – saudou a amazona com a voz suave, guardando o pergaminho de volta na estante – espero que não tenha se incomodado com minha visita.
Gabrielle sorriu, tentando disfarçar a tempestade que carregava por dentro.
– Não, claro que não. Eu só… – começou, mas a frase morreu em seus lábios. Ela respirou fundo, tentando recompor os pensamentos – desculpe se pareci estranha no salão. Há muita coisa acontecendo.
– Não precisa se desculpar – Terreis falou, um olhar compreensivo nos olhos – parecia sério o que você estava resolvendo com Xena, espero não ter causado nenhum pormenor.
– Era uma questão bem complicada, de fato – Gabrielle olhou para baixo – mas acho que foi resolvido. Ela precisava consultar os pergaminhos para tomar uma decisão importante.
– Bom saber que a Nação Amazona está fazendo a paz com uma governante que valoriza o conhecimento – Terreis falou, seu lado de realeza política aparecendo naquele momento. Gabrielle pode ver um brilho de astúcia passar por alguns segundos pelo olhar de Terreis, diferente do olhar caloroso e sincero com o qual estava habituada. Por algum motivo, aquilo fez seu coração bater mais forte, e não de um jeito desagradável. Mas logo a amazona retornou àquele olhar afetuoso mais familiar, mas com um toque de tristeza.
– Eu vim, na verdade, para me despedir – continuou a amazona – voltaremos ao nosso território em breve.
– Ah… – Gabrielle murmurou, sem saber exatamente o que dizer, mas não conseguindo negar o pulsar de tristeza que aconteceu em seu peito – imagino que você tenha muitas responsabilidades. Eu… bom, espero que tudo corra bem.
Terreis sorriu, inclinando a cabeça de leve. Aproximou-se lentamente de Gabrielle, que viu-se envolvida em um abraço aconchegante e forte. Devolveu o abraço com a mesma intensidade, permitindo-se perder por alguns momentos em todas as sensações que aquilo lhe provocava. Tentou resistir, mas o impulso foi maior que ela e buscou os lábios da amazona, sendo correspondida com mais um beijo intenso.
Quando os lábios se separaram e Gabrielle recuperou sua respiração, falou:
– Terreis… tudo isso é novo demais para mim e eu não sei o que dizer ou o que fazer.
– O que você quer? – a amazona sussurrou, sua testa encostada na de Gabrielle.
– Eu quero muitas coisas – Gabrielle riu nervosamente – mas não me sinto pronta para as coisas que quero.
Terreis sorriu e beijou a testa de Gabrielle.
– Gabrielle, eu não esperava nada de você além do que você quisesse dar – ela disse, gentilmente – não acho que tenha sido fácil para você, e eu entendo. Só preciso que saiba de uma coisa… foi um prazer conhecer você.
– Digo o mesmo – Gabrielle se afastou mais um pouco, segurando ambas as mãos da amazona, depois, tomando coragem, a olhou nos olhos – na verdade, foi maravilhoso conhecer você.
– Então, fico feliz que tenhamos nos encontrado. Até outra oportunidade, Gabrielle.
– Até.
A amazona se afastou e foi até os portões da biblioteca. Com um último aceno e sorriso, se despediram.