Filho
por DietrichA batalha finalmente havia cessado. O campo estava coberto de poeira e cheiro de metal. Os soldados de Xena, alguns mancando, outros carregando feridos, moviam-se entre os corpos no chão, identificando aliados e inimigos. Krykus fora finalmente derrotado, e o exército de Xena, exausto, voltava para a segurança do acampamento.
Xena caminhava entre os soldados, acenando com a cabeça em reconhecimento aos que se recuperavam, mas seus olhos estavam fixos em um ponto distante. A guerra tinha sido a missão fácil: o que tinha pela frente tinha muito mais chances de feri-la mortalmente do que qualquer espada.
Caminhou até a tenda onde Theodorus tinha instalado Solan. Era a mesma que havia sido de Kaleipus. A cada passo, parecia que seu corpo ficava mais pesado, como se o próprio solo se recusasse a deixá-la avançar. Ao chegar, hesitou por um instante, fechando os olhos e respirando fundo.
Finalmente, afastou a aba da tenda com uma mão trêmula e entrou. Solan estava sentado, girando nas mãos uma adaga que provavelmente pegara de um dos soldados. Seus olhos estavam marejados de lágrimas, mas ao ver que Xena tinha entrado, apressou-se em fazer uma cara de bravo.
– É verdade? – perguntou o menino, tentando manter a voz sem emoção.
Xena deu mais uns passos à frente, a ansiedade e o receio latejando em cada célula do seu corpo. Ergueu o queixo, e sua voz saiu num tom mais frio do que desejava.
– Sim, Solan. Sinto muito.
O menino virou-se de costas para esconder as lágrimas que não conseguiu evitar. Xena sentiu um impulso de correr até ele e abraçá-lo, mas sabia que não tinha esse direito. Pelo menos não ainda.
– Você é uma fraude – disse o garoto, sua voz despejando tristeza e raiva – primeiro mata meus pais, depois não consegue proteger meu tio. Pra que você serve?
Xena teve a sensação que precisou contrair todos os músculos do seu corpo para não se desfazer em prantos naquele momento. Sentiu que poderia cair de joelhos, então buscou um dos cômodos da tenda para se apoiar.
– Você tem razão, Solan – sua voz mal traía a imensa dor que carregava – eu não sirvo de nada se não posso proteger quem eu amo. Não posso proteger mais Kaleipus. Mas estou aqui para honrar o que ele me pediu. Posso tentar proteger você, se você deixar.
Solan deu de ombros e fez um barulho de escárnio.
– Você é a última pessoa de quem quero algum tipo de proteção.
Uma lágrima solitária e incapaz de ser contida escapou de um dos olhos de Xena.
– Seu tio… me fez um último pedido, antes de morrer. Pediu que eu cuidasse de você. E eu prometi que o faria. Você pode me ajudar a cumprir o último desejo dele, Solan? Você me deixa cuidar de você?
O menino girou a cabeça para olhá-la, seu rosto distorcido de raiva.
– Você está mentindo! – ele explodiu – Por que ele pediria isso a você?
– Porque ele sabe que devo a ele muito mais que minha vida – Xena não suportava mais carregar sozinha o fardo daquela verdade – eu devo tudo a ele, Solan, desde… desde… – Xena sentia como se fosse vomitar – o dia em que entreguei você nos braços dele e pedi para que o protegesse.
O menino estreitou os olhos, o rosto confuso, tentando processar as implicações daquela frase.
– Como assim?
– Já fazem dez anos – Xena falou, cada palavra doía como um corte em sua carne – eu tinha acabado de trazer você ao mundo, e Borias tinha acabado de morrer. Eu tinha traído os centauros e estava prestes a exterminá-los, mas recuei e retirei meu exército. Sob uma condição… que cuidassem do meu filho, e do filho de Borias. Você.
Xena agarrou com força o móvel que segurava, temendo colapsar sob o peso de suas próprias palavras. O menino a olhava com estupefação, incredulidade e ódio.
– Você está mentindo – ele finalmente se levantou e correu de modo a ficar o mais longe possível de Xena – tudo que sai da sua boca são mentiras!
O menino correu novamente, dessa vez querendo sair da tenda e daquela sensação de esmagamento e traição, mas Xena o segurou pelos ombros. Ele tentou se desvencilhar, mas a imperatriz permaneceu detendo-o, e acabou caindo de joelhos de frente ao menino.
– Solan, por favor – Xena agora chorava livremente – eu não espero teu perdão, ou seu entendimento. Mas por Kaleipus, permita que eu ao menos te dê uma vida digna.
O menino a encarou, numa mistura inominável de emoções. O rosto banhado em lágrimas da mulher mais poderosa da Grécia o fez cair em si. A constatação da verdade do que ela falava o atingiu como um soco.
Houve um longo momento de silêncio onde eles apenas se olhavam. Com o rosto do menino tão perto, Xena via toda sua história retratada no garoto. Seus próprios traços, os de Borias, até sua personalidade explosiva. Foi tomada por um sentimento de culpa e amor tão brutal que pensou que seu corpo poderia sucumbir. Percebeu que dedicaria toda sua vida a conquistar de volta o amor de seu filho, não importava o que custasse.
– Por que? – o garoto perguntou, numa voz ínfima – por que você me entregou?
Xena sentiu-se quebrar, mas Solan merecia que ela o respondesse com o máximo de sinceridade que podia.
– Eu não era uma boa pessoa, Solan – começou Xena – nem um pouco. Eu vivia num mundo de violência e sangue. Eu não queria que você vivesse isso. Eu queria que você vivesse em paz. Um dos últimos gestos do seu pai foi tentar tirar você de mim, porque ele sabia que eu não seria boa para você. Ele se tornou uma pessoa melhor muito antes de mim.
O menino cerrou os punhos, seu rosto revelava uma grande batalha interna.
– Você matou meu pai? – ele perguntou.
– Não, Solan – falou Xena – eu juro em nome do que quiser, eu não matei seu pai. Eu não sei quem o matou naquela noite maldita. Eu posso lhe contar tudo depois, e lhe contarei, se assim o desejar. Foi um dia muito triste. Mas eu não o matei, Solan.
Xena hesitou um momento, depois continuou:
– Por favor, Solan – Xena suplicou – deixe-me cuidar de você, como seu tio pediu.
O menino baixou a cabeça, as lágrimas escorrendo dos olhos. Ainda olhando para baixo, assentiu devagar. Xena sentiu como se o peso do mundo fosse retirado de suas costas.
– Obrigada, Solan – Xena tentou conter o impulso quase irrefreável de tomar o filho nos braços – agora… vá arrumar suas coisas. Leve o tempo que precisar para se despedir de seus amigos. Partimos amanhã ao raiar do sol.
O menino se virou, ainda sem encará-la, e pegou uma bolsa, onde começou a colocar suas coisas. Xena deixou os ombros caírem, fechou os olhos por um minuto e permitiu que um sorriso de alívio despontasse em seus lábios. Finalmente se ergueu, saiu da tenda e ordenou a um soldado que ficasse de olho no menino.
***
A alvorada estava chegando, colorindo o céu em tons de rosa e laranja pálido, enquanto o exército de Xena começava a se mobilizar para a marcha de retorno. Soldados carregavam seus pertences, fechavam tendas e ajeitavam as fileiras, e a aura de vitória contra Krykus ainda pairava, mas era silenciada pelo cansaço da batalha recente.
Numa gaiola de madeira improvisada, Dagnine era mantido preso, fortemente amarrado. A presença do homem parecia espalhar miasmas polutos no ar, e diversos soldados o olhavam com desprezo completo. O homem começou o dia disparando impropérios aos soldados, com palavras de baixíssimo calão, até que Xena mandou amordaçá-lo.
Solan estava parado à margem do acampamento, observando tudo em silêncio. O olhar dele era fixo e distante, perdido em pensamentos, e suas mãos estavam enfiadas nos bolsos da túnica. Vira Xena do outro lado, orientando os soldados e organizando o que restava da retaguarda. Ele a observava como se tentasse ver além da figura de guerra que a mulher carregava – uma figura que agora fazia parte de seu mundo com um fardo novo e incômodo. A mágoa era clara em seus olhos, mas o ódio parecia ter dado lugar a uma mistura confusa de sentimentos. Ele não sabia ao certo o que pensar.
Theodorus, que observava Xena enquanto ela dava ordens precisas aos seus comandados, aproximou-se em silêncio e a chamou com um tom de preocupação discreta.
– Minha senhora – ele murmurou, fazendo uma saudação rápida – entendo que levar o menino foi o último desejo de Kaleipus, mas… é adequado?
Xena pausou, olhando para Solan de longe, enquanto ele desviava o olhar rapidamente, fingindo desinteresse. Sentiu um aperto no peito, mas manteve a compostura, ciente de que toda a tropa estava ali para ouvi-la.
– É inteiramente adequado, general – disse ela, seu tom revelando uma certa frieza – porém, as razões, lhe contarei em momento oportuno. Por enquanto, concentre-se em cuidar do exército – Xena olhou para Theodorus com olhos afiados – o menino é meu protegido agora, Theodorus. E nada, nada, deve acontecer com ele. Entendido?
Theodorus assentiu, com uma expressão mais compreensiva do que inquisidora.
– Como quiser, Majestade – Theodorus respondeu com lealdade – o menino estará em segurança.
Aos poucos, o exército se pôs em marcha. Os soldados caminhavam em formação, e Xena tomava a liderança, com Theodorus ao seu lado, guiando a tropa pela estrada que os levaria de volta a Corinto. Solan caminhava mais atrás, entre os soldados, ainda em silêncio e com um semblante pensativo.
Ele olhou para o horizonte, onde o sol nascia, e sentiu a carga do desconhecido sobre os ombros. Estava seguindo aquela mulher que agora lhe dizia ser sua mãe. Era como se sua vida inteira tivesse sido virada de cabeça para baixo da noite para o dia, e ele ainda tentava decifrar o que tudo aquilo significava.