Derrota
por DietrichA lâmina parou a centímetros do pescoço de Xena.
Por alguns segundos, Gabrielle ficou surpresa, como se não soubesse quem ou o que havia interrompido seu golpe. Olhou para a conquistadora. Ela não havia se mexido um centímetro sequer. Sentiu todo o ódio que tinha por aquela mulher aflorar com força dentro de si. Sua mão começou a tremer.
– Vamos lá, Gabrielle – ela falou para si – um golpe, e tudo acaba.
Quando levantou a lâmina novamente, ela soube que não conseguiria. Soltou a adaga, que caiu com um estrépito no chão. Suas pernas fraquejaram e ela desabou de joelhos, sentindo-se sem fôlego. As lágrimas vieram antes que pudesse se conter e ela gritou.
Xena continuava adormecida.
Não era capaz de pegá-la de surpresa nem de matá-la em combate justo. Não conseguia assassinar a sangue frio. Era incapaz de vingar sua nação. Estava no lugar que merecia. Era o espólio de guerra da conquistadora.
Gabrielle não soube quanto tempo ficou caída no chão. Não conseguia se mexer. Não conseguia pensar, sentir. Queria poder ficar parada o resto dos seus dias. Nem mesmo os sons de Xena começando a acordar a fizeram se movimentar.
Ouviu o som da porta se abrir.
– Minha senhora? – a voz de Eris soou.
– Eu ganhei nossa aposta, Eris – disse a voz de Xena.
– Não acredito que ela não a matou!
– Não sei se você está aliviada ou decepcionada.
– Aliviada, minha senhora! Só fiz esse jogo insano porque a senhora ordenou.
Xena levantou-se e ficou de pé ao lado de Gabrielle.
– Levante-se – ordenou.
A amazona não se mexeu.
– Eu disse, levante-se! – chutou Gabrielle, que deslizou pelo chão.
A loira levantou-se. Xena aproximou-se e segurou-lhe a mandíbula, forçando-a a erguer o rosto e olhá-la nos olhos. E o que viu foi um olhar quebrado e cheio de dor.
– Você percebeu agora? Que desde o começo você havia perdido? Que sua luta é insignificante?
Gabrielle não respondeu.
– Responda-me! – berrou a morena.
– Sim – disse a amazona numa voz quase inaudível.
– Bom. Só lamento que eu não estava acordada para ver o momento em que você percebeu a verdade.
Gabrielle baixou os olhos.
– Olhe pra mim! – gritou a conquistadora, sacudindo a cabeça da mulher.
Os olhos verdes encontraram os azuis e derramaram lágrimas. Xena passou um tempo fitando a expressão destroçada. Soltou a mandíbula de Gabrielle e esta caiu de novo no chão, sem forças.
– Tire ela daqui, Eris. Agora!
– Sim, senhora – a escrava correu e ajudou Gabrielle a levantar-se, saindo com ela apoiada em seus ombros.
Assim que a escrava fechou a porta, a conquistadora do mundo conhecido desabou em sua cama, sem fôlego, sem saber porque se sentia tão perturbada.
***
Gabrielle acordou no dia seguinte com Jana a seu lado. A menina olhava para ela de forma preocupada.
– Você está bem, Gaby? Parecia machucada ontem.
– Estou bem, Jana – levantou-se e começou a mancar até a porta.
– Aonde você vai?
– Servir a conquistadora.
A menina arregalou os olhos. Gabrielle nunca falava naquele tom conformado. Jana engoliu em seco.
– Será que você poderia me contar outra história sobre as amazonas?
Gabrielle parou por um momento.
– Não sei mais histórias. Desculpe, Jana – e continuou a andar.
Foi até a cozinha e começou a preparar a bandeja com a comida da conquistadora. Quando terminou de selecionar os alimentos, Eris entrou. Gabrielle, por um momento, lembrou do que tinha acontecido durante a noite.
– Porque fez isso? – Gabrielle não tirou os olhos do seu trabalho.
– Você a ouviu – disse Eris, baixinho – eu faço qualquer coisa por ela. Desculpe, Gabrielle.
Pegou a bandeja e foi até o quarto da conquistadora, que ainda dormia. Deixou a bandeja na mesa e começou a preparar o banho da sua senhora. Quando terminou, ficou de pé no quarto esperando Xena acordar. Sentia-se flutuante, observando a si mesma de fora do corpo.
***
A conquistadora começou a despertar. Seu olhar caiu logo sobre a figura que a velava.
– Bom dia, loirinha.
– Bom dia, senhora – murmurou Gabrielle.
Xena sentou-se na cama, surpresa ao perceber que a postura submissa de Gabrielle não lhe causava nenhuma euforia. Olhou para a bandeja de comida que Gabrielle lhe trouxera e não sentiu fome. O que era incomum, pois costumava comer muito bem.
– Você quer um pouco disso? – disse ela apontando para a bandeja.
– Estou bem, senhora – respondeu Gabrielle.
– Vamos, coma um pouco.
Gabrielle hesitou, olhou para a bandeja e pegou uma uva, que pôs na boca e comeu.
– Boa garota – disse Xena – agora pegue uma uva e me dê.
Gabrielle pegou uma uva e estendeu até a conquistadora. Xena balançou a cabeça.
– Assim não, garota. Aqui – Xena apontou para a própria boca.
Gabrielle se aproximou e colocou a uva na boca da conquistadora. A rainha aproveitou para lamber o dedo da mulher, que não esboçou a menor reação. Xena esperou surgir em seu interior o júbilo que sentia em subjugar outra pessoa, mas só sentiu um mal estar indefinido. Começou a se irritar.
– Gabrielle, me siga.
A rainha a levou até um dos baús do quarto e o abriu. Dentro, Gabrielle viu uma espada, um traje de couro e correntes, além de pergaminhos e caixas de diversos tamanhos. A conquistadora abriu uma das caixas e tirou uma chave. Pegou a corrente e abriu sua tranca.
– Gabrielle, o que diria se eu te mandasse prender essa corrente no próprio pescoço e dissesse que vou te manter presa nela?
– É o que quer, minha senhora?
Xena estendeu os ferros na direção da outra mulher. Gabrielle se adiantou, colocou a algema no próprio pescoço e fechou a tranca.
Xena sentiu seu estômago esfriar, e sua irritação só aumentou. Bruscamente, pegou a chave e tirou a corrente de Gabrielle, largando os ferros no chão. Xena ordenou que Gabrielle pegasse a bandeja de comida e se retirasse.
– E não apareça aqui hoje. Diga a Anteia que ninguém deve me perturbar.
– Sim, senhora – disse Gabrielle.
Quando Gabrielle saiu, Xena percebeu que estava tremendo. Dentro de si volteavam tantas emoções estranhas que ela tinha a sensação que podia sucumbir. Pela primeira vez em muitos anos, foi até a porta dos seus aposentos e a trancou à chave. Levantou-se e caminhou até o enorme espelho que adornava uma de suas paredes e olhou para si.
Ele lhe devolveu a imagem daquele corpo grande e forte, os cabelos negros e compridos, os olhos azuis penetrantes, confiantes, que tinham dobrado o mundo à sua vontade. Sim, ela se regozijava com sua imagem. Narcisisticamente, vaidosamente, com a certeza que qualquer vício moral nada mais era que a humanidade em sua pura forma, a ser agarrada com o poder da vontade, longe da covardia de ideais estúpidos.
Tudo era poder e vontade, nada além do poder e da vontade. E isso estava além do bem e do mal. Ela era transcendência, estava além do humano e ao mesmo tempo, era a mais humana de todas.
Não foi o que ela viu refletido naquele dia.
Ela viu um olhar que era ao mesmo tempo estranho e familiar.
Estranho, pois não o via há tantos anos, que sequer lembrava que ele existia. Familiar, porque já o encarara no passado.
Era o olhar de uma jovem garota que um dia perdera tudo. O olhar de uma garota que um dia se debruçara sobre os corpos mortos de toda sua família por dias, até o cheiro da podridão da morte forçá-la a ir embora. De uma jovem que, como uma covarde, se escondera para salvar a própria vida enquanto tudo que ela conhecia virava sangue e chamas.
O reflexo no espelho chorava.
– O que você é agora, sem nada para conquistar? – ela perguntou ao espelho, antes de esmurrá-lo, quebrando-o e enchendo sua própria mão de sangue.
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