Queda
por DietrichO sol já tinha se posto, e Xena jogou no chão a segunda garrafa vazia de vinho. Seu corpo formigava um pouco e ela se sentia relaxada.
Ouviu passos apressados no corredor. Vozes alarmadas soarem ao longe. Seu estado de relaxamento foi interrompido pelo alerta dos seus sentidos.
O trote rápido de grupos de pessoas. Gritos. Estrondos e coisas quebrando.
O doce entorpecimento do álcool evaporou em segundos.
A rainha ergueu-se num átimo e saiu para o corredor. Ela correu em direção aos sons mais próximos e a primeira pessoa que viu foi Eris correndo apavorada em sua direção. Ela agarrou a escrava pelo braço.
– Eris, o que diabos está acontecendo?
A escrava estava lívida, e não parecia capaz de falar. Xena a sacudiu e gritou:
– Eris! Me diga o que sabe!
– Se-Senhora… Acestes… O exército…
Xena arregalou os olhos.
– O que aquele idiota tem a ver com essa confusão?
Eris se agarrou nela e chorou. Xena cerrou os olhos e os punhos e usou todo o seu autocontrole para dar algum tempo para que a jovem se acalmasse. Alguns segundos depois, a escrava conseguiu falar.
– O exército da senhora está atacando o castelo, Acestes parece estar à frente deles. Estão tomando tudo, matando todo mundo que não se render.
Xena sentiu a cabeça girar. Aquela história não fazia sentido. Acestes não sabia quanto era dois mais dois. Não era possível que ele fosse algum tipo de líder de uma rebelião contra ela.
– Eris, você sabe onde ele está?
– Eu não sei, senhora, eu só ouvi. Eu estava correndo para… para ver se a senhora estava bem – e baixou os olhos, parecendo envergonhada.
Ah, maldita escrava estúpida que tinha algum tipo de paixão desviada por ela. Pelo menos lhe passara boas informações que a ajudariam a lidar melhor com a situação. Tinha que recompensá-la.
– Fique perto de mim e tente acompanhar meu ritmo, certo? Senão não tenho como cuidar de você.
Eris assentiu, parecendo aliviada. Xena começou a andar pelos corredores. Eris se desdobrava para acompanhar as largas passadas de sua senhora.
Xena passou por pessoas correndo, corpos mortos de escravos. Reconheceu alguns e pode perceber que Gabrielle não parecia estar por ali. Depois de algum tempo, achou um soldado caído. Ela se abaixou para averiguar e viu o rosto ensanguentado de Deimos. O homem parecia prestes a desmaiar, mas, ao vê-la, arregalou os olhos e agarrou seus braços.
– Minha senhora! – ele disse, tossindo, sangue escorrendo de sua boca – proteja-se!
– O que quer dizer, Deimos?!
– Aquele maldito traidor! – Deimos balbuciava – Prístimo voltou senhora, com o seu exército! E está matando todos que não se juntam a ele! Acestes o tem. Corinto é dele senhora! Fuja, se algum soldado vê-la, irá matá-la!
Xena fechou os olhos por alguns segundos para deixar aquela informação penetrar seu cérebro. Então Acestes, de alguma forma que ela não podia conceber, tinha tomado o controle de parte do seu exército e dominado sua capital? Ela sentiu, com prazer e alívio, a fúria quente que ela reconhecia começar a tomar sua mente e seu corpo. Ela tinha um alvo, um objetivo. Ela destroçaria o maldito, ia arrancar seus intestinos e enforcá-lo.
– Deimos – Xena falou – eu ordeno que finja-se de morto e fique aqui até que eu possa vir buscá-lo.
Deimos sorriu, fraco.
– Eu já estou morto, senhora – ele apontou o talho profundo em seu estômago, de onde jorrava sangue – e a senhora estará também se não fugir logo. A senhora não tem mais amigos aqui.
– Eu nunca tive, Deimos. Eu tinha bajuladores, que eu comprava por um preço alto.
– Alguém ofereceu a eles um melhor negócio – disse o velho guerreiro, começando a fechar os olhos – eu não aceitei, senhora – a voz ia sumindo – eu não aceitei – e caiu na escuridão.
Xena contemplou por alguns segundos o olhar morto de Deimos. Viu a mão de Eris, trêmula, se estender para fechar os olhos do cadáver e a voz da escrava sussurrar uma pequena prece pela alma que partia.
– Você o conhecia? – perguntou Xena.
– Não – respondeu Eris.
– Onde estão os outros escravos, Eris?
– Estão todos espalhados por aí, senhora. Estão sendo mortos e presos. Uma parte está no alojamento, tentando se esconder da melhor forma.
– Vamos até lá, pequena.
Eris arregalou os olhos, espantada com o adjetivo que a conquistadora lhe oferecia. Nunca ela lhe demonstrava qualquer coisa parecida com carinho. Porém, quando fitou com atenção o rosto da sua senhora, não viu nada além do gelo penetrante que tantas vezes a assustava. Seguiu Xena quando ela começou a correr em direção ao alojamento.
***
Gabrielle se sentiu bruscamente arrancada do seu estado de desconexão e estupor mental pelos gritos estridentes de pessoas feridas. Pareceu ver diante de seus olhos flashes da guerra que tinha matado todas as suas irmãs, e os rostos delas nas pessoas caídas.
O castelo da conquistadora está sendo atacado.
Por um momento, ela sentiu vontade de gargalhar. Desejou sentar e ver tudo se destruir ao seu redor. Depois lembrou que os escravos, que eram as únicas pessoas no mundo que ela talvez pudesse chamar de amigas, provavelmente estavam vulneráveis nessa situação.
Foi como se ela tivesse lembrado como respirar. De repente, ela pode sentir o ar em seus pulmões, o sangue em suas veias. Seu corpo enfraquecido pulsou de energia, e ela correu o mais rápido que pôde em direção ao alojamento. A entrada estava destruída, mas os escravos tinham formado uma enorme barricada com as camas e estavam escondidos atrás dela.
– Gaby! – ela ouviu a voz de Jana gritar, apavorada e chorosa.
Gabrielle foi até a barricada e, pelas frestas, espiou quem tinha conseguido se proteger naquela frágil barreira.
– Escutem – ela disse – precisamos sair daqui o mais rápido possível.
– Não dá – disse um dos escravos, desesperado – os soldados estão por todo lado e estão matando sem ver a quem!
– Eles vão chegar aqui mais cedo ou mais tarde, e vão derrubar isso aqui em segundos – retrucou a amazona.
– A gente vai se render antes deles fazerem isso – disse outro – se a gente se render, eles vão nos deixar viver. Se a gente fugir, vão nos matar como traidores.
Gabrielle respirou fundo. Ele estava certo. Mas nada garantia que no meio do caos eles não iam ser mortos de qualquer jeito. E Gabrielle queria viver. E queria que todos eles vivessem.
– Eu acho que temos uma chance melhor se a gente aproveitar a confusão e sair daqui – disse Gabrielle – o portão não é longe. Podemos ser livres.
Os escravos ficaram em silêncio. A maioria deles sequer sabia o que significava aquela palavra.
– Eu quero fugir com você! – disse Jana e começou a tentar abrir uma passagem na barricada. Foi segurada por dois adultos.
– Jana, não seja estúpida! Se sair daqui vai morrer! – disse um dos que a segurava.
– Eu não quero mais ser escrava! Eu quero sair daqui! – a garota choramingou.
– Eu vou tentar sair daqui – disse Gabrielle – quem vai comigo?
Os escravos se entreolharam. Não pareciam saber o que fazer.
– A liberdade é um presente duro – disse Gabrielle – significa ser responsável pela própria vida. Mas ninguém nos dá liberdade. A gente toma ela à força. Porque sem ela não passamos de animais. Eu não sou um animal.
– Eu vou – disse uma mulher. Os outros a olharam aterrorizados.
– Eu também – disse um homem. Alguns começaram a murmurar em concordância e outros continuavam em dúvida.
– Vocês estão todos mortos – disse outro dos escravos.
– Isso eu já estava – disse a amazona – agora vou lutar pela minha vida.
Os escravos começaram a desfazer a barricada. Tiravam as últimas camas quando uma voz soou atrás deles:
– Ora, ora, o que temos aqui? Uma rebelião de escravinhos?
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