Vingança
por Dietrich– Acestes – Gabrielle chamou, baixinho.
Acestes parou de acenar para a plateia e olhou para Gabrielle.
– Sim, Gabrielle? Gostou do presente? – seu rosto estava exultante.
A multidão ainda gritava.
– Sim – respondeu Gabrielle, forçando um sorriso – você disse que eu podia pedir qualquer coisa dentro dos limites do razoável, certo?
– Claro, minha querida – disse Acestes.
– Quero que dê-me o cadáver – disse Gabrielle.
Acestes arregalou os olhos, como se fosse a última coisa que esperava ouvir. Depois sorriu, compreensivo.
– Não achei que tinha isso em você, Gabrielle. Claro que o darei. É seu. Faça o que quiser com ele.
– Lave-o e mande para meus aposentos – a voz de Gabrielle tremia – e não quero mais participar de festas por hoje. Quero ir lá encerrar minha noite. Apenas eu e ela. Peço que não me incomode até o alvorecer. Posso?
Acestes escorregou a mão por seu rosto e o acariciou. Gabrielle usou toda a sua energia para não recuar.
– Nos daremos tão bem, Gabrielle. Nos daremos tão bem – beijou-lhe a testa. Virou-se para alguns soldados e deu-lhes ordens. Eles se entreolharam, confusos, mas logo seguiram o comando de seu rei.
***
Gabrielle foi até seus aposentos o mais rápido que conseguiu. Encontrou Anteia no caminho e lhe pediu que mandasse Eris até ela.
O corpo de Xena estava estendido no chão. Tinha sido limpo, mas ainda sangrava, e o piso começava a manchar. Havia marcas de mordidas, perfurações, as roupas estavam ensanguentadas, e pedaços soltos de carne dilacerada pendiam dos braços e pernas da mulher. É impossível ela estar viva, pensou. Pensou até ver o quase inexistente movimento de subir e descer que persistia no peito da mulher.
O som da porta lhe indicou que Eris havia chegado. Ouviu o grito sufocado da escrava que correu até o corpo de Xena e se lançou sobre ele, aos prantos. Gabrielle correu até a escrava e a puxou.
– Você! – Eris esperneou, histérica – que tipo de perversidade está planejando?
– Eris! Ela ainda está viva. Precisamos ser rápidas, ou logo não estará mais.
– O que? – Eris virou-se pressurosa para observar Xena, procurando um sinal de vida.
– Pegue um dos lençóis. Precisamos amarrar forte todas as feridas.
Eris passou ainda alguns segundos paralisada. Depois correu e abriu a estante, voltando rápido com um lençol que começou a rasgar em tiras. Gabrielle trancou a porta, depois correu para ajudá-la a fazer os curativos necessários.
– O que vai fazer com ela, Gabrielle? – a escrava estava alarmada.
– Vou tentar salvar a vida dela.
Eris ficou furiosa.
– Você realmente me acha uma imbecil. Seja lá o que estiver pensando, não vou permitir. Não me importa o que faça comigo. Não deixarei que…
– Eris! – Gabrielle interrompeu a jovem – por favor, eu realmente preciso de sua ajuda. Além do mais, o que pode fazer? Se alguém desconfiar que ela está viva, matarão a mim, a você e a ela num piscar de olhos.
Gabrielle baixou o tom de voz.
– Eris, você sabe que já tive a chance de matá-la e não o fiz. Não a matarei agora.
– Por que está fazendo isso?
– Não tenho certeza se Acestes é confiável. Quero ter uma carta na manga. Eu disse a você que faria o que estivesse em meu poder para ajudar vocês, e é verdade. Acredita em mim?
Eris olhou para o corpo de Xena, depois para Gabrielle. Assentiu a contragosto.
– Vamos pôr um lençol debaixo dela e colocá-la sob a cama.
Com a maior delicadeza que conseguiram, arrastaram o corpo da conquistadora pelo chão e o esconderam.
– Tenho um plano, Eris, mas preciso que aja rápido e sem questionar. Me traga uma galinha, viva. E uma faca.
A expressão do rosto da jovem informava que ela pensava que Gabrielle tinha perdido a cabeça.
– Quer salvá-la, certo? – perguntou Gabrielle – sabe ser furtiva?
– O que diabos você está pensando?
– Eris, por favor, confie em mim – disse Gabrielle – vá agora. Seja rápida. A vida de Xena está em nossas mãos.
A escrava ainda hesitou um segundo, depois saiu quase correndo. Gabrielle espiou sob a cama e observou as bandagens que já estavam vermelhas. Quanto sangue será que já havia perdido? Que milagre a mantinha viva? O movimento do peito de Xena estava perigosamente lento, e seu rosto empalidecia.
Vamos, Eris, apresse-se.
Após minutos que pareceram uma eternidade, a jovem voltou com os itens requisitados. Sem pestanejar, Gabrielle prendeu o bico do animal e cortou sua garganta. O sangue esguichou por seu corpo e pelo chão.
– Gabrielle – falou Eris, ofegante – pelo amor dos deuses, o que tem em mente?
Gabrielle permaneceu em silêncio e esvaziou o pequeno animal. Eris a olhava estarrecida. O cheiro pungente de sangue empesteou o quarto.
– Eris, preciso de uma última coisa. Leve o corpo da galinha aos porcos e deixe eles a devorarem. Se puder jogar mais alguma coisa junto, melhor.
– Gabrielle…
– Vá, e só volte amanhã.
Eris fechou os olhos e cerrou os lábios. Depois foi fazer o que lhe mandara Gabrielle.
Gabrielle, exausta, jogou-se na cama. O sangue endurecia em suas roupas. Já não sentia o cheiro. Deixou-se levar pelo cansaço, e pediu aos deuses que Acestes realmente atendesse seu pedido e só aparecesse pela manhã.
***
O som de fortes batidas na porta a despertou. Levantou da cama e correu para abri-la. Acestes adentrou seu quarto, seguido por um punhado de soldados. Gabrielle percebeu Eris entre eles. A escrava tinha hematomas pelo corpo e seus lábios estavam partidos e sangrando.
– Gabrielle – Acestes soava contrariado – essa escrava foi vista esgueirando-se logo antes do sol nascer. Disse que sob suas ordens. Respeitei seu desejo, mas exijo explicações. Escravos não podem andar por aí fora de suas obrigações – o homem percorreu os olhos pelo corpo ensanguentado de Gabrielle e pelo chão vermelho – e essa decoração?
– Acestes – Gabrielle respondeu, tentando manter a compostura – apenas pedi que ela fosse dar de comer aos porcos. Eles não passarão fome por um bom tempo.
Acestes ficou boquiaberto, parecendo agradavelmente surpreso. Olhou as vestes rubras de Gabrielle e olhou para Eris. Deu uma gargalhada.
– Sente-se grata, Gabrielle? – perguntou o homem.
– Jamais me senti tão grata, Acestes – Gabrielle sorriu – obrigada. Foi uma vingança maravilhosa.
– Minha querida, se tivesse me explicado, eu não teria maltratado a escrava. Perigosa, ela. Não abriu a boca. Me parece que é leal a você. Mandarei trazer um chá para que ela não tenha filhos.
Gabrielle demorou um tempo para processar as implicações das palavras de Acestes e olhou para Eris. A escrava olhava fixamente para o chão.
– Não se choque, querida. Sei que é cruel, mas é assim que os exércitos funcionam. Xena não permitia esse tipo de coisa e os homens estavam frustrados. É assim que as coisas devem ser – Acestes sorriu – mas não com você, claro. Apenas com as escravas.
Gabrielle concordou com a cabeça, os dentes rangeram com a força que fazia para conter a indignação. Acestes pegou sua mão ensanguentada e a beijou.
– Você é uma mulher estranha, Gabrielle. É meu prazer satisfazer seus desejos.
– Minha gratidão não tem limites.
– Bem, deixarei as duas sozinhas – olhou ao redor – me parece que tem muita limpeza pela frente.
Acestes se curvou. Gabrielle devolveu a reverência. Quando os homens saíram e deixaram Eris, Gabrielle se aproximou dela. Tentou dizer algo, mas não soube o que. Eris, trêmula e fraca, jogou-se em seus braços e Gabrielle a sustentou, enquanto a jovem se desfazia em pranto.
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