Normal
por DietrichGabrielle abraçou Eris até que ela se acalmasse. Estava muito triste pelo que tinha acontecido à jovem, mas precisavam se apressar ou coisas ainda piores podiam acontecer.
– Eris, temos trabalho pela frente – disse da forma mais suave que conseguiu.
Eris ergueu os olhos cansados e balançou a cabeça.
– Precisamos cuidar de toda essa confusão – continuou Gabrielle – e precisa tomar o chá por alguns dias.
Os olhos da escrava se encheram de lágrimas, mas ela concordou e saiu do abraço de Gabrielle. Dirigiu-se até a porta.
– Volto já com tudo o necessário para ajeitarmos as coisas – falou Eris baixinho, e saiu.
Assim que a garota saiu, Gabrielle encostou a cabeça na parede e fechou os olhos. Não conseguiu segurar as lágrimas. Eris estava certa. Ophelia estava certa. Acestes estava empenhando em destruir o que havia de bom no reino que Xena tinha construído.
Eris voltou, trazendo materiais de limpeza. Gabrielle observou a expressão exausta da jovem.
– Eris, descanse. Eu dormi um pouco, você… – Gabrielle engoliu em seco – eu limpo tudo.
– Não, por favor, Gabrielle – retrucou a garota – preciso fazer algo. Não quero fechar meus olhos agora. Deixe-me ajudar, por favor.
Gabrielle concordou, contrariada.
– Certo, mas quero que tente descansar mais tarde.
– Tentarei – assegurou Eris.
As duas mulheres dedicaram-se à limpeza. Gabrielle finalmente se livrou do sangue e das roupas sujas que a cobriam. Quando terminaram, foram verificar o estado de Xena.
Gabrielle assustou-se com a palidez da mulher, e ficou mais uma vez estupefata com a constatação que ela ainda vivia. Retiraram os curativos. As feridas já não sangravam, mas tinham um aspecto doente. Limparam todas as feridas e colocaram bandagens limpas. Os sujos, queimaram na lareira.
– Acha que ela tem alguma chance, Gabrielle? – Eris fitava tristemente o rosto da mulher inconsciente.
– Se existe alguém no mundo que pode sobreviver a isso, é ela, Eris.
***
Foram muitos dias de trocas de curativos, sopas e chás medicinais. As feridas infeccionadas só não pioravam e se tornavam mortais devido à medicação, mas o corpo frequentemente ardia em febre e convulsionava.
Gabrielle passou a frequentar a corte. Aprendera a vestir a máscara que eles desejavam. A fazer a cara de estúpida e confusa que esperavam que as mulheres fizessem em assuntos políticos e públicos, enquanto ouvia suas sórdidas maquinações.
Presenciou o fim da ajuda aos pobres, a degradação das condições de trabalho dos escravos, os rostos traumatizados das escravas que eram levadas aos quartéis. Uma vez viu Jana, imunda da cabeça aos pés, fazendo a limpeza dos estábulos. Viu os nobres regozijarem-se na perspectiva do aumento de seus lucros e riquezas. Ophelia tinha sido tirada do conselho, e substituída por seu cunhado.
– Tudo volta ao normal – dizia Acestes, satisfeito.
***
Xena abriu os olhos. Viu apenas escuridão. Tentou mover-se, mas seu corpo inteiro foi tomado pela maior dor que já sentira na vida. Um gemido escapou de seus lábios. Ouviu passos apressados ao seu lado.
– Xena? – disse uma voz sussurrante.
O cérebro da mulher morena demorou para entender que ouvia a voz de Gabrielle.
– Isso é o Tártaro ou o que? – resmungou Xena, mal reconhecendo o ruído fraco que saia da sua garganta.
– Você está viva – respondeu Gabrielle – está escondida em meu quarto.
Xena tentou processar o absurdo que acabara de ouvir. Como assim estava viva? Não tinha sido despedaçada pelas feras? Gabrielle tinha um quarto?
Aos poucos foi tomando consciência que tinha bandagens por todo canto. Sentia seus olhos ferverem e os calafrios corriam por sua pele. Avaliou que provavelmente ardia em febre. Sentia-se horrivelmente nauseada.
– Muitas coisas acontecendo, loirinha.
– Me escute bem, Xena – sussurrou Gabrielle com urgência na voz – tirei seu corpo da arena. Fiz Acestes acreditar que a despedacei e dei aos porcos. Ele não sabe que está viva.
– Por que diabos você faria uma coisa assim? E por que não me despedaçou e me deu aos porcos? Seria uma vingança e tanto.
Gabrielle ficou alguns momentos em silêncio, mas depois falou:
– Existem coisas maiores que minha vingança. Como você está se sentindo?
– Como se tivesse sido meio comida por uma horda de feras – respondeu Xena.
– Hum. Certo – respondeu Gabrielle – concentre-se em se recuperar. Sei que as instalações são precárias. Mas é o melhor que temos no momento. Quando puder se mover, vamos pensar no que fazer.
– Já dormi em lugares piores – suspirou Xena, e mergulhou novamente na inconsciência.
***
Gabrielle abaixou-se e puxou o lençol sob o corpo de Xena, tirando a mulher de debaixo da cama. Eris estava colada à porta ouvindo atentamente os movimentos externos ao quarto, não sem as vezes dar uma espiada no que a outra mulher fazia.
Com cuidado, Gabrielle removeu todas as bandagens. As feridas já recuavam em sua infecção. Tocou a testa da mulher e percebeu que a febre estava mais baixa. O coração parecia ter um ritmo estável.
Limpou as feridas e constatou que já era hora de deixá-las sem nenhum curativo. Sentou-se no chão e deitou a cabeça da mulher em suas pernas, apoiando-a com uma mão o mais alto que podia. Abriu a boca da mulher com os dedos, e levou uma pequena colher de sopa até ela. Derramou o líquido e esperou o movimento da garganta revelar o reflexo da deglutição, mas não esperava o sorriso e o murmúrio baixo que se seguiram a ele.
– Que sopa de merda, loirinha.
Eris deu um gritinho ao ouvir a voz de Xena e quase correu até ela, mas Gabrielle fez sinal que ela continuasse em seu posto. Xena tentou se mover, mas Gabrielle a segurou.
– Ei! Vá com calma. Você está em pedaços, literalmente.
Xena resmungou, contrariada. Tentou, sem se mover, avaliar a situação de seu corpo. Tudo doía, e parte dos seus músculos estavam danificados.
– Qual seu diagnóstico, loirinha? – perguntou a morena.
– Perdeu parte das fibras musculares – comentou Gabrielle – principalmente no braço direito e mais ainda na perna esquerda. É provável que tenha dificuldades em andar e manejar a espada. Ainda tem infecção, mas acho que vai retroceder em alguns dias. Viverá.
Maldição, pensou Xena.
– Consigo ouvir a alegria em sua voz – Xena resmungou. Gabrielle olhou para o rosto pálido.
– Estou em séria dívida com você – continuou Xena – salvou minha porcaria de vida e ainda está remontando essa carcaça que me sobrou – Xena olhou para Gabrielle com olhar escrutinador – não consigo entender porque diabos faria algo assim. Entendo não conseguir me matar. É uma metida a boazinha com um código de ética idiota. Mas me salvar assim, não entendo.
– Aparentemente, Xena, existem criaturas ainda mais desprezíveis que você nesse mundo – retrucou Gabrielle secamente.
– Essas provavelmente são as palavras mais doces que já ouvi na vida – Xena fechou os olhos, exausta. – obrigada.
***
Após uma lua de intensos cuidados, Xena foi capaz de ficar em pé. Estava corada de novo, as feridas quase totalmente cicatrizadas, e sem febre. Seu corpo ainda estava manchado de hematomas, e tinha dificuldades em mover os músculos mais afetados. Mas, a mulher se recuperava, e Gabrielle as vezes acreditava que estava presenciando algum tipo de milagre.
Eris não cabia em si de alegria, e Gabrielle não podia evitar de se sentir feliz pela jovem, apesar de achar um tanto perturbadora a relação dela com a outra mulher. Quando a escrava viu Xena em pé pela primeira vez, andando pelos aposentos, correu e pulou nos braços dela, abraçando-a. Xena, ainda fraca, quase caiu com o impacto.
– Cuidado, garota! Ainda estou quebrada – advertiu a mulher, mas deu tapinhas suaves nas costas da escrava. Afinal, lhe devia a vida.
– Estou tão feliz em vê-la bem, minha senhora – Eris falou, emocionada.
– Não estou bem, nem me parece que sou senhora de muita coisa – Xena ergueu os olhos para Gabrielle, que observava a interação de longe. Gabrielle estava séria, vestida em seu melhor traje de nobre. Os cabelos, já um pouco mais longos, começavam a cobrir suas orelhas. Não parecia em nada com a amazona ou com a escrava que Xena conhecera.
– Está se deitando com o burro de carga, loirinha? Achei que tinha preferências mais refinadas.
Gabrielle apenas estreitou os olhos, irritada.
– Ela salvou sua vida, Xena – advertiu Eris, timidamente.
– Eu sei, eu sei. Deuses, não aguenta uma brincadeira? Agora que não vivo desmaiando, me contem em detalhes o que diabos anda acontecendo nessa latrina desde que eu tirei férias.
Gabrielle narrou-lhe todos os eventos desde a sua deposição. Xena ouviu atentamente, sem esboçar reação.
– Então o bastardo tem alterado minha legislação. Puto de merda – reclamou Xena – isso que dá ter um almofadinha no poder. Não sabe o que significa viver na lama. Maldito – olhou para Gabrielle – e você tem volteado ao redor dele para captar informações. Me surpreendeu, loirinha. Agora entendo melhor por que salvou minha bunda. Tem compaixão pelos desvalidos. Quer devolver-lhes sua tirana favorita.
– Algo assim – resmungou Gabrielle.
– Pois muito bem – disse Xena – só há um problema. Não é Acestes que está no poder.
– Como assim? – perguntou Gabrielle.
– Vocês acham mesmo que aquele desovado tem neurônios suficientes para liderar um golpe de estado? Não, não, não. Quem está pensando por ele é Ares, o deus da guerra.
Gabrielle se perguntou se a febre tinha afetado o cérebro de Xena. A morena percebeu sua expressão e achou graça.
– Não estou louca, loirinha. Eu e ele temos uma velha história. Sempre tentou me controlar, nunca conseguiu. Ficou ressentido quando conquistei o mundo sem a ajuda dele. Agora se vingou me tirando tudo.
Xena parou por um momento, fazendo uma careta de dor. Depois continuou:
– Sendo assim, não adianta muito eu simplesmente matar Acestes. Tenho que me livrar de Ares. Senão, ele simplesmente voltará para me encher a paciência novamente.
– Está falando de matar um deus – pontuou Gabrielle.
– Oh, sim – Xena sorriu – uma coisa que ainda não tinha pensando em conquistar. Há de ser interessante.
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