Misericórdia
por DietrichGabrielle soltou um suspiro de alívio quando finalmente encostou suas costas doloridas numa larga árvore. Não era o lugar mais confortável do mundo, mas era o que tinham disponível. Além do mais, já dormira inúmeras vezes na natureza selvagem. Uma sensação de nostalgia e familiaridade a possuiu ao respirar o ar frio da noite e ouvir o som do vento nas folhas das árvores.
– Acha que estão atrás de nós? – perguntou Gabrielle, enquanto tentava se acomodar da melhor forma possível na relva.
– Penso que sim. Mas provavelmente Acestes tentará sustentar a ideia que estou morta. Talvez nem acredite nos soldados que nos viram. Mas vai querer se certificar – respondeu Xena, enquanto também tentava se acomodar.
– Tem alguma ideia de como vai ser capaz de matar um deus? – perguntou Gabrielle.
– Alguma – Xena jogou um graveto no fogo.
Gabrielle observou Xena. Apesar da crise anterior onde atacara a árvore, o rosto da mulher estava tranquilo.
– Você parece muito calma para alguém que perdeu um reino – comentou Gabrielle.
Xena ergueu uma sobrancelha. Abriu a boca como se fosse dizer algo, mas se calou. Sorriu.
– Acho que senti falta disso – disse Xena, observando o fogo.
– Do que está falando? – perguntou Gabrielle.
Xena ergueu a cabeça em direção ao céu cintilante de estrelas.
– Passei a maior parte da minha vida na estrada, Gabrielle. Com meus homens. Isso aqui – apontou ao redor – é como eu vivia. Não me entenda mal, eu amo os luxos daquele castelo de ratazanas. Mas aqui – Xena cerrou as pálpebras e inspirou fundo – aqui parece que as coisas ficam mais claras.
– Fala com desprezo das pessoas da nobreza – disse Gabrielle.
– É por que os desprezo. E eles me desprezam. O sentimento é mútuo. Odeiam que uma mulher de origem camponesa os governe. E eu os odeio por serem uns hipócritas pomposos. Mas enquanto eles não me matavam e eu mantinha protegidas suas terras nos dávamos bem. Mas Ares lhes deu um pau pra chupar, o que é tudo que eles queriam. Uma pena. Terei que destripar muitos deles quando voltar.
Gabrielle remexeu-se, incomodada com a displicência de Xena com a violência. Xena percebeu a reação.
– Me acha uma puta sanguinária, não é Gabrielle?
Gabrielle não respondeu. A resposta parecia óbvia.
– Você foi rainha – disse Xena – nunca teve que fazer nada questionável para se manter no poder? Certamente não era fácil controlar tantas tribos amazonas diferentes.
Gabrielle desviou o olhar. Xena era a última pessoa com a qual queria conversar sobre as amazonas. Mas a pergunta dela lhe trouxe memórias que ela preferia esquecer. Xena leu em sua expressão aflita a resposta à sua pergunta.
– Você já me perguntou e eu já respondi, Gabrielle. Eu gosto de matar e gosto do poder. Mas não faço nenhum ato sem propósito.
– Não precisava ter exterminado as amazonas – Gabrielle não conseguiu se conter – não precisava… – sentiu a voz embargar.
Xena deixou o silêncio pairar por alguns momentos. Os barulhos da noite predominaram enquanto ela observava a outra mulher, que se recusava a olhá-la diretamente. Por fim, falou:
– Gabrielle, um dia matei um senhor da guerra chamado Gurkham. Um renomado traficante de escravos.
Gabrielle voltou a olhá-la, confusa. O que isso tinha a ver?
– O desgraçado era um maníaco. Até mesmo para meus padrões. Amazonas são famosas entre os traficantes, Gabrielle. São orgulhosas demais, difíceis de domar. Valem ouro pesado. Alguns escravistas se especializaram em trabalhar com elas. Gurkham era um deles. Tinha métodos bem criativos para subjugar as amazonas que conseguia capturar.
– Eu sei quem é Gurkham – disse Gabrielle – não sabia que você o tinha matado. E sei sobre os traficantes de amazonas. Acabei com eles.
– De fato, loirinha. Graças a você, eles foram para a surdina. Mas ainda existem alguns poucos.
– Qual é o seu ponto, Xena? – perguntou Gabrielle, impaciente.
– Me diga, Gabrielle, o que eu faria com um punhado de amazonas orgulhosas e irrefreáveis sob minha tutela?
Gabrielle franziu a testa, sem entender o rumo daquela conversa.
– Só havia três destinos para sua nação – continuou Xena – um, me obedecer, o que jamais fariam. Dois, vendê-las aos escravistas e sofrer horrores indizíveis, o que particularmente não me agrada. Ou três, morrer, que era o destino mais misericordioso. Preferia que as tivesse vendido para a tortura?
Gabrielle sentiu uma onda de raiva passar por ela.
– Está tentando me convencer que nos exterminou por misericórdia?
– Você é inteligente demais pra acreditar nisso – disse Xena – mato por gosto, e, como você mesma falou, com facilidade. Mas, como eu disse, não existe ação minha sem propósito.
Gabrielle se sentiu indignada. Até que uma lembrança a tomou de assalto.
Quando tentaram resgatar uma dezena de amazonas da escravidão e nenhuma delas quis voltar para a tribo. Não eram mais mulheres. Eram coisas quebradas e sem vida que perambulavam a serviço de seus captores. Foi após essa campanha que Gabrielle tinha decidido mandar os escravistas de amazonas para o Tártaro.
Tinham capturado alguns deles e as amazonas os executaram em mortes lentas e dolorosas durante dias. Gabrielle tinha sido ela mesma responsável, junto com várias mulheres, por aplicar uma série de cortes em um deles, fazendo-o sangrar lentamente e gritar de dor até morrer. Lembrou do ódio que sentira e de como estivera inebriada com o festival de morte que ocorrera naqueles dias.
Suas irmãs a aclamaram fervorosamente por meses!
Gabrielle fechou os olhos e baixou a cabeça.
– Uma amazona só já foi difícil o bastante – Xena prosseguiu – você é osso duro, loirinha. Eu não daria conta de uma dezena. Elas estão melhor onde estão.
– Poderia ter nos deixado em paz. Não interferíamos em seu reinado.
– Gabrielle, você não está entendendo. Escute bem. Eu não sou uma boa pessoa. Eu quero, e vou, ter o mundo inteiro aos meus pés. Estou dizendo que, dentro do mundo governado por esta sádica ambiciosa aqui, elas tiveram o melhor destino possível. Entende, loirinha?
Gabrielle encarou o rosto estoico de Xena, que falava da destruição de sua vida como quem descrevia um raciocínio matemático. A amazona estava tensa de desgosto, mas a linha argumentativa de Xena estava correta. A escravidão pelos traficantes seria um destino muito pior.
– Espera que eu agradeça? – resmungou Gabrielle.
– Espero que enfie uma faca em minha garganta na primeira oportunidade que tiver. E teve muitas. Mas esse não é seu estilo. Afinal, você é muito melhor que eu. Nobre, valente – a voz de Xena tinha uma nota de desprezo – jamais cometeu crueldade ou covardia. Estou certa?
Gabrielle decidiu ignorar a mulher. Recostou-se na relva e fechou os olhos, mas só adormeceu muito depois, sua cabeça um turbilhão de pensamentos confusos.
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