Vinho
por DietrichDe longe, conseguia sentir o cheiro de carne queimada e ouvir os gritos aterrorizados e penetrantes das pessoas que estavam sendo assassinadas. Sua cabeça estava tonta e puxava o ar com força, sem conseguir respirar. Não faltava oxigênio ao seu redor, mas o pavor era tão intenso que parecia esmagar seus pulmões.
Tentou mover as pernas e os braços, mas não conseguiu. Queria gritar também, mas algo tomara sua voz. Queria ir até sua mãe, saber se estava viva, mas tudo que conseguia era ofegar escondida atrás do barranco.
Horas se passaram. Ela achava que tinha perdido a consciência em algum momento. De repente, já estava escuro, não havia mais gritos ou barulhos. Levou ainda alguns minutos para perceber que o movimento do seu corpo havia retornado.
A menina levantou-se lentamente e começou a caminhar em direção à vila. O cheiro forte de fumaça a fez tossir. Tropeçou no corpo de alguém enquanto andava em direção à sua casa. Passou a ter mais cuidado com seus passos. Sua casa era uma das poucas que não tinham sido queimadas.
Tentou abrir a porta, mas estava emperrada. Forçou o máximo que pôde e conseguiu abrir uma fresta larga o suficiente para passar seu corpo pequeno e esquálido. Quando passou, viu que o que obstruía a porta era o cadáver de seu irmão mais novo. Tinha uma adaga enfiada nas costas. Parecia que tinha tentado fugir. Não conseguira.
Subiu as escadas até o quarto de sua mãe. Lá estava ela, sobre a cama. Seu corpo dilacerado e ensanguentado. Seu irmão mais velho estava amarrado numa cadeira ao lado, com a garganta cortada.
Todos tinham morrido.
Ela desceu as escadas. Arrancou a adaga das costas do menino morto e o pegou em seu colo, levando-o como sempre o levava quando precisava alimentá-lo ou simplesmente quando ele queria passar um tempo pendurado nela. Voltou ao quarto da mãe e deitou o irmão de um lado da cama, limpando seu rosto frio e alinhando as pequenas mechas douradas. Deitou-se do outro lado da cama. Abraçou o corpo ensanguentado da mãe.
O tempo passou. Ela não soube quanto. Mal sentia o aperto da fome e da sede. Mas, depois de um tempo, as moscas e o fedor começaram a incomodá-la. Olhou o rosto da sua mãe, e ela não era mais sua mãe, nem seus irmãos eram seus irmãos. Os rostos cinzentos e deformados não lhe eram familiares.
Levantou-se e saiu de casa, em direção ao lago. Nas margens dele, chorou até adormecer.
***
O mundo não era fácil para uma garota sozinha no mundo. Por algum motivo, as pessoas acreditavam que ela estava ali, à disposição deles, principalmente os homens e meninos. Ofereciam-lhe comida, roupas, abrigo, em troca de si mesma. Não era uma barganha à qual ela estava disposta. Principalmente porque tinha um objetivo muito claro na vida e estava perto de consegui-lo.
Sabia como Cortese se sentia sobre meninas de doze anos como ela. Seu corpo apenas começava a mudar. Conservava os resquícios da infância, misturados com o começo de um corpo de mulher. Era desse tipo de perversidade que o assassino da sua família gostava. E ela o satisfaria.
Nos últimos dois anos aprendera truques. Conhecia as fraquezas dos homens. Era ágil o suficiente com uma adaga. Sua mãe nunca a ensinara a ser indefesa. E o tempo sobrevivendo na floresta a tinha mostrado as diversas formas de fazer um ser vivo sangrar.
Ao longe, no acampamento de Cortese, vislumbrou as meninas que os soldados vigiavam. Todas do tipo que ele gostava. Meninas recém-saídas da infância. Esgueirou-se com a furtividade de um felino até bem próximo do acampamento e da tenda de Cortese.
Os tinha observado o dia todo e sabia que o homem estava sozinho em sua tenda.
Misturou-se às meninas que serviam bebida aos soldados. Pegou uma jarra e, de olhos baixos e com passos tímidos, foi até a porta da tenda.
– Ora, o que temos aqui? – disse um dos guardas – é uma das novas?
O homem pegou seu queixo e levantou seu rosto. Ela fez cara de choro e fingiu tremer de medo.
– Tro-trou-xe o vinho do se-se-nhor…
– Por que não me divirto com você antes de enviá-la aí dentro?
– Não seja estúpido – repreendeu o outro guarda – sabe que Cortese gosta de ser o primeiro. Vai cortar sua cabeça se você mexer com uma das novas.
O homem resmungou contrariado e soltou o rosto dela.
– Sim, sim – concordou o guarda – entre aí, menina. E tente não gritar, será pior para você.
Ela baixou os olhos e entrou, cambaleando um pouco. Ergueu o olhar apenas o suficiente para localizar Cortese sentado a uma mesa, analisando uma simulação militar. Ela pigarreou para se fazer notar. O homem voltou a cabeça, surpreso.
– Que está fazendo aqui? – perguntou ele.
– O vi-vinho que pe-pediu, sen…
– Não pedi nenhum vinho, menina – o homem parecia aborrecido, mas depois sorriu – você é uma das novas. Ainda não dei uma boa olhada nelas. Deixe-me olhar pra você.
Ela se encolheu. O homem se levantou e foi em sua direção, ajoelhando-se diante dela.
– Nossa! Você é muito linda – o homem deslizou as mãos por seus braços e tirou a jarra de suas mãos. Ela colou os braços ao lado do corpo, trêmula – vamos, não precisa ficar com medo. Não vou te machucar.
O homem fedia a suor e sujeira, e passou a mão imunda pelos seus longos cabelos escuros. Ela espiava o movimento pulsante das veias do pescoço dele.
– Veio em boa hora. Estou precisando me distrair.
Ela sentiu a boca dele em seu colo. As mãos percorriam suas costas. Ele fazia barulhos estranhos. Ela amoleceu o corpo para fazê-lo percebê-la inofensiva e baixar a guarda. Uma das porcas mãos do homem começou a subir pela parte interna de sua coxa.
Foi quando ela puxou a minúscula adaga que escondia no sapato e cravou no pescoço dele.
Cortese sequer conseguiu gritar.
Ela observou o sangue jorrar rapidamente da ferida e o homem estrebuchar. Ela tirou a adaga do pescoço dele, e uma enorme poça de sangue começou a ser formar. Em pouco tempo, seus movimentos haviam cessado.
Esperou alguns minutos. Limpou a mão manchada de sangue na parte interna de suas coxas. Cerrou os dentes e arranhou com as próprias unhas algumas das partes mais visíveis de seu corpo. Rasgou o lado de seu vestido. Pegou a jarra de vinho e saiu mancando pela entrada da tenda. Os guardas a olharam, em silêncio, e a deixaram passar.
Devolveu a jarra ao lugar de onde a tinha tirado e afastou-se lentamente do acampamento. Ainda estava perto o suficiente para ouvir os gritos assombrados dos homens de Cortese quando finalmente entraram na tenda. Xena sorriu.
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