Dinares
por DietrichNo dia seguinte, Xena levantou-se e deu alguns passos. Sua perna doía terrivelmente. Xingou todos os deuses dos quais lembrava o nome.
Dirigiu-se, mancando, até onde estava Autolycus. O homem dormia profundamente, com Gabrielle logo ao lado dele. A conquistadora contemplou a estranha cena, confusa por alguns instantes. Agachou-se e deu um peteleco no nariz no homem, que acordou sobressaltado. Gabrielle nem se mexeu.
– Ai! – ele exclamou, esfregando o nariz – Xena!
– Bom dia, raio de sol – disse Xena sorrindo e se erguendo – como passou a noite?
– Hum, muito bem – ele se levantou – não precisava dessa violência.
– Eu sei – disse a mulher – que tal falarmos sobre aquela adaga?
– Deuses, que impaciência. Nem acordei, nem comemos e…
Xena agarrou o braço de Autolycus e apertou com força. Encarou-o, estreitando os olhos.
– Não desconverse, Autolycus – Xena pôs mais pressão em seu aperto – ou vou achar que você mentiu pra mim. Vai me dizer que quase perdi minha perna por um mentiroso de merda?
Gabrielle finalmente abriu os olhos e viu a situação.
– Xena! – a loira se levantou, pegou o bastão e postou-se ao lado de Autolycus – solte-o!
– Assim que ele falar onde está a adaga – rosnou Xena.
– Largue-o agora, Xena – disse Gabrielle, erguendo o bastão.
– Xena! Não precisa disso – Autolycus ofegou, fazendo uma careta de dor – eu sei onde está a adaga. Pelo menos sei onde a deixei há cinco anos, e vou lhe contar. Pode me devolver meu braço?
Xena olhou do homem para Gabrielle, que continuava com o bastão erguido, e vice-versa. Soltou o braço dele.
– Então conte.
Autolycus abriu a boca e fechou novamente, apertando as mãos. Xena o encarou, feroz. Autolycus se virou para olhar Gabrielle, triste.
– Está em uma caverna no antigo território amazona – disse ele, mais para Gabrielle do que para Xena.
Gabrielle baixou o bastão.
– Eu estava roubando uma ambrosia para um cliente. A adaga era a chave para consegui-la. Quando tentei tirar a adaga da pedra para vendê-la também, ela não saiu. Fiquei um tempo tentando removê-la, mas ouvi pessoas se aproximando e fugi. Pretendia voltar para buscá-la, mas fui preso. Provavelmente ainda está lá. Sinto muito, Gabrielle – disse Autolycus.
A loira sorriu e apertou o braço do homem.
– Não tem por que sentir muito. Você ainda sabe como chegar lá?
– Sim, sei exatamente como chegar lá – disse Autolycus.
***
Começaram sua jornada naquele mesmo dia. Quando passaram por um pequeno povoado, Autolycus começou a reclamar que mereciam uma noite numa cama de verdade.
– Por favor – argumentava o homem – uma noitezinha apenas. Eu sequer lembro mais da sensação de um bom colchão.
– Não temos dinheiro, Autolycus. Além do mais, somos todos procurados – retrucou Gabrielle.
– Olhe para esse povoado, ninguém aqui sabe quem somos. Quanto ao dinheiro, isso não é problema. Posso conseguir facilmente uns dinares.
– Acho que ele tem razão – falou Xena – com minha perna como está eu poderia usar umas acomodações melhores.
– Esse é o espírito, grandona. Podemos ir para uma estalagem, tomar algumas coisas, nos divertir, que tal? – sugeriu o rei dos ladrões.
– Já disse que não temos dinheiro – disse Gabrielle – e nada de roubos, Autolycus. Se bem que… – Gabrielle ficou pensativa – acho que tenho uma forma de conseguir algum dinheiro para nós.
– Bem, se for conseguir, consiga rápido, ou faremos do meu jeito – avisou o homem.
– Ali parece agradável – disse Gabrielle, apontando uma estalagem movimentada – vamos até lá.
Os três deixaram os cavalos no estábulo e entraram no local. Era quente, animado e cheirava a comida.
– Sentem-se – disse Gabrielle – vou falar com o estalajadeiro.
Xena e Autolycus se entreolharam e sentaram-se numa mesa. Espiaram curiosos a conversa da loira com o homem atrás do balcão. Parecia uma barganha intensa. Viram Gabrielle apontando para eles dois e voltando a falar com o homem.
– O que diabos essa loirinha está fazendo? – perguntou Xena.
– Acho que tenho uma ideia – disse Autolycus.
Xena olhou para ele.
– Ela te disse? São amiguinhos agora?
Autolycus devolveu o olhar e riu.
– Por que, grandona, está com ciúmes?
– Ah, faça-me o favor.
– Sabe, é uma situação fascinante, Xena. Ela tem todas as razões do mundo para matar você enquanto dorme. Em vez disso, salvou sua vida e está te ajudando a recuperar seu trono.
Xena viu o olhar acusador que o homem lhe lançava.
– Vai me passar sermão, Rei dos Ladrões?
– Não, Xena. Quem sou eu para isso? Mas, mesmo assim, sinto muito que Gabrielle tenha passado por tudo isso. E sinto muito que você tenha sido a responsável.
Xena ficou em silêncio e tamborilou a mesa. Estava acostumada a lidar apenas com fúria, ambição e luxúria. Os demais sentimentos, como o que ela experimentava naquele momento, lhe eram estranhos e desconfortáveis. Encarou Autolycus, que a olhava como se tentasse ler o que se passava em sua cabeça.
– Sabe, Auto – disse Xena, quase para si – acho que também sinto muito.
O homem fez uma expressão de surpresa. Abriu a boca para falar, mas uma voz alta e clara ressoou pelo salão e o distraiu.
– Ouçam-me todos – dizia a voz – pois tenho uma história para contar.
Era Gabrielle. O burburinho do salão arrefeceu e as pessoas se voltaram para ouvi-la.
– Uma história de coragem, façanhas e perigos – continuava a mulher, andando e gesticulando – que começa quando um jovem soldado chamado Leon percebe que sua filha desapareceu…
Em poucos momentos, todas as pessoas ouviam Gabrielle contar sua história e as conversas paralelas desapareceram. As pessoas riam nas partes engraçadas, exaltavam-se nas aventuras e Xena viu lágrimas serem derramadas nas partes mais dramáticas da história.
Estava impressionada. A mulher não era simplesmente boa, era excelente. Xena percebeu-se capturada pela história, vivendo as emoções que ela ditava. Já tivera bardos famosos na corte, e Gabrielle não perdia em nada para eles.
Ao fim da história, as pessoas aplaudiram calorosamente e muitos se levantaram para colocar alguns dinares na bolsa que Gabrielle deixara num banco. A jovem agradecia e cumprimentava as pessoas, respondendo aos elogios que recebia. Depois que o tumulto passou, Gabrielle pegou a bolsa e foi até eles. Jogou a bolsa no meio da mesa, e o barulho das moedas ressoou.
– Disse que não precisava roubar – Gabrielle sorriu, sem conseguir disfarçar o orgulho em sua voz.
Autolycus pegou a bolsa de moedas e sacudiu.
– Ainda assim, demorou uma hora para conseguir um dinheiro que eu conseguiria em dez minutos – zombou o homem.
– Engraçado – riu Gabrielle, sentando-se – bem, temos mais que o suficiente para comer e dormir tranquilos essa noite.
– Vou pegar algo para bebermos – disse Autolycus, indo até o balcão. O silêncio caiu entre as duas mulheres e foi cortado por Xena:
– Uma vez tive Gastacius performando na corte.
Xena sorriu ao ver o tamanho que os olhos da loira ficaram com aquela informação.
– O Gastacius?
– Sim, o Gastacius – disse Xena – mas não gostei da história que ele contou. Alguma bobagem idiota sobre um rei que virou um cervo. Tive vontade de decapitá-lo.
– A história do rei Libarius – Gabrielle sorriu – é, vejo por que ele lhe contaria essa história. Que bardo atrevido.
– Não mais que você – respondeu Xena – sinceramente, gostei mais da sua história.
Gabrielle não respondeu. Ainda não sabia muito bem como reagir quando Xena conversava como uma pessoa quase normal. Que ocasionalmente falava em decapitações.
Nesse momento, Autolycus voltou com as bebidas. Sentou-se, serviu três copos, e ergueu o dele.
– Um brinde à Gabrielle, a Barda Guerreira de Potedia – disse Autolycus – que está pagando honestamente por todas as bebidas esta noite.
– Hum – Gabrielle murmurou em aprovação, enquanto chocavam os copos – Barda Guerreira de Potedia. Não está mal – Gabrielle mencionou algumas histórias que ouvira sobre o rei dos ladrões.
– Queria que a realidade fosse tão heroica quanto essas narrativas – disse Autolycus – a verdade é que quase me afoguei quando roubei essa estátua.
– Não são exatamente heroicas – retrucou Gabrielle – você é um ladrão, Autolycus.
– Auch. Não banque a moralista. Você gosta dessas histórias, confesse.
– Sim, gosto – Gabrielle sorriu – é muito corajoso e ousado.
– Trabalho melhor com elogios, obrigado.
Distraíram-se com os comes e bebes, deixando de notar a figura no outro extremo da estalagem, que não desgrudava os olhos deles.
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