Aberração
por DietrichO homem tremia encolhido junto a uma parede enquanto ouvia os barulhos da luta. Não parava de rezar ao seu deus, esperando que, a qualquer momento, ainda que no último, ele viesse em seu socorro. Afinal, era seu escolhido. Não seria abandonado à própria sorte.
O homem viu, apavorado, a maçaneta da porta começar a se mexer. Só eu tenho a chave, pensava alucinado, ela não tem como entrar, só eu…
O barulho alto de um clique metálico e o ranger da porta fez o homem sentir todo o sangue fugir de seu rosto.
Uma pequena mulher loira entrou no quarto. O homem ficou confuso por um momento.
– Ga… Gab… – gaguejou o homem. Suas palavras sumiram quando uma alta mulher morena apareceu logo atrás da loira e fechou a porta atrás de si.
– Ares – sussurrou o homem – Ares, por favor.
– Ares está morto – falou Xena – eu o matei.
– Isso é impossível – disse Acestes – ele é um deus, isso é…
– É fácil testar – disse Xena, avançando – posso começar a esfolar você bem devagar. Se for mesmo seu escolhido, ele aparecerá para salvá-lo. Se não, ou o abandonou, ou está morto. De qualquer forma, não faz diferença para você não é? Se bem que – olhou para Gabrielle – não é que tinha razão loirinha? Aquela adaga me seria útil agora.
O homem se ajoelhou e começou a derramar lágrimas.
– Xena! – implorava o homem – Xena, ele me obrigou! Eu não queria, eu não queria…
– Oh, pelo amor dos deuses! – Xena desferiu um chute no estômago do homem, que se curvou tremendo e ofegando – não consegue ter honra nem mesmo na morte?
– Tenha misericórdia! – o homem gritava – eu imploro, Xena! Tenha misericórdia!
Xena continuou a chutar o homem encolhido no chão.
– Foi ele! Foi tudo ele! – o homem cuspia e chorava.
Xena abaixou-se, ergueu o homem e jogou-o contra a parede.
– Loirinha, acho melhor sair daqui – disse Xena – isso vai ficar feio.
– Não vou a lugar algum, Xena – respondeu Gabrielle.
– Não diga que não avisei.
Acestes olhou para Gabrielle.
– Gabrielle! Me ajude! Não fui eu! Foi Ares! Eu juro!
– Está dizendo que não permitiu que seus homens violentassem Eris? – perguntou a amazona.
Xena olhou para Gabrielle. A mulher não tinha lhe contado esse fato, nem a escrava. Esmurrou o rosto de Acestes, que choramingou enquanto o sangue escorria do canto de sua boca. A vontade de despedaçar o bastardo era imensa, mas ela se segurou.
– É o que diz, Acestes? – perguntou Gabrielle novamente.
– A culpa é de Xena! – balbuciava Acestes – Xena não permitia…
Gabrielle golpeou as pernas do homem com o cajado, e ele gritou de dor.
– Nada é culpa sua, é isso? – perguntou Xena – você tinha uma vida confortável, Acestes. Eu te dava tudo que queria. Boa comida, uma cama confortável. Só precisava que ficasse quieto. O que Ares lhe ofereceu?
O rosto do homem passou de apavorado para raivoso.
– Você me menosprezava! – rugiu o homem – Me humilhava! Me tratava como um…
– Como o idiota que é?
– É uma camponesa! Uma selvagem! – gritava o homem – eu sou um nobre!
Gabrielle o olhou com desprezo.
– Ares pode ter te dado o poder que não tinha – disse Gabrielle – mas ele só te deu a coragem de mostrar a imundície que já tinha dentro de você.
– Como se atreve! – gritou o homem – eu te dei tudo, Gabrielle! A protegi, cuidei de você!
Xena encostou a ponta da espada no peito do traidor.
– Ares! Ares! Socorro!
– Estou cansada de conversa – rosnou Xena – mas – afastou a espada – tenho melhores usos para você.
***
O burburinho era alto no salão da corte. Os nobres cochichavam entre si, sem entender o chamado urgente de seu louco rei. Os portões de entrada se abriram com estrondo. O barulho de metal arrastado foi ouvido antes de aparecer a imagem de Acestes, amordaçado, algemado nos pulsos e tornozelos. Xena puxava-o por uma corrente em seu pescoço. Gabrielle vinha logo atrás dela e, seguindo as duas, um pequeno bando de soldados.
As exclamações de surpresa percorreram o salão. Algumas pessoas desmaiaram. Vários deles sentiram uma súbita ânsia de passar a mão na própria garganta. Alguns olharam para o portão alarmados, e sentiram o fôlego ir embora quando viram a pequena figura loira trancar o portão atrás deles, bloqueando a rota de fuga mais próxima, e os soldados se postarem nos corredores laterais.
Xena arrastou seu prisioneiro até o palanque do trono e se virou para a plateia assombrada. Golpeou as pernas do homem, que caiu de joelhos. Sorriu para sua audiência, que não produzia o mínimo som.
– Olá.
Apreciou por um momento os rostos apavorados. Era revigorante.
– Ouvi dizer que se divertiram muito em minha ausência – continuou Xena – estou magoada.
Começou a acariciar os cabelos de Acestes, que tremia e olhava para o chão, parecendo em absoluto choque. Um nobre, de repente, levantou-se e dirigiu-se para o meio do salão, enfurecido.
– Não a aceitaremos de volta! – gritou o homem, trêmulo de raiva – vá embora! Vocês – olhou para os outros ao seu redor, que evitavam retribuir o olhar – não podemos permitir que….
– Silêncio! – gritou Xena, e o homem se calou – Gabrielle – chamou a rainha docemente – venha aqui, por gentileza.
Hesitante, Gabrielle subiu até o palanque do trono. Xena afagou mais uma vez os cabelos suados de Acestes.
– Cuide um momento do nosso amigo aqui, por favor? – Xena estendeu a corrente a Gabrielle.
Gabrielle segurou os ferros, sem entender. Xena desceu as escadas e andou até o homem no meio do salão, que parecia absolutamente arrependido de seu impulso.
– Dardanos, meu bom amigo – começou Xena – como vai sua esposa, Melaine?
– Não se atreva a falar dela…
– É verdade que a jogou no calabouço depois que ela veio para minha cama?
Cochichos escandalizados percorreram o salão. O homem ficou vermelho de fúria.
– Aberração! – gritou o homem – prostituta!
– Acho que devia me agradecer. Salvei seu casamento. A pobre mulher me disse que você não estava comparecendo – Xena sacou a espada – e pude perceber pela forma que ela montou em mim que já não sabia o que era uma boa trepada há um bom tempo.
O homem sacou a espada e atacou Xena. Num único golpe, ela cortou metade do pescoço do aristocrata. As pessoas gritaram quando o sangue esguichou sobre elas. O corpo do homem caiu em convulsão, a cabeça pendurada por um naco de carne, o osso visível, até que ele parou de se mexer.
– Acho que vou visitar Melaine ainda hoje – Xena se aproximou de um jovem lorde que estava ali perto e limpou o sangue de sua espada na roupa dele – penso que ela ficará agradecida. O que me diz, rapaz?
O jovem abriu e fechou a boca, mas não saiu nenhum som. Xena deu dois tapinhas leves no rosto dele e sorriu.
– Assim que eu gosto – falou.
A rainha voltou ao palanque do trono.
– Mais alguém tem alguma colocação?
Apenas o barulho de respirações se ouvia.
– Ótimo – continuou Xena – bem, deixe eu dizer-lhes como as coisas vão ser a partir de agora. Ophelia, venha até aqui.
A mulher saiu do meio da pequena multidão de aristocratas e caminhou até a rainha. Baixou a cabeça e fez uma reverência.
– Sua Majestade.
– Me diga, Ophelia, e responda a verdade, a não ser que queira acabar como Dardanos. Você estava de acordo com esse golpe?
A mulher olhou para a rainha. Tremia, mas seu olhar era firme.
– Não, sua majestade – disse a mulher, sem hesitar.
Xena sorriu, satisfeita.
– Imaginei que não. Porque não fez nada, Ophelia?
– Somos poucos, minha senhora.
– Sabe quem está ao meu lado e quem não está?
– Minha senhora, me tiraram minhas terras e as entregaram ao meu cunhado. Me expulsaram de vosso conselho.
– Ah – Xena deu voltas no palanque – terá suas terras de volta, Ophelia. Agora responda o que perguntei.
– Sei, majestade – afirmou a mulher.
– Muito bem – disse Xena – Ophelia, a partir de hoje, é a herdeira desse trono maldito. Você e sua descendência vão governar quando eu morrer.
O queixo da mulher caiu. O salão começou a fervilhar de conversas.
– Minha senhora? – a mulher questionou, cautelosa – mas, certamente… sua majestade é jovem, pode ter filhos e….
– Te pareço o tipo maternal, mulher?
– Minha senhora, isso é sem precedentes.
– Está me dizendo que não quer ser rainha?
A mulher ruborizou.
– Aceito humildemente a incumbência, minha senhora – disse a mulher, fazendo mais uma reverência – mas…
– Assunto encerrado. Pode voltar a seu lugar.
A mulher fez uma reverência e voltou. Várias pessoas se aproximaram dela e começaram a cochichar, algumas dando parabéns. Outros a olhavam escandalizados.
– Agora, ao espetáculo principal.
O silêncio baixou de novo no salão. Xena começou a dar voltas ao redor de Acestes, que não tinha erguido ainda a cabeça. Olhou para o homem aos seus pés. Lembrou de todas as formas com que tinha fantasiado despedaçá-lo, todas as vezes que sua perna doía ou quando via as cicatrizes de seu corpo. Como queria lhe causar dor, como queria vingar-se!
Deveria fazer isso na frente de todos. Injetar pavor em seus súditos. Eles esperavam que ela fizesse isso. Podia ver em seus rostos que aguardavam o espetáculo de sangue. Alguns já tinham coberto o rosto, outros olhavam fixamente em mórbida fascinação.
Xena olhou para Gabrielle. A loira tinha o rosto resignado. Ela também esperava pelo seu arroubo de crueldade. Sentiu um mal-estar.
A rainha grunhiu de frustração. Sentia-se exausta de tantos sentimentos conflitantes. Quando as coisas tinham parado de ser simples?
– Acestes – falou finalmente Xena, encostando a ponta da espada no pescoço do homem – pelo crime de traição está condenado à morte.
As pessoas prenderam a respiração.
– Será enforcado amanhã, ao meio-dia, na praça da cidade – completou Xena.
Acestes levantou os olhos, sem acreditar. As pessoas ofegaram. Gabrielle piscou, confusa.
– A corte está encerrada – disse Xena – tirem esse maldito da minha frente e joguem-no no calabouço.
***
A notícia logo se espalhou. Xena estava de volta. A rainha podia sentir o cheiro do medo por todo o castelo.
Ophelia lhe contou como Acestes começara suas maquinações, e a rainha percebeu que eles não sabiam que era Ares que controlava o homem. Xena percebeu que teria que reestruturar tudo. Mas Ophelia estava muito disposta a manter seu novo posto e a mediar com a nobreza.
Alguns pescoços se uniram ao de Acestes na forca, entre nobres e oficiais. Xena teve cuidado em não culpabilizar os baixões escalões do exército, de modo a manter seu apoio nas bases. Ophelia a ajudou a executar o mínimo de pessoas. Muitos dos traidores imediatamente voltaram atrás, pedindo perdão e se desfazendo em concessões, por medo de perderem suas vidas. Ao final, Xena estava satisfeita com as mortes.
***
Depois de assistir a execução de Acestes, Gabrielle voltou para o castelo e se dirigiu ao quarto que Xena lhe destinara. Ainda não encontrara nenhum dos seus amigos, pois o castelo estava bastante bagunçado em sua reestruturação. Perguntava-se se conseguiria vê-los antes de partir. Começava a arrumar seus pertences quando ouviu batidas na porta.
Abriu e deu de cara com Xena, que usava um dos seus melhores trajes de rainha. Os olhos azuis da mulher imediatamente se dirigiram para a bolsa sobre a cama e ela ergueu uma sobrancelha.
– Está partindo? – perguntou a rainha.
Gabrielle terminou de abrir a porta para a rainha passar e voltou a pôr as coisas na pequena bolsa.
– Sim – respondeu.
– Aonde pretende ir? – perguntou Xena.
– Ainda não sei – disse Gabrielle, pendurando a bolsa em seu ombro – acho que vou simplesmente andar por aí por um tempo. Ver o que acontece. Xena…
– Hum?
– Vai cuidar deles, certo? – perguntou Gabrielle, hesitante.
– Se refere aos escravinhos? Pode apostar, loirinha. Enquanto eu for rainha, eles estarão seguros.
– Então desejo que seja rainha por muito tempo.
Xena sorriu. Gabrielle devolveu o sorriso.
– Não quer… hum – Xena pigarreou – ficar alguns dias? Ver seus amigos e essas coisas.
– Eu gostaria – respondeu Gabrielle – mas não vou. Preciso ir. Pensar bastante.
– Entendo – disse Xena, inquieta e olhando para os lados – entendo. Bem, então, adeus.
– Adeus, Xena.
Gabrielle apertou levemente o ombro da rainha, lhe dirigindo um último sorriso. Atravessou a porta e saiu.
Xena contemplou a passagem vazia por alguns segundos. Um nó apertou sua garganta. Quando saiu para o corredor, não havia mais sinal de Gabrielle.
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