Flores
por DietrichGabrielle deitou-se na confortável cama de seus aposentos. Relaxou com a sensação dos macios lençóis de seda e da almofada em que recostou sua cabeça. Era um alívio depois da longa viagem até Corinto.
Estivera receosa, com medo do que essa viagem poderia lhe causar. Se lhe traria memórias, traumas. Do que sentiria ao ver a rainha. Estava aliviada ao ver que sentia-se tranquila. Além de tudo, a rainha agora parecia ser uma mulher diferente.
Não era apenas as histórias que ouvira no meio do povo, ou as que Jana lhe contara, ou mesmo a cena que vira pessoalmente. Eram os olhos da mulher, a expressão de seu rosto. Gabrielle podia ler que Xena estava diferente. Feroz, ambiciosa e com pendor para a violência, mas sua ânsia animalesca por sangue parecia suavizada.
Perguntou-se o que poderia ter causado aquela transformação. Já vira relances dessa Xena menos cruel quando tinham viajado juntas. Teria sido o fato de quase ter morrido? Isso costumava mudar algumas pessoas.
Bem, não importa o motivo. Já a perdoei, e, se ela está menos cruel, isso traz vantagens para todo o povo. É o bastante.
***
Xena entrou apressada em seus aposentos. Trancou a porta. Sentou-se numa cadeira e acendeu um de seus cigarros. Começou a pensar naquilo em que sempre pensava quando estava sozinha, longe de seus deveres reais.
Gabrielle.
A imagem da mulher a tinha rondado por todo o ano. E sua presença continuava perturbando-a. Vê-la, falar com ela. Tudo isso a deixava desconfortável. Xena odiava sentir-se desconfortável. Ainda mais sem saber o motivo.
Os cabelos dela estavam longos de novo, tinha reparado Xena. Usava tranças, como as amazonas. Os olhos verdes pareciam alegres e calmos. Não carregavam mais o peso das emoções trágicas.
É uma fraca, pensava Xena, consegue perdoar e esquecer.
Levantou-se e começou a dar voltas pelo quarto. Parou ao perceber o gesto nervoso e praguejou. Voltou a sentar-se, continuando a fumar. Sua perna balançava sem parar.
Talvez eu esteja sentindo pena, refletiu, ou alguma culpa pelo que fiz. Já que agora estou com essa coisa de boazinha. Talvez ela esteja certa e eu esteja começando a virar o que finjo ser.
Lembrou de tudo que fizera com Gabrielle desde que destruíra as amazonas. Sentiu raiva. Raiva por sentir algo além de raiva.
Vai acabar morta, Xena. Está se tornando uma idiota.
O cigarro acabou e Xena jogou o toco no chão. Pegou a pequena adaga que agora sempre levava no bolso.
A adaga que Lyceus lhe dera. A mesma com que Gabrielle tentara lhe matar.
A mesma que enfiara na garganta de Cortese.
Todos esses eventos pareciam tão distantes. Tinham mesmo acontecido? Ela tinha matado Cortese? Tinha mesmo carregado o irmão morto nos braços? Tinha torturado Gabrielle?
Apertou a adaga e ela arranhou a palma de sua mão.
Ela tinha feito tudo isso sim, e como tinha. As imagens eram difusas, mas os sentimentos eram claros. O prazer sádico de maltratar a outra mulher. A euforia ao matar Cortese. O vazio devorador ao ver sua família morta. Lembrava. Seu desconforto aumentou ao pensar em tudo aquilo.
Guardou a adaga.
Descobriria o que era aquele mal-estar e acabaria com ele de uma vez por todas.
***
O castelo amanheceu em alvoroço com os preparativos para a festa. Gabrielle passou o dia junto aos escravos, conversando com seus amigos e atualizando-se. Tinha muita gente nova, mas todos a conheciam como a pessoa responsável por trazer Xena de volta. Histórias das mais bizarras de como tinha salvado a vida da mulher se espalhavam por todo o castelo.
– É verdade que desceu ao Tártaro para buscá-la? – perguntou Pérdicas, o jovem cavalariço.
– Felizmente não precisei – riu Gabrielle – mas quer saber? Sua versão é muito melhor que a minha.
Quando o sol começou a se pôr, Gabrielle começou a sentir os primeiros sinais de nervosismo. Apresentava-se já há um tempo, mas sempre sentia um frio da barriga antes de qualquer performance. Além do mais, tratava-se da corte real.
Voltou aos seus aposentos para trocar-se. Quando entrou lá, uma menina a esperava de joelhos.
– Meu nome é Amara, senhora Gabrielle – disse a menina – fui designada para servi-la. A senhora conquistadora pede desculpas pela demora em me enviar. Está tudo muito caótico com os preparativos da festa.
– Oh, olá Amara – disse Gabrielle, desconcertada – por favor, levante-se.
A menina levantou-se.
– Diga a senhora conquistadora que agradeço muito – falou Gabrielle – mas não preciso de ninguém para me servir.
A menina empalideceu.
– Senhora, fiz algo errado? A conquistadora…
Gabrielle se compadeceu do pânico da criança.
– Calma, calma. Não se assuste. Olha, para não criar problemas para você, vou permitir que fique por aqui. Mas não precisa se preocupar em me servir.
A menina sacudiu a cabeça pra cima e pra baixo.
– Sim, senhora.
– Por favor, me chame apenas de Gabrielle, pelo menos quando estivermos sós aqui.
– Sim sen… Gabrielle.
– Sente ali e fique quietinha, certo? Qualquer coisa falo com você.
A menina, confusa, foi até a cadeira e sentou-se. Gabrielle começou a mexer em sua bolsa e tirou suas roupas da noite. Levou as roupas ao banheiro para não trocar-se na frente da menina. Ao voltar viu que a pequena a olhava ansiosamente. Suspirou, resignada.
– Sabe fazer tranças, Amara?
– Sei sim, senhora.
– Preciso que escove meus cabelos e depois que me ajude a trançá-los – disse Gabrielle.
– Sim, senhora! – a menina levantou-se animada e foi até Gabrielle, que sentou-se em frente a penteadeira e deixou a menina escovar seus cabelos. Depois, foi guiando a menina no intricado penteado que queria fazer.
– Minha senhora, nunca vi esse tipo de trançado – comentou a menina – é muito bonito. A senhora inventou?
– Não – contou Gabrielle – é um desenho típico das amazonas.
– Ah, já ouvi falar delas – disse Amara – guerreiras corajosas que enfrentaram a conquistadora, mas acabaram perdendo. Você as conhecia?
– Sim, Amara. As conhecia. Ouve histórias sobre elas?
– Já ouvi algumas. Gosto delas. Queria ser uma amazona – disse a menina.
Gabrielle sorriu. Então suas histórias estavam realmente se espalhando por aí. Seu esforço não estava sendo em vão.
– Daria uma ótima amazona, Amara.
– Obrigada, senhora. Irá contar uma história sobre elas hoje?
– Não – disse Gabrielle – hoje será outra história.
***
Xena contemplava o jovem malabares a sua frente. O rapaz se excedia em movimentos e cambalhotas, lançando discos, bolas e até facas no ar.
A rainha tamborilava os dedos no braço do trono. Odiava malabares. Refletiu se devia baixar um decreto proibindo a existência deles. Imaginou uma das facas caindo e atingindo o olho do rapaz, deixando-o caolho, e sorriu.
O artista, vendo o sorriso de sua rainha, sentiu-se muito satisfeito consigo mesmo. Foi apanhando cada um dos objetos que tinha lançado e guardando em diversas reentrâncias de sua colorida roupa. Quando terminou de recolher todos, fez uma profunda reverência para a rainha, depois para o público, que aplaudiu de pé.
– Fantástico – murmurou a rainha, aplaudindo com as pontas dos dedos.
O cerimonialista levantou-se e abriu o pergaminho.
– E nossa próxima atração, nessa abertura dos Festivais Dionisíacos é a Barda Guerreira de Potedia, Gabrielle!
A sala lotada, cheia de nobres mas também de escravos, servos e camponeses levantou-se e ovacionou. Xena inclinou-se para frente e observou, sentindo seu coração dobrar de velocidade e suas mãos suarem.
Gabrielle entrou pelo portão principal, carregando um buquê de flores. Andava com confiança e altivez, sorria para as pessoas e acenava para seus amigos.
Trajava um simples robe verde-água, sandálias, dois braceletes com temas amazônicos e um par de brincos no mesmo estilo. Seu cabelo trazia um complicado desenho de tranças que Xena nunca tinha visto antes. A rainha recostou-se novamente no trono e enxugou o suor das mãos na própria roupa.
Como está linda, pensou.
A barda caminhou até o palanque e dobrou um joelho diante da rainha, oferecendo-lhe o buquê de flores.
– Obrigada pelo convite, sua Majestade – disse Gabrielle, solene.
Xena estendeu a mão e pegou o buquê. Tudo bem, era uma tradição que os bardos entregassem flores aos seus anfitriões, mas eles costumavam entregar campânulas, que simbolizavam gratidão, e não flores de cerejeira.
A rainha pegou o buquê e sentiu seu perfume. Flores de cerejeira significavam renovação, transformação, mudança. Costumavam aparecer em aniversários e outros rituais de mudança de ciclo e estação. Significavam o começo de uma nova fase na vida de alguém.
– Obrigada, Gabrielle – disse Xena, tão baixinho que Gabrielle teve que ler seus lábios.
– Não há de que, Majestade – respondeu a barda, curvando-se mais uma vez e virando-se para o público. Antes mesmo que a mulher começasse a falar todos já tinham silenciado, ansiosos por sua história.
A voz de Gabrielle ecoou límpida nas paredes do salão, e ela começou sua narração.
0 Comentário