Armadilhas
por Dietrich– Xena! – chamou uma voz irritada no pátio.
A rainha soltou o soldado que imobilizava no chão e buscou quem lhe chamava.
Ophelia atravessava o pátio em direção aos quartéis, parecendo furiosa.
– Desculpem, insetos – disse a rainha – o dever me chama.
Os soldados todos riram, constrangidos. Há algum tempo atrás não sentiriam a liberdade para essa demonstração de cumplicidade, mas já fazia um período que a rainha descia quase todos os dias para treinar alguns minutos com eles. A maioria deles eram jovens rapazes e moças que nunca tiveram a oportunidade de ver a rainha de perto, e todos inchavam de orgulho toda vez que a monarca lhes direcionava essa atenção. Apesar de ela chutar suas bundas todas as vezes.
Xena caminhou até Ophelia.
– O conselho… – começou a regente.
– Já estou indo.
As mulheres começaram a se dirigir ao castelo.
– Está suada, Xena, e desengrenhada.
– Vocês nobres não conseguem pensar em outra coisa?
– Você é uma nobre, Xena. É a rainha.
Xena apenas sorriu e a mulher a olhou irritada.
– Você sabe que as pessoas acham que estou dormindo com você, não é? – comentou Xena – que trepou seu caminho até o trono.
– Seu linguajar é encantador. Não sei como não me apaixonei ainda – disse Ophelia.
– É um desperdício que não tenha preferências mais flexíveis, Ophelia.
– Como se fosse adiantar algo. Nunca a vi passar tanto tempo sem dormir com ninguém.
Xena olhou para a regente, intrigada.
– Está monitorando minha cama, mulher?
– Todo mundo monitora tudo por aqui, Sua Majestade. Mas estou curiosa. Qual o motivo dessa abstinência?
– Simplesmente não estou interessada – resmungou a rainha.
– Isso é difícil de acreditar. Não é conhecida por moderar seus apetites.
– Bem, sou uma nova mulher.
– Ou – disse a regente – está apaixonada.
Xena parou e encarou a mulher. Esta, pela primeira vez, pareceu recuar um pouco ante a ferocidade do olhar da rainha.
– Ou não – consertou Ophelia, receosa.
A rainha voltou a andar, atravessando o portão e caminhado o mais rápido que podia à sala de reuniões. Quando entrou, viu os olhares reprovadores à sua aparência.
Ela não gostava de andar desarrumada e suada. Gostava das roupas da corte, de ostentar apetrechos, de estar limpa. Mas, irritar o conselho às vezes compensava o pequeno sacrifício de se apresentar daquela forma. Imaginou o susto que daria neles se um dia aparecesse em trajes mínimos e se animou.
– Bem – falou Ophelia – podemos começar.
A rainha ouviu com meia atenção, o que era o suficiente para manter as coisas em ordem. Tesouro real contabilizado, safras ricas, fome e miséria reduzidas ao mínimo, nobres contentes com suas terras e lucros. Um reino tranquilo, próspero, bem governado.
Sentia orgulho do seu trabalho, do seu poder, de suas conquistas. Da paz que instaurara nas terras. Mas nada disso tapava o vácuo sufocante que agora parecia persegui-la todas as horas do dia.
As vezes ele arrefecia quando lutava com os soldados, ameaçava as pessoas, cavalgava pelas estradas. Mas, todos os outros momentos, ele estava lá, gritando em seu interior como um cão faminto e barulhento. E, quando ele estava em seu maior volume, ela sentia sua besta interior espreitá-la, o desejo de sangue e morte que ela vinha tentando suavizar parecia arranhar a parte de dentro de sua pele, pedindo ar. E ela não queria mais libertar a besta.
Porque, quando ela aparecia, também aparecia o rosto de Gabrielle. Não o rosto calmo, tranquilo e belo que ela vira recentemente, mas o rosto vazio, dolorido e derrotado que ela lhe dirigira tantas vezes, naqueles primeiros dias.
O rosto que ela forjara na mulher, e que agora lhe doía como um corte em sua carne.
– Xena, suas correspondências – disse Ophelia, lhe entregando três pequenos pergaminhos.
A rainha sorriu. As pessoas às vezes lhe mandavam convites, petições, até mesmo pegadinhas. Ela costumava se divertir com esse momento.
Xena abriu o primeiro pergaminho.
– “Eu vou matá-la, cadela, você matou meu irmão” – a rainha riu – terá que ser mais específico.
O segundo era um lorde que lhe enviava um convite para uma festa em suas terras. A rainha aceitou o convite, revirando os olhos.
Xena piscou várias vezes para ter certeza do que lia no terceiro. Leu e releu.
Estava me perguntando se podia me ensinar a pescar daquele jeito. Já tentei inúmeras vezes e não consegui. Qual o segredo? Os peixes são muito espertos.
Sentiu a boca ficar pegajosa. Ophelia a olhou, preocupada.
– Xena, está bem?
A rainha respirou e recuperou a compostura.
– Tudo maravilhoso, pelo que vejo – disse a rainha – já terminamos por aqui?
– Sim.
– Ótimo. Todos dispensados. Menos você, Ophelia.
Assim que se viu sozinha com a mulher, a rainha falou:
– Ophelia, irei me ausentar por alguns dias.
– Algum problema, Xena?
– Nenhum problema. Estou apenas avisando para que não surte de novo com meu sumiço.
– Quer que prepare uma caravana?
– Irei sozinha.
– Xena, você é a rainha.
– É, eu sei. Volto em alguns dias.
– Quantos?
– Não estou certa.
– Xena, o que está acontecendo?
– Nada que lhe concerne.
– Tudo que lhe concerne me concerne.
Xena fechou os olhos, apertou o pergaminho e tentou conter sua irritação.
– Ophelia – disse Xena – eu, todo dia, confio meu reino a você. E não me arrependi. Poderia, por favor, confiar em mim por uns dias?
A regente arregalou os olhos, surpresa com o tom de voz e o olhar da rainha. Hesitou, depois balançou a cabeça, assentindo.
– Tenha cuidado, Xena – disse a mulher – seja o que for, apenas tenha cuidado. Inventarei uma história para explicar sua ausência.
– Irá cuidar de tudo, Ophelia?
– Sim. Quando voltar, estará tudo como deixou.
– Ótimo. Estou indo.
***
Gabrielle abriu os olhos aos primeiros raios do sol. Esticou-se no cobertor estendido sobre a relva, respirando o delicioso ar matinal antes de se levantar. Após alguns minutos de preguiça, sentou-se e preparou-se para esperar mais um dia.
O sol já ia alto quando ouviu os passos aproximando-se.
A rainha estava lá, taciturna, observando-a. A postura era quase defensiva. Gabrielle sentiu o coração começar a galopar.
– Sabia que não ia tropeçar nos fios – começou Gabrielle – você sabe, não é seguro para uma mulher ficar sozinha na floresta sem algumas armadilhas.
Xena deu mais alguns passos em silêncio. Gabrielle sentiu seu nervosismo aumentar.
– Estava me perguntando se você ia entender que eu estava aqui. Ou se viria. Claro, considerei o tempo até você receber o recado, fiquei com medo de que ele sequer chegasse até você.
A rainha não emitia palavra.
– Foi muito difícil vir? Era melhor eu ter ido? Achei que seria melhor se…
Gabrielle ofegou quando Xena cambaleou até ela e caiu de joelhos aos seus pés. A rainha agarrou-se às suas pernas, e a barda percebeu que a mulher tremia.
– Xena, o que…
Gabrielle tentou fazer a rainha se levantar e olhar pra ela, mas a mulher se recusou, apertando-a com mais força. Sentiu a umidade das lágrimas da morena molharem a sua roupa.
– Gabrielle… eu sinto tanto… – a voz de Xena soou entrecortada.
A mulher de joelhos ergueu os olhos para ela, e Gabrielle viu que seu rosto estava tomado de confusão, angústia e dor.
– Sinto por tê-la feito tanto mal – continuou a rainha – se eu pudesse, se eu tivesse alguma escolha, faria tudo diferente, juro que faria – e escondeu novamente o rosto.
Gabrielle esperou Xena acalmar-se. Fez a rainha se levantar e a abraçou com força.
– Xena, já a perdoei há muito tempo – falou.
– Não quero que me perdoe. Quero apenas que saiba que sinto muito.
– Tem meu perdão mesmo assim.
– Não entendo, Gabrielle – disse a rainha – não entendo.
– Nem eu – respondeu a barda – nem me interessa entender. É apenas o que sinto.
Xena fitou os olhos verdes.
– E o que sente? – perguntou.
Gabrielle aninhou a cabeça no colo da mulher e lá depositou um beijo suave.
– Não sei – falou – o que você sente?
Xena fechou os olhos ao sentir a delicada carícia. Tentou enxergar seu interior tão pouco visitado, e perguntou-se o que sentia.
– Algo diferente de tudo que já senti na vida. Não sei o que é – apertou a mulher em seus braços e sentiu o perfume dos cabelos loiros – quero morrer sempre que penso no quanto a machuquei. Jamais me importei com isso antes.
– Xena?
– O que?
– Vai me ensinar a coisa do peixe?
A rainha sentiu-se finalmente relaxar um pouco.
– Então quer mesmo aprender? Achei que era só um código para me trazer de volta aqui.
– Era, mas realmente quero aprender.
– Não vai acreditar quando eu disser.
– Tente.
A rainha estava maravilhada com o fato de que a mulher não havia lhe soltado ainda. Também não sentia a mínima pressa.
– Bem, você fica muito quieta, e mexe os dedos dentro da água – a rainha gesticulou com os próprios dedos – eles pensam que é isca. Quando eles chegam perto, os soca no rosto e os pega.
Gabrielle a encarou, incrédula.
– Não está falando sério. Você soca os peixes?
– Disse que não acreditaria.
– Hum – Gabrielle refletiu – suponho que terei que testar – a barda afastou-se e começou a caminhar até a lagoa – aula prática?
Xena sorriu.
– Estou bem atrás de você.
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