Cicatrizes
por DietrichXena abriu os olhos e percebeu a suave carícia da respiração de Gabrielle logo acima de seu seio. A loira tinha jogado um braço e uma perna sobre ela, e dormia profundamente.
A rainha começou a sentir ansiosa. Era uma situação nova e ela não sabia qual a forma de agir. Não costumava dormir junto às pessoas com quem se deitava. Deveria acordá-la? Tirá-la de cima de si?
Avaliou a sensação que era ter aquele corpo sobre o dela, e decidiu que não era desagradável. Olhou as longas mechas loiras espalhadas por seu peito e, devagar, passou-as atrás da orelha de Gabrielle. A barda se mexeu e enfiou o rosto em seu pescoço, abraçando-a mais forte, mas continuou adormecida.
A rainha tentou manter-se imóvel. Durante alguns minutos, apenas observou a mulher dormir. Por algum motivo, era uma visão fascinante. Seu rosto relaxado, seu corpo agarrado ao dela, a forma que seus cabelos se esparramavam pelos lençóis.
Xena permitiu-se esse inusitado prazer por algum tempo, até que começou a sentir a pressão das obrigações do dia. Deu um suspiro resignado.
Decidiu não tirar Gabrielle de seu descanso. O mais devagar que pôde, desvencilhou-se das garras da pequena mulher, que franziu a testa em protesto, apenas para relaxar novamente ao apertar a almofada mais próxima.
Silenciosa e furtiva, a rainha saiu do quarto para verificar o estado do seu castelo.
***
Gabrielle mergulhou mais uma vez na água perfumada da banheira. Esfregou seus cabelos e seu corpo. Queria pensar sobre tudo que estava acontecendo, mas era difícil dentro de uma banheira de água quente e com o corpo tão saciado e relaxado.
Levantou-se e saiu da banheira, enxugando o rosto e os cabelos num pano e enrolando-se.
Tinha acabado de se vestir quando batidas soaram na porta. Gabrielle a abriu e se deparou com Amara carregando uma grande bandeja farta em comida.
– Trouxe o seu café da manhã, senhora Gabrielle – disse a menina.
– Obrigada, Amara.
A menina fez menção de entrar, mas Gabrielle a impediu e pegou a bandeja.
– Eu cuido a partir daqui, Amara, obrigada.
A menina a olhou, curiosa, fez uma leve reverência e saiu.
Gabrielle levou a bandeja até a mesa, sentou-se e começou a mordiscar a comida, olhando para o ambiente ao seu redor.
O quarto estava uma bagunça completa e cheirava a sexo.
Os festivais tinham se encerrado na noite anterior. O que significava que agora ela teria que pensar.
Pensar no fato de estar atraída pela mulher que a arruinara. Gostaria de poder culpar as celebrações, mas a verdade é que não podia.
Desde quando se sentia assim? A barda tentava pinçar o momento específico, mas não conseguia.
Mas, quando a mulher se ajoelhara diante dela no salão, soube que não seria capaz de dizer não. Soube também que entrara naquela festa com uma parte de si na expectativa de encontrá-la.
As lembranças dolorosas do passado reverberaram, e ela sentiu um mal-estar.
Era a vergonha completa das amazonas. Além de não poder vingá-las, ainda sucumbia como uma adolescente tola ao toque de sua algoz.
Mordeu os lábios.
O toque dela.
Tudo sobre ela era intoxicante demais.
Seu gosto, seus olhos, seus movimentos, mesmo suas cicatrizes, muitas das quais Gabrielle ajudara a cuidar. Até o olhar feroz e sombrio que as vezes via de relance na expressão de seu rosto logo antes de sentir seu beijo.
A mulher lhe despertava um tipo de desejo violento que nunca tinha experimentado antes. Era como se o passado sangrento e tortuoso que compartilhavam se revelasse na vontade que tinha de consumi-la. Como se o ódio que ela decidira esquecer tocasse partes de sua luxúria que ela jamais se permitira acessar. E Xena capturava esse sentimento e o instigava, o alimentava, testando os limites de sua passionalidade como se quisesse ir sempre além.
Ela se deixara ir, e se percebia sem vontade de voltar.
O que faria agora?
***
Xena caminhava pelo salão de entrada do castelo, observando o vai e vem dos servos que se desdobravam para limpar o ambiente o mais rápido possível. Apesar de gostar das festas, a bagunça e sujeira pós celebração a deixavam mal-humorada. Os escravos sabiam disso, e um esforço homérico era realizado para deixar o local impecável antes que o impetuoso gênio da rainha acabasse descolando a cabeça de alguém de seu pescoço.
– Se esse lugar não estiver limpo ao pôr do sol – gritou a rainha – vou redecorar as paredes com as tripas de vocês.
– Isso não vai deixar tudo ainda mais sujo?
Xena se virou e se deparou com Gabrielle logo atrás dela. A loira carregava sua bolsa de viagem e Xena reparou que, mesmo com os longos cabelos soltos, não era possível esconder as pequenas manchas arroxeadas que marcavam o pescoço e o colo da mulher.
– Está indo embora? – perguntou Xena.
– Não sem meus dinares – respondeu Gabrielle.
– De fato – respondeu Xena – não posso deixar que espalhe por aí que a rainha não paga seus artistas – acenou para um guarda, que correu e lhe fez uma reverência – vá até Damocles e traga o dinheiro de Gabrielle. E seja rápido se não quiser que eu quebre seus dedos.
O rapaz saiu, quase tropeçando nos próprios pés.
– O que há entre você e as ameaças de violência física? – questionou Gabrielle.
– É o que me resta agora que sou uma entediante pacifista – disse Xena, enquanto observava Anteia ralhar com um servo – tenho que canalizar minha energia agressiva de alguma forma.
– Tem certeza que ameaçar as pessoas é a melhor forma de fazer isso?
Xena olhou para Gabrielle, apenas para encontrar inocentes olhos verdes observando-a.
– É uma proposta? – perguntou a rainha.
A barda ruborizou.
– Na verdade, eu não… – Gabrielle pigarreou – estava mais pensando em esportes ou algo assim.
– Sua capacidade de continuar tímida depois de tudo que aconteceu é admirável, Gabrielle.
– Não consigo evitar – disse a loira, resignada.
– Mais admirável ainda é saber que não precisa muito para essa timidez sumir.
Antes que Gabrielle pudesse responder, o rapaz voltava correndo com uma bolsa de dinares balançando na mão.
– Por que demorou tanto? – a rainha esbravejou.
O jovem tremia ao estender a bolsa.
– Perdoe-me, senhora conquistadora, eu…
– Não se justifique rapaz, apenas melhore – a rainha pegou o dinheiro – volte ao seu posto. Manterá seus dedos por hoje.
O rapaz, pálido, voltou a se postar na entrada do salão.
– Ele foi bem rápido, Xena – disse Gabrielle.
– Eu sei – disse a rainha, sorrindo – é um bom soldado.
– Você é cruel.
– Adoro quando me diz coisas bonitas – disse a rainha, estendendo a bolsa para a barda – obrigada pela performance, Gabrielle. Foi… deliciosa.
A barda corou novamente.
– Ah, obrigada – respondeu Gabrielle, recebendo o dinheiro – bem, vou indo.
– A levo até seu cavalo.
– Não precisa, Xena.
– Faço questão.
Gabrielle assentiu e começou a se dirigir até a saída. Xena a acompanhou de perto. Quando passaram em frente aos guardas, Xena parou diante do rapaz que convocara logo antes e o olhou de cima a baixo. Podia ver o suor na testa do jovem.
– Gabrielle, me dê um dinar – disse Xena, estendendo a mão.
A barda tirou uma moeda da bolsa e entregou à Xena, confusa. A rainha deu a moeda ao rapaz.
– Bom trabalho – disse.
– Minha senhora! – o homem perfilou-se e bateu continência – muito grato!
As duas mulheres voltaram a caminhar em direção aos estábulos.
– Um dinar, Xena? – questionou Gabrielle.
– Exige demais de mim, Gabrielle. Reclama que eu ameaço as pessoas e ainda quer que eu saia esbanjando o tesouro real por aí.
Quando chegaram aos estábulos, encontraram Perdicas alimentando os cavalos. O rapaz sorriu ao ver Gabrielle, mas logo empalideceu ao ver quem a acompanhava, e fez uma reverência.
– Oi, Perdicas – cumprimentou Gabrielle – como está Selena?
– Está… – o menino tentou falar – está… está… bem… vou buscá-la senhora!
O menino se virou e correu até o fim do estábulo.
Gabrielle balançou a cabeça ao ver o sorriso perverso no rosto de Xena.
– Você se diverte com isso – disse a barda.
– É muito perceptiva, Gabrielle – ironizou a rainha.
Perdicas voltou puxando a égua. Xena olhou o animal com aprovação.
– É um animal e tanto – comentou a rainha, se aproximando do quadrúpede e acariciando sua crina. Selena, curiosa, farejou o colo da conquistadora.
– Ela gosta de você – disse Gabrielle.
– É a coisa boa sobre os animais. Gostam de você sem motivo. Não enxergam tudo que há pra desgostar.
Gabrielle observou a rainha, que tinha um olhar pensativo enquanto acariciava distraidamente a crina do animal.
– Gostaria que você pudesse ser feliz, Xena – disse Gabrielle.
Xena trincou os dentes e amaldiçoou a capacidade da barda de falar coisas que cortavam direto no fundo de sua alma.
– Esse barco já afundou. Terei que me contentar com ser dona do mundo.
– Não parece suficiente para você – respondeu Gabrielle.
Xena voltou-se para Perdicas, que se escondia nos fundos do estábulo.
– Garoto! Vaza daqui – gritou.
O menino saiu correndo como se uma bacante o perseguisse.
– Bem – disse Gabrielle – adeus.
Xena não respondeu. Ao invés disso, aproximou-se da barda e a beijou, apertando-a contra si.
Gabrielle foi pega de surpresa, mas correspondeu. Sentiu todo seu corpo responder ao contato, sentiu novamente a ânsia sôfrega de tomar tudo que podia da mulher que a beijava. Mas, antes que se perdesse, a rainha se afastou.
– Adeus, Gabrielle.
A barda subiu na égua e partiu.
Xena viu o cavalo se afastar, sem entender a estranha dor que sentia dentro do peito.
0 Comentário