A adaga
por Dietrich– Não me dá sequer uma semana para treiná-la, um absurdo – resmungava Anteia.
A governanta a guiou por uma série de corredores e parou diante de uma das portas. Puxou seu braço e falou de modo urgente:
– Fique ao lado da conquistadora e faça o que ela mandar. Não tenha ideias estúpidas. Mantenha a boca fechada, e diga “sim, senhora.”
– Isso não é contraditório?
A mulher mais velha arregalou os olhos.
– Ou banque a espertinha e veja o que lhe acontece.
Anteia abriu a porta da sala, e a empurrou para dentro. Sentados à uma mesa redonda estavam Xena e seu conselho. A governanta deu as costas e saiu. Gabrielle se postou ao lado da cadeira de espaldar alto da conquistadora.
– Gabrielle, sirva-nos o vinho – ordenou a rainha.
Teve que lutar contra seus braços para começar a encher as taças.
Gabrielle reconhecia alguns dos rostos ali presentes. Os vira de relance quando a conquistadora a expusera na corte. A maioria não deu sinal de notar sua presença, exceto Acestes, que sorriu pra ela, e uma mulher ruiva, que a olhou de cima a baixo e depois questionou a rainha:
– Onde está a outra garota?
– A esquartejei e dei de comer aos porcos – respondeu Xena.
A mulher ruiva engasgou com o vinho, e a conquistadora bebeu da própria taça, bem-humorada.
– Estou brincando, Ophelia. Eris cuidará agora de tarefas mais específicas. A pobre garota estava trabalhando muitos turnos. Resolvi lhe dar um alívio.
– Que generosidade, sua majestade – comentou um dos conselheiros.
– Sou a encarnação da boa vontade – Xena enrolou um pergaminho e abriu outro – Deimos, pode me explicar porque aquele inútil do Prístimo está demorando tanto para voltar? Quero meu exército completo em Corinto, não só a metade.
Gabrielle entreouvia as conversas e observava as pessoas, enquanto abastecia suas taças. Dizia-se que o reino explodia em abundância. Mesmo com os gastos com a campanha contra as amazonas, o tesouro real estava equilibrado. As baixas tinham sido menores que o esperado e não havia necessidade de recrutamento. Podia conceder algumas aposentadorias. Havia arruaceiros causando problemas nas rotas comerciais que ligavam Delfos e Tebas, roubando impostos e provisões. Acestes falou meia dúzia de amenidades e provocou algumas risadas, enquanto a rainha revirava os olhos.
Aos poucos, a conversa se distanciou dos assuntos de estado. Alguns apontavam a solteirice de Ophelia, e a mulher mudava de assunto e lamentava seu falecido esposo. Acestes falava o tempo todo, e Gabrielle pode perceber pelo conteúdo de sua conversa que a função dele era ser um rosto bonito de origem nobre ao lado de Xena. A rainha pouco falava, a não ser para declarar algo violento ou escandaloso que mortificava os membros de seu conselho. Apenas Ophelia parecia não se incomodar com os modos da soberana.
Gabrielle viu que as pernas da rainha começavam a balançar debaixo da mesa e ela não parava de girar o copo em suas mãos. A conversa continuava enquanto a rainha ficava cada vez mais agitada. Até que a mulher bateu o copo com toda a força na mesa. Todos se calaram e viraram para olhá-la.
– Certo, já chega dessa tagarelice. Encerramos. Deem o fora daqui.
Todos se levantaram, fizeram reverências, e saíram.
Xena recostou-se em sua cadeira e suspirou. Continuou bebericando o vinho e analisando pergaminhos.
Gabrielle sentiu seu coração galopar. A conquistadora parecia distraída. A amazona escrutinou a sala com os olhos. As taças eram de cerâmica. Se ela fosse rápida o bastante, poderia transformar uma delas em arma e acabar com aquilo naquele instante.
– Espero que não esteja pensando em me matar – disse Xena.
Gabrielle sentiu seu estômago afundar.
– O que?
– Não tivemos a oportunidade de ver uma a outra lutando – Xena levantou-se da cadeira e recostou-se na mesa, ficando de frente a Gabrielle – mas eu garanto a você, não importa o que estiver planejando, eu vou ver ou ouvir antes que você possa sequer pensar em fazer o menor movimento. Não importa o quão boa você seja, eu sei que sou melhor.
Gabrielle investigou as feições da rainha, procurando os sinais de um blefe. A conquistadora a encarava com a costumeira displicência.
– Convido você a experimentar, no entanto. A qualquer momento. Um arranhão só – Xena ergueu o indicador – mas caso eu consiga impedi-la, você terá que fazer o que eu mandar. Sem reclamar.
– Não é isso o que devo fazer de qualquer forma?
– Sim. Mas consigo pensar em uma ou duas coisas especiais que talvez você resistisse.
– Não estava pensando em matá-la – mentiu Gabrielle.
– Claro que não – Xena tomou mais um gole de sua taça.
– E caso eu consiga um arranhão? – Gabrielle deu um passo à frente e ergueu o queixo – você faria uma coisa que eu pedisse sem reclamar?
O impacto da mão de Xena em seu rosto a fez cambalear. Sentiu gosto de sangue.
– Quem você pensa que é, escrava? – vociferou a conquistadora.
Gabrielle não respondeu. Firmou-se em seus pés e fitou sua captora, seus punhos fechados. A rainha se aproximou, invadindo seu espaço pessoal. Seu olhar azul era animalesco. A altura da morena a intimidou, mas ela não baixou os olhos. Viu a expressão da rainha aos poucos retornar ao estoicismo anterior.
– Certo, loirinha. Vamos brincar assim então. Um arranhão, e farei o que você mandar. É uma aposta. Agora, me siga.
A rainha saiu da sala. Gabrielle permaneceu quieta por uma batida de coração, depois foi atrás dela.
***
– Pode começar a limpar esse lugar – ordenou a rainha quando entraram em seus aposentos.
Gabrielle começou seu trabalho. A conquistadora sentou-se a uma mesa e continuou a ler e rabiscar pergaminhos.
Não vira Xena lutar na guerra, mas ouvira as histórias que os bardos narravam. Cantavam às suas habilidades de combate lendárias, quase sobre-humanas. Gabrielle não sabia o quanto havia de exagero nas narrativas.
Arrumou a cama. Se tentasse sufocá-la com um lençol, a guerreira se desvencilharia. Se a golpeasse com um objeto, não tinha garantia que ela ficaria desacordada. Se entrasse num combate corpo-a-corpo podia ser massacrada. Era uma boa guerreira, mas não excepcional. A melhor chance que tinha era retalhar-lhe o pescoço de forma limpa e rápida, um golpe direto na carótida que não tivesse chances de salvação. Começou a tirar o pó dos móveis. Entre o trabalho e as imagens de assassinato, o dia se consumiu.
– Gabrielle – a voz de Xena arrancou a amazona de seus devaneios – prepare meu banho que já está na hora de encerrar o dia.
A loira começou a fazer o que Anteia havia lhe instruído. Foi ao banheiro da conquistadora, encheu a banheira com água e despejou óleos essenciais. Voltou para o quarto. A rainha entrou no banheiro e fechou a porta.
Gabrielle começou a revistar o quarto, com os movimentos mais silenciosos que era capaz. Encontrou, no fundo de uma gaveta, uma pequena lâmina artesanal, cheia de lascas e marcas. O pequeno punho de madeira parecia ter sido talhado para a mão de uma criança. Tinha a aparência de algo antigo, e o corte estava um pouco cego, mas não o bastante para deixar de atravessar uma camada de pele. Fechou a mão ao redor do cabo. Seu coração acelerou e sentiu o sangue latejar nas orelhas. Sabia que morreria depois de acabar com a conquistadora, mas teria vingado a morte de suas companheiras. Xena, no final, seria derrotada pela nação amazona.
Foi esperar ao lado da porta do banheiro. Começou a controlar a respiração para acalmar seus nervos e ficar consciente de tudo ao seu redor. Ouviu o barulho da conquistadora se banhando. Pôde distinguir o ruído de um corpo saindo da água. O suave roçar de pano que indicava que ela se secava. Passos leves se dirigindo à porta, uma mão girando a maçaneta.
Finalmente reencontraria Ephiny.
Assim que Xena apareceu, desferiu um golpe rápido e preciso no pescoço da conquistadora. Sabia que tinha acertado, que não era possível errar, e experimentou a euforia da vitória antes de ter seu pulso agarrado num fecho forte e seu braço torcido num ângulo doloroso que a fez largar a pequena faca.
Xena a jogou contra a parede. Ela bateu a cabeça na superfície dura e viu tudo preto por alguns segundos. Antes que ela pudesse se recuperar, a conquistadora a ergueu pelo pescoço, sufocando-a. Gabrielle tentou se desvencilhar, mas estava perdendo a consciência. Antes que tudo desaparecesse, Xena a largou e ela desmontou no chão.
A rainha caminhou pelo quarto, até localizar a pequena faca caída no chão.
– Foi um belo golpe. Mas eu imaginava que você ia esperar mais tempo pra tentar – Gabrielle pôde ouvir o ódio por trás da voz melodiosa – se você tivesse procurado um pouco mais, teria encontrado uma bela adaga romana atrás daquele espelho, que deixei lá só pra você. Eu tinha esquecido dessa pequena relíquia aqui.
Gabrielle começava a recuperar a clareza dos pensamentos e se ergueu, apoiando-se na parede. Tossiu, sua garganta doía. Aquela mulher era mais rápida e forte do que qualquer pessoa que já tinha visto.
– Meu irmão fez essa arma e me deu de presente quando eu tinha dez anos. Eu costumava usá-la para talhar madeira. Fazia algumas coisas até bonitas – a conquistadora continuava falando num tom trivial – seria uma grande ironia, até bela, se eu morresse através dela.
Os olhos azuis encontraram os verdes, e Xena sorriu ao ver que, finalmente, eles estavam assustados.
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