Afeição
por DietrichXena tamborilou os dedos sobre a mesa, o cenho franzido, os olhos estreitos. Sentiu uma onda de impaciência e se levantou, começando a caminhar pesadamente pelo salão, suas passadas ecoando no chão de pedra. Pressionou os dedos contra as têmporas, tentando acalmar a mente.
Por algum motivo que não conseguia precisar, estava se sentindo aborrecida com a interrupção que a princesa amazona tinha causado a alguns minutos atrás. Que rudeza, pensou, se alguém a tinha informado que Gabrielle estava trabalhando comigo, ela podia ter ido para a biblioteca esperar, sem precisar invadir o salão. Para que tanta urgência em falar com Gabrielle? Certamente não é algo que não poderia esperar uma reunião com a imperatriz acabar.
Xena girou e deu mais alguns passos.
Não é da minha conta. Tenho mais com o que me preocupar. Callisto, por exemplo.
Ela se sentou novamente, os ombros rígidos. O esquecimento era compaixão? A única pessoa que parecia crer nisso era Gabrielle, e Xena não conseguia desconsiderar suas palavras. Theodorus queria aquilo por motivos completamente pragmáticos. Por algum motivo, a opinião de Gabrielle pesava mais do que deveria. As palavras da garota voltavam à sua mente, a visão de seus olhos compadecidos e dos gestos suaves ao recolher os pergaminhos.
– Às vezes, Gabrielle… você me faz sentir como se eu estivesse errada sobre tudo – sussurrou, sem se dar conta de que tinha falado em voz alta.
Fechou os olhos, tentando se concentrar no problema que tinha para resolver, mas a lembrança daquela mísera interação entre Gabrielle e Terreis, invadia seus pensamentos como uma praga. Não tinha importância, repetiu para si mesma. Xena riu, um riso vazio, sem humor. Sentia como se tivesse sido levada ao limite de sua paciência e não sabia o porquê.
Gabrielle pode ter todos os amantes que quiser. Isso não me diz respeito. Por que estou gastando uma gota de energia com isso? Além do mais, as amazonas estão indo embora hoje.
Deu mais um suspiro aborrecido ao lembrar que precisava se despedir delas formalmente logo após o almoço. Percebeu-se ansiosa para que elas partissem. O acordo tinha sido bom o suficiente para a soberana. Xena prometera respeitar o território amazona e permitir que elas tivessem leis próprias, desde que pudesse convocá-las em tempos de guerra, já que se recusavam a pagar tributos.
Xena cedera o que podia para não se ver numa posição de ter que exterminá-las. Considerava que já causara mal o suficiente para a Nação Amazona por uma vida. Pretendia permitir que elas prosperassem, mas ficaria de olho. Uma força tão independente dentro de seu império não era algo que poderia existir sem sua vigilância atenta. Sorriu ao pensar na pessoa que era sua agente dentro do território amazona. Por algum motivo, aquilo fazia ela sentir-se melhor sobre o desconforto que a cena entre Gabrielle e Terreis tinha lhe causado.
Repassando. Almoço formal com as amazonas. Perguntar a Callisto se ela prefere morrer ou esquecer. Dialogar mais uma vez com Alector sobre os problemas de Arcádia. Convencer Myron a congelar o preço do grão. Na base da espada, se necessário.
Não conseguiu evitar pensar com nostalgia nos tempos em que tinha apenas que pilhar, saquear e matar.
***
Na penumbra do grande salão iluminado por archotes e tochas, Xena observava o grupo de amazonas reunidas. As mulheres trajavam mantos com bordados refinados, adornadas em tons de terra e esmeralda, símbolos da floresta e de suas tradições. Os olhos da imperatriz encontraram os de Melosa, que aguardava em silêncio o momento apropriado para as formalidades.
– Rainha Melosa – Xena inclinou a cabeça, respeitosa, mas mantendo o ar altivo que era sua marca – sua presença honra meu império. Espero que nossa colaboração possa continuar a beneficiar tanto suas terras quanto as minhas.
– Imperatriz – Melosa retribuiu o gesto, com um brilho astuto no olhar – A Nação Amazona valoriza o compromisso que estabelecemos. A paz e o respeito aos nossos territórios são de suprema importância.
Xena assentiu.
– As leis de suas terras serão respeitadas, como prometido – após uma pausa calculada, seus olhos desviaram-se para Terreis, que estava a poucos lugares de Melosa, com o queixo ligeiramente erguido – E eu vejo que sua irmã tem sido… bastante engajada em nossas negociações. Um espírito apaixonado pelo futuro da Nação, imagino.
Terreis arregalou os olhos, pega de surpresa, mas manteve a compostura.
– Tenho certeza de que cada uma de nós faz o possível para fortalecer as relações com o império. Nós, seus súditos, até mesmo seus funcionários, Imperatriz – respondeu, com leveza e com uma mesura respeitosa, embora seus olhos encontrassem os de Xena com intensidade. Xena estreitou os olhos e apertou os lábios de maneira muito sutil, mas perceptível aos olhos atentos de Terreis. Melosa continuou:
– Concordo com o que foi discutido. Mas nosso território não deve ser um campo de recrutamento indiscriminado para guerras imperiais, não é mesmo?
Xena sorriu, astuta.
– Longe de mim querer sobrecarregar suas guerreiras, rainha Melosa. Uma chamada às armas só viria em casos de extrema necessidade. Afinal, temos um pacto de respeito mútuo – Ela repousou o olhar na rainha antes de pousá-lo novamente sobre Terreis, que não desviou o olhar.
Enquanto a conversa continuava sobre aspectos logísticos e trocas comerciais, Xena permitiu-se um breve momento de satisfação. Havia algo revigorante em saber que mesmo entre as amazonas, ela mantinha uma aliada leal – alguém que lhe trazia informações essenciais, embora ela mantivesse essa parte inteiramente para si. Era como uma camada adicional de controle, uma maneira de assegurar que, se necessário, a balança sempre pesaria a seu favor.
– Um brinde à paz, Melosa – propôs Xena. A rainha amazona a imitou, seguida pelas demais.
***
No pátio externo do palácio, onde a caravana das amazonas se preparava para partir, Xena observava as mulheres em suas tarefas rápidas e precisas. Os cavalos estavam sendo selados, as provisões organizadas, e a ordem na movimentação era um reflexo da disciplina característica da Nação Amazona. Em meio àquele turbilhão, os olhos de Xena se mantinham atentos e impassíveis, absorvendo todos os detalhes. No entanto, ela notou quando Terreis se aproximou, o porte firme e o semblante sério, mas sem qualquer traço de hostilidade.
– Imperatriz – Terreis começou, com um leve aceno de cabeça, os olhos sustentando os de Xena de forma penetrante.
Xena ergueu o queixo, oferecendo-lhe um sorriso calculado.
– Terreis. Espero que estejam satisfeitas com a hospitalidade de meu império – disse, com um toque de formalidade que sabia que soava ligeiramente provocativo.
Terreis ignorou a leveza irônica do comentário, sorrindo e balançando a cabeça levemente.
– Agradecemos pela recepção, de fato. Mas eu gostaria de falar de algo… menos político, se me permite.
Xena arqueou uma sobrancelha, surpresa com o tom direto. Permitiu que seu sorriso se alargasse um pouco, fazendo um gesto para que continuasse.
– Gabrielle – Terreis disse, em um tom baixo, mas resoluto.
Xena precisou fazer força para seus olhos não se arregalarem. O impulso se transformou num aperto mal disfarçado em seu punho, mas sua expressão permaneceu inalterada.
– O que tem ela?
– Ela compartilhou comigo a história dela. A história inteira, Imperatriz.
– Oh, é mesmo? – Xena custava em se recordar de uma situação em que se sentisse tão desconfortável – uma tragédia realmente infeliz, na qual eu reconheço minha participação. Espero que ela tenha lhe dito que o império tem feito questão de garantir tudo que ela necessita, ainda que saibamos que nada pode aplacar o peso da perda dela.
Terreis olhou para baixo um minuto, depois ergueu os olhos e se aproximou da imperatriz, chegando a invadir um pouco o espaço pessoal da soberana.
– Acabei criando uma afeição por ela – a amazona falou, com olhos desafiantes – e espero que ela não sofra nenhum constrangimento por isso.
Xena não conseguiu pensar em uma resposta. Sua energia estava concentrada em não ceder à vontade súbita de socar Terreis e declarar guerra à Nação Amazona. A princesa a encarou ainda mais intensamente.
– Espero também que ninguém se aproveite da situação emocional complicada que ela se encontra – reafirmou a jovem ruiva.
Xena pareceu reencontrar as palavras.
– Gabrielle é uma funcionária eficiente e dedicada – respondeu, com frieza calculada – Eu a valorizo. Ela é útil.
Terreis inclinou a cabeça ligeiramente, avaliando a resposta. Seu olhar, no entanto, era cheio de uma preocupação genuína.
– Útil, sim. Mas ela é mais que isso – insistiu Terreis, sem desviar os olhos dos de Xena – É alguém que ainda acredita nas pessoas e no que é bom. Que tenta ver o melhor nas pessoas… talvez até na senhora, Imperatriz. E, embora eu respeite sua liderança e nossas relações diplomáticas, peço que seja cuidadosa com ela.
Xena sentiu sua raiva arrefecer. A preocupação nos olhos da amazona parecia genuína. Mas ainda assim um sabor amargo persistia em sua boca.
– Eu obviamente não conheço Gabrielle como você parece conhecer, Terreis – retrucou a imperatriz – mas eu desconfio que ela é muito mais capaz de cuidar de si mesma do que você julga. Com todo respeito, princesa, eu acho que você a subestima.
Terreis arregalou os olhos.
– Agora – Xena pousou um braço no ombro esquerdo da princesa – junte-se à caravana, volte ao seu território e governe em paz. O império honrará nosso acordo.
Terreis respirou fundo, virou-se e saiu em silêncio. Xena a observou enquanto se afastava, vendo a princesa amazona retomar seu lugar na caravana, ao lado de Melosa. Quando as amazonas enfim partiram, Xena ficou ali, imóvel, encarando o rastro de poeira levantado pelos cavalos.