Amanhã
por Dietrich– Eu concordo com a rainha – tinha dito Ephiny naquele dia.
Todas viraram a cabeça, surpresas. Ephiny concordar com Gabrielle era algo inusitado.
– Então você concorda que as Amazonas são excessivamente tradicionalistas e muitos dos nossos costumes antigos estão nos enfraquecendo? – questionou Piamma, líder de uma das tribos que tinham respondido ao chamado de Gabrielle.
– Sim – Ephiny respondeu, constrangida diante dos olhares que recebia – esses costumes rígidos eram úteis quando éramos tribos esparsas. Precisávamos de regras mais fortes e intolerantes para sobreviver. Mas agora somos uma grande Nação. Penso que precisamos rever nossas leis e tradições, mudar o que for necessário para sermos mais fortes. E Gabrielle – Ephiny olhou para a loira que a ouvia com atenção do outro lado da mesa – é a pessoa mais indicada para repensarmos nossos costumes, justamente por não ter sido criada desde pequena dentro deles.
– Eu concordo com Ephiny – corroborou Tessa, outra das líderes – já estava passando da hora de essa revisão ser feita, e não poderia haver um momento melhor. Gabrielle deve nos guiar, não apenas por ser uma estrangeira de origem, mas porque já pude ver que suas decisões costumam ser sábias e sensatas. Ela que deve guiar nossa Nação nessa fase de reconstrução.
– Ela é estrangeira! – Piamma bateu na mesa – e quase uma criança! Como podem colocar nosso destino nas mãos dela?
– É verdade que sou estrangeira, Piamma – a voz de Gabrielle estava trêmula. Nunca estivera diante de tantas amazonas importantes ao mesmo tempo – mas não para as amazonas. Eu era uma estrangeira em minha própria terra. Eu não pertencia ao lugar em que nasci e tive que abandonar tudo para encontrar o meu lugar. E eu jamais teria descoberto que as amazonas eram esse lugar, se Terreis não tivesse me dado seu direito de casta. Eu nunca vou entender porque ela fez isso por mim, uma completa estranha.
– Você pôs sua vida em risco por ela – Ephiny interrompeu – não pode haver prova maior de que você é uma verdadeira amazona.
Gabrielle ficou ainda mais surpresa com essa afirmação da mulher de cabelos cacheados. Ela costumava ser a primeira a questionar sua legitimidade de rainha.
– Obrigada, Ephiny. Realmente aprecio isso – Gabrielle continuou falando – é verdade também que sou jovem, Piamma. Tão jovem que abandonei as amazonas por um tempo, elas que eram meu lar. Pela sede de ver o mundo. Pura ânsia juvenil, posso afirmar. Mas também fui eu que reergui uma tribo que estava aos pedaços, eu, essa criança estrangeira. Fui eu também que trouxe todas vocês aqui para que possamos lutar pela permanência de nossa identidade e de nossa autonomia frente ao exército dessa que se diz Conquistadora. Eu que liderei a última batalha, e por isso as planícies ao sul ainda nos pertencem. Não tem chance de Xena tentar passar por lá nem tão cedo. Alguém aqui sequer pensou em fazer isso? Ou é mais provável que vocês ficassem confinadas em suas tribos, e elas fossem morrendo, uma a uma, até que não restasse nenhuma de nós?
Piamma ergueu-se num pulo.
– Não vou ouvir essas ofensas vindas de uma pirralha que sequer é amazona! Erua, vamos sair daqui – disse, dirigindo-se a sua regente, mas esta não se ergueu.
– Sinto muito, Piamma. Vou permanecer. E pela conversa que escutei de nossas irmãs, elas também vão apoiar Gabrielle.
– Isso é um disparate!
– É desse disparate que a Nação Amazona precisa nesse momento – disse Erua.
Piamma olhou com desprezo para todas as mulheres que compunham a mesa.
– Vocês, que se dizem amazonas, vão se submeter ao jugo dessa criança. Desejo sorte. Vamos ver quanto tempo dura isso. Erua, a partir de agora você é a líder de nossa tribo, e você tem minha lealdade. Mas saiba que estou seguindo você. Porque sei que, mais cedo ou mais tarde, você vai ouvir a voz da razão e acabar com essa loucura. Me retiro.
Quando a mulher saiu, Gabrielle perguntou:
– Mais alguém pensa como Piamma?
Ninguém se manifestou.
– Vamos encerrar por hoje. Amanhã vamos começar a pensar nossas leis, distribuição de terras, defesas, e tudo que for necessário. Agradeço a todas o voto de confiança.
As amazonas foram se retirando até que restaram apenas Gabrielle e Ephiny. Gabrielle apoiou os cotovelos na mesa e começou a esfregar a testa. Sentiu vontade de chorar, mas segurou as lágrimas.
– Ei – Ephiny chamou – o que houve?
– Nada – disse Gabrielle – acho que tudo foi um pouco demais, só isso.
– Está apenas começando.
– Eu sei.
O silêncio pairou. Gabrielle se perguntava porque Ephiny ainda estava ali. Ansiava pela solidão ou pela presença de alguém mais amigável.
– É impressionante o que fez por nós, Gabrielle – disse Ephiny.
Gabrielle olhou desconfiada para a outra mulher.
– A reunião já acabou, Ephiny. Não precisa mais fazer esses discursos. Sei que tenho muito apoio e você ama demais as amazonas para ir contra mim em público, mas…
– Abra os ouvidos, Gabrielle – continuou Ephiny – eu estava cega. Pelo fato de você ser estrangeira e muito jovem. E pela sua forma de ser também, muito tagarela e metida, não vou mentir para você, nunca menti. Mas, a verdade é que você sempre trouxe boas influências para a tribo. E ainda mais agora, depois da morte de Melosa no ataque da Conquistadora. Você mostrou uma força e uma coragem que a tribo precisava. Estamos unidas hoje graças a você. Obrigada.
Gabrielle estava estupefata com as palavras. Por um momento, não soube como reagir. Depois pigarreou e agradeceu.
– Você está até menos tagarela e metida – disse Ephiny.
– Ainda não tenho certeza se estou sendo insultada ou elogiada.
A mulher de cabelos cacheados pousou a mão no ombro de Gabrielle.
– Elogiada – disse Ephiny, sorrindo – agora, vou deixar você sozinha. Posso ver que está cansada. Amanhã será um dia longo – retirou-se.
Gabrielle refletiu por muito tempo antes de adormecer de cansaço.
***
A maioria das comunidades tinha aceitado Gabrielle como a rainha da Nação Amazona. Cada tribo possuía sua líder própria, e estas agora compunham o conselho que respondia à Gabrielle. Estavam conseguindo criar um código de costumes razoavelmente uniforme, embora surgissem disputas calorosas quando as tradições divergiam muito. O costume da iniciação por assassinato era prevalente, e Gabrielle lutava pra provar que aboli-lo não significava enfraquecer as amazonas.
Ephiny era sua regente. Apesar do senso de humor seco e agressivo da mulher mais velha, o qual Gabrielle nunca deixava sem uma atrevida resposta, elas agora concordavam mais do que divergiam. Às vezes, a rainha mordia os lábios ao pensar, às vezes essa convivência era boa demais. Como o que acontecera naquele noite, no festival das fogueiras do solstício de verão, evento sobre o qual elas tinham escolhido não conversar.
Tudo sobre aquela noite tinha sido uma grande loucura. As altas fogueiras acesas e todos os corpos seminus dançando. Homens haviam sido convidados para as mulheres que gostavam de estar com eles, e para as que desejavam ter filhos. Gabrielle tinha decidido ficar observando à distância, tímida em participar, mas logo tinha sido arrastada para as danças e para a celebração. Quando menos esperava, havia um corpo junto ao seu.
Ela estava embriagada pela fumaça cheia das ervas que ela ainda não tinha aprendido a nomear, pela dança e pelos barulhos da noite, mas isso não a impediu de reconhecer os cabelos longos e enrolados, nem os olhos castanhos que a encararam com ardor antes daquela boca começar a devorar a sua.
Ela tinha sido arrastada para o meio das árvores, e não era a única. Ela podia ouvir ao seu redor o barulho de homens e mulheres que se amavam com toda a liberdade que aquela noite especial oferecia. Estava deitada em uma relva macia, enquanto Ephiny, sim, era Ephiny, seu cérebro já havia registrado esse fato, a tomava. Os sons do seu prazer misturaram-se ao coro dos amantes. Tocou e explorou o corpo da mulher, falando e fazendo coisas que jamais se imaginara capaz de compartilhar com alguém. Mas eram muitas vozes. As vezes ela não sabia se ela tinha pronunciado tais palavras, ou se o grito de prazer que ela escutou tinha saído mesmo da sua garganta.
Num dado momento, as pessoas começaram a correr de volta para as fogueiras. Ephiny a olhou em silêncio, com uma expressão ininteligível. A regente levantou-se e correu para as fogueiras com os outros. Gabrielle aproveitou para esgueirar-se de volta para sua tenda real. Ela sabia que Ephiny teria outras pessoas naquela noite, talvez até homens. Sentiu um mal-estar no estômago. Mas não forte o bastante para ofuscar as outras sensações em seu corpo.
Ephiny podia ter um péssimo gênio, mas era uma amante incrível.
***
A noite das fogueiras se aproximava de novo. Gabrielle encorajava a tradição, achava bonita, além de ajudar na geração de novas amazonas, mas não pretendia participar. Quando os tambores começaram a soar, ela escondeu-se em sua tenda, deitou-se na cama e fechou os olhos.
– Então você não vai participar?
Ephiny estava sentada numa cadeira no canto da tenda. Gabrielle não tinha notado sua presença.
– Não acha hipócrita encorajar uma tradição que você mesma não participa? – alfinetou a regente.
– Pode até ser um pouco – respondeu a mais jovem – mas hoje vou me permitir essa indulgência. Você pode ir lá me representar, afinal, você é a regente. Tenho certeza que vai se divertir – Gabrielle se repreendeu internamente ao perceber o tom enciumado de sua fala.
– Hum. Acho que eu devo ir mesmo – Ephiny levantou-se da cadeira e foi em direção à entrada da tenda. Gabrielle, ressentida, suspirou e fechou os olhos, Abriu-os quando escutou o barulho da entrada da tenda sendo selada por dentro. Voltou-se e viu que Ephiny ainda estava lá e começava a andar em sua direção. A rainha da Nação Amazona começou a suar frio.
Ephiny parou a meio caminho da cama.
– Vem aqui, Gabrielle – o tom de voz não chegava a ser doce, mas era menos seco do que costumava ser.
Gabrielle não soube como conseguiu tal façanha, com o nível de tremor em suas pernas.
– É engraçado ver uma mulher que é tão firme em decisões políticas ficar insegura diante das coisas mais naturais da vida – disse Ephiny.
Gabrielle ficou com raiva de si mesma quando sentiu seu rosto esquentar.
– Tem vantagens e desvantagens em ser uma camponesa – respondeu.
– Sei. Eles tentam matar o fogo que corre naturalmente dentro das pessoas. Mas você não pertence mais a eles. Pertence a mi… às amazonas. E as amazonas celebram a vida, não a tentam sufocar.
– Eu sei – Gabrielle sentia a garganta seca – eu só não quero fazer algo semiembriagada, com minha bunda na grama, no meio de centenas de pessoas, e que vai acabar no dia seguinte.
Ephiny riu e olhou ao redor.
– Estamos sóbrias, sozinhas e acho que seus lençóis são de algodão. Quanto ao dia seguinte – Ephiny chegou mais perto e seu nariz roçou o de Gabrielle – eu estarei aqui, se você estiver.
A jovem rainha beijou a outra mulher. O desejo que ela vinha sufocando queimou seu corpo em segundos. Empurrou a regente até sua cama.
– Por favor, esteja aqui amanhã, Ephiny – ofegou Gabrielle.
– Eu estarei – a regente tinha voz rouca – eu estarei.
0 Comentário