Amigo
por DietrichPassara a noite acordada, contemplando a filha adormecida. Quando viu os primeiros raios da manhã entrarem no quarto, levantou-se e desceu até a sala da casa da irmã. Lila e Hector já estavam lá.
Assim que a irmã a viu, correu e abraçou-a. Hector pôs a mão em seu ombro.
– Gaby – a irmã a soltou – o pessoal da imperatriz veio e cuidou de tudo. Tentei fazer algo, mas…
– Tudo bem, Lila.
– Já está tudo arranjado. Estamos só esperando todo mundo acordar – Lila baixou a voz – Gaby, porque…?
Gabrielle sentiu como se uma faca cortasse seu peito.
– Aquela mulher teve algum tipo de surto – Gabrielle não conseguiu encarar Lila – ela achava que eu estava conspirando contra a imperatriz ou algo assim…
– Deuses! – Lila cobriu a boca com a mão e lágrimas desceram por seus olhos – que absurdo! Como a imperatriz manteve alguém assim do lado dela?
– Vai saber… – Gabrielle sentia-se imunda.
– Algum tipo de perversidade, certamente – Lila sacudiu a cabeça – bem, ela não faz mais que o mínimo cuidado de tudo, então. Não é justo que você e a pobre Rhea – a voz de Lila embargou – paguem pelas bizarrices dessa mulher.
– Lila… – Gabrielle mal estava suportando aquela conversa – Perdicas… se foi. Nada vai trazê-lo de volta. Eu quero apenas…
– Eu sei, eu sei – Lila se compadeceu e abraçou novamente a irmã, passando as mãos de forma consoladora em suas costas – vamos lá fora, ver como estão as coisas. Hector, chama a gente se a Rhea acordar, tá?
O homem assentiu com a cabeça. Lila e Gabrielle saíram. Gabrielle sentiu seu coração saltar quando viu a enorme pira funerária montada no centro da aldeia, o corpo já colocado em cima dela. Algumas poucas pessoas já tinham acordado e se postavam ao redor do local, esperando o funeral. A olhavam, compadecidos. Alguns se aproximaram e lhe deram os pêsames.
Ela meneava automaticamente, os olhos fixos na pira. Não soube dizer quanto tempo ficou ali, mas aos poucos o volume de pessoas aumentou e o sol foi ficando mais forte. Só saiu do estupor quando sentiu uma mãozinha puxando a sua saia. Era Rhea estendendo os braços para ela.
Tentando conter o tremor dos braços, pegou a filha no colo.
– É o papai? – a menina perguntou baixinho.
– Sim, meu amor – Gabrielle ouviu Lila começar a soluçar ao seu lado.
– Ele vai melhorar do machucado?
Gabrielle fez de tudo para não desabar naquele momento.
– Não, meu amor. O papai foi embora.
– Ele vai voltar?
Gabrielle olhou o rosto angustiado da filha e deixou as lágrimas descerem. Passou a mão nos cabelos loiros da menina, num gesto de carinho.
– Não, meu amor. O papai foi para os Campos Elíseos. Agora é só você e a mamãe.
– E sua tia Lila – Lila se aproximou e abraçou as duas – e o tio Hector, e a Sarinha. Estamos todos juntos e vamos ficar juntos, tá Rhea?
– Mas e o papai? – a menina insistiu, mas seu rostinho já se desfazia em angústia.
– Ele foi embora, meu amor – disse Gabrielle novamente.
– Eu quero que ele volte. Eu quero que ele volte! – de repente a menina gritou e começou a chorar – papai! – e desabou aos soluços nos braços da mãe, que só não desabou também porque Lila a amparava – papai!
Gabrielle fechou os olhos encharcados e quis ser transportada para outra realidade. Mas Lila a trouxe de volta, apertando seus ombros e apontando com a cabeça. Gabrielle viu a imperatriz, de rosto sério e soturno, ao lado de dois soldados. Um portava um arco e flecha, o outro uma tocha. Estavam esperando seu aceno.
Gabrielle olhou a imperatriz nos olhos e fez o mínimo dos acenos. A soberana gesticulou para os soldados. Um deles estendeu a tocha, onde o outro acendeu a ponta da flecha e disparou na pira, que imediatamente começou a queimar.
As chamas iniciaram lentamente, mas logo subiram como línguas de destruição, rapidamente envolvendo o corpo. O fogo e o calor se tornaram imensos e Gabrielle teve a sensação que sua vida estava desaparecendo diante de seus olhos.
Após o que pareceram horas, a imperatriz começou a andar na sua direção. Gabrielle se encolheu e olhou para o chão. A mulher parou ao seu lado.
– Lila, posso falar com você?
Lila arregalou os olhos e assentiu com a cabeça. A imperatriz a conduziu até dentro de casa e Gabrielle as acompanhou com os olhos antes de voltar a encarar a pira. Mais uma vez, Gabrielle perdeu a noção do tempo. As pessoas ao redor da pira começaram a dispersar. Alguns lhe apertavam o ombro antes de voltar às suas vidas.
Dolorosamente, o mundo recomeçava, rápido demais, a girar.
– Senhora – um soldado lhe falou, mas a voz dele parecia vir de um outro mundo – não se preocupe, cuidaremos de tudo. Ficaremos aqui até tudo estar arranjado. A imperatriz designou.
Rhea adormecera pelo cansaço do choro em seus braços. Gabrielle acenou para o soldado num gesto automático e começou a se dirigir à casa de Lila. Quando lá entrou, ouviu uma conversa ser interrompida com sua chegada.
Sentados à mesa estavam Lila, Hector, a imperatriz e um homem calvo e baixinho. Este levantou-se imediatamente e apertou sua mão.
– Meus sentimentos, senhora Gabrielle. Meu nome é Salmoneus. Sou o consultor jurídico de Xena. Da Conquistadora, digo.
– Obrigada – Gabrielle não conseguiu disfarçar a frieza em sua voz – Se me permitem, vou levar minha filha para dormir.
– Eu levo, Gabrielle – Hector se levantou – fique aqui. É importante.
Gabrielle cerrou os dentes e entregou Rhea nos braços do tio, que levou a menina até o quarto. A loira não se sentou.
– Então? – perguntou.
– Gabrielle – Salmoneus começou a falar – estava explicando à sua família seus direitos e…
– Eu já disse que não quero nada! – Gabrielle controlou a explosão, para não acordar a filha, mas sua voz saiu aguda e rascante – apenas sumam da minha vida!
Salmoneus arregalou os olhos e fez um “uau” mudo.
– Gaby – a voz de Lila soou baixinho e ela tocou a mão da irmã suavemente – não está sendo razoável.
Gabrielle olhou estupefata para a irmã.
– Não está sugerindo que…?
– É uma oportunidade única na vida de Rhea. Nunca ninguém em Potedia jamais poderia sonhar com algo assim.
– Uma oportunidade que veio do fato de…
– Eu sei – Lila olhou para a irmã – eu sei. Mas negar isso não vai trazer ele de volta. Gaby, você sempre foi a corajosa, a inteligente. Você sabe que é o certo. Por mais horríveis que sejam as circunstâncias, você sabe que é o certo.
– Rhea terá uma educação que não deixará a desejar em nada em relação às garotas da aristocracia – Salmoneus começou a falar baixinho – e a senhora, sua irmã, cunhado e sobrinha…
– Eu e Hector explicamos que não iremos – cortou Lila.
Gabrielle finalmente se sentou ao lado da irmã.
– Lila, como podemos ir se você não for? Não posso deixar você aqui.
– Você sabe a resposta para isso, Gaby – Lila olhou carinhosamente para a irmã – você sempre quis sair daqui. Eu nunca quis.
Gabrielle sacudiu a cabeça, sentindo a exaustão cair sobre ela.
– Essa… educação – questionou, olhando para a imperatriz – vou ter que me separar de Rhea?
– Bem… sim – falou Salmoneus. Gabrielle, no entanto, continuou olhando para a soberana, que não lhe desviava o olhar – ela vai viver e ser cuidada na escola, voltando para Corinto no verão, uma vez ao ano.
Gabrielle sentiu um aperto no peito. Parecia que de uma vez, perdia a filha e o marido. Mais uma vez, Lila pegou sua mão e falou:
– Gaby… você sabe que nunca vai se perdoar se recusar.
A loira, ainda sem desviar os olhos de Xena perguntou, num fio de voz.
– Quando iremos?
– Estávamos pensando – Salmoneus pigarreou, olhando confuso de Gabrielle para Xena – que poderia partir conosco no cortejo, ainda hoje.
– Certo – Gabrielle se levantou – vou preparar minhas coisas e as de Rhea – saiu impetuosamente da casa, deixando para trás um Salmoneus e uma Lila estarrecidos e uma Xena pensativa.
***
Gabrielle não foi até sua casa.
Adentrou a floresta. Os punhos estavam cerrados, o olhar fixo adiante. Agarrou um pedaço qualquer de galho caído e continuou caminhando veloz. Chegou onde pretendia. O velho carvalho onde Perdicas havia pedido sua mão em casamento. Começou a golpeá-lo incessantemente com a madeira que tinha nas mãos, deixando os gritos de tristeza e fúria saírem com a intensidade dos golpes.
Fez isso até seu corpo cair de pura exaustão, e foi aí que o pranto a tomou novamente.
– Perd… – soluçou – eu sei que você pode me ouvir. Por favor, me perdoe. Me perdoe. Me perdoe…
Recostou-se na árvore.
– Eu vou fazer o melhor para Rhea. Eu prometo. Ainda que me corte, que eu sangre. Eu vou fazer o melhor para ela. Eu te juro.
Enxugou as próprias lágrimas.
– Eu traí você – murmurou – não naquele momento… com ela… mas nossa vida inteira. Quem sabe se eu tivesse sido mais corajosa, você não teria encontrado alguém que pudesse te amar inteiramente… e ainda estaria vivo. Me perdoe. Por tudo. Você sempre foi meu melhor amigo. Quem me dera ter podido te amar como você merecia, meu amigo.
Levantou-se, trêmula e começou a retornar para a vila. Não podia se dar ao luxo de ter todo o tempo que queria para sua dor. Rhea precisava dela.