Baú
por DietrichGabrielle ajudou uma Xena cambaleante a entrar na câmara real. Por um momento, deixou-se deslumbrar pela suntuosidade do enorme quarto, que era maior que a maior casa que existia em Potedia. A imperatriz avançou com passos vacilantes até uma enorme poltrona que lá havia e largou-se nela.
– Gabrielle, pode trancar a porta?
Um silêncio se estabeleceu e Xena percebeu a hesitação da loira. Mesmo seu cérebro ébrio conseguiu entender.
– Tudo bem. Não precisa trancar – reformulou a imperatriz.
Gabrielle respirou fundo, foi até a porta e a trancou. Quando a loira voltou para perto dela, Xena a pegou pela mão.
– Gabrielle, não precisa ficar aqui. Eu entendo que…
Gabrielle a interrompeu com um meneio de cabeça.
– Não está com medo? – a imperatriz indagou.
– Sim – Gabrielle respondeu com honestidade.
– Então porque não se afasta?
– É uma ótima pergunta – disse Gabrielle, pegando um banquinho e sentando-se ao lado de Xena.
Xena riu, sem humor.
– Você é maluca.
– Sempre ouvi isso.
Xena fechou os olhos e sentiu vontade de tomar mais um gole de vinho. Queria desesperadamente apagar a própria consciência, mas a presença de Gabrielle ao lado dela pesava em suas decisões. Hesitante, entregou a garrafa à Gabrielle.
– Tira isso de perto de mim – murmurou.
Gabrielle pegou a garrafa e a levou para uma cômoda que ficava do lado oposto do quarto, depois voltou a acomodar-se ao lado de Xena.
– Tem algo que eu posso fazer por você? – perguntou a loira.
– Me dar um soco e me deixar inconsciente.
– Não me tente.
Xena riu mais uma vez.
– Ah, Gabrielle. Só você para me fazer rir no meio dessa tempestade de merda.
– Não vão notar sua ausência na festa?
– Com toda certeza. Mas eu deixei Vidalus e Theodorus de sobreaviso – a voz de Xena era pastosa e arrastada – que eu poderia ter que me ausentar por indisposição. E os centauros… – ela fez um gesto mole com a mão – não vão se importar. Talvez os babacas da corte se importem mais com minha falta de boas maneiras, mas eu quero… que eles… se fodam.
Xena fechou os olhos e o silêncio pairou sobre elas. Gabrielle a observou atentamente, e após um tempo, achou que a imperatriz tinha adormecido sob o efeito do álcool. Perguntou-se se devia acordá-la e levá-la até a cama.
– Xena – chamou baixinho.
– Estou aqui – ouviu o murmúrio da morena.
– Não acha que é melhor ir para a cama?
– Nossa, Gabrielle. Achei que tínhamos combinado de ir devagar – Xena sorriu, mas sem ainda abrir os olhos.
Gabrielle sentiu o sangue subir ao rosto, e balançou a cabeça com um sorriso.
– Apenas acho que você ficaria mais confortável.
– Você está completamente correta. Mas não quero me mover.
– Vem, eu te ajudo.
Xena resmungou, mas abriu os olhos pela metade e pegou a mão que Gabrielle estendia. Apoiada na mulher menor, foi até a cama e colapsou nela de bruços. Gabrielle balançou a cabeça.
– Vou tirar suas sandálias, certo? – avisou Gabrielle.
Xena respondeu com um murmúrio. Gabrielle sentou-se na beira da cama e começou a desfazer os nós da sandália romana que a imperatriz usava. Empurrou o corpo de Xena, fazendo a imperatriz se virar e ficar de frente. A morena tinha os olhos fechados e um sorriso mole no rosto.
– Você é selvagem – murmurou a soberana.
– E você está delirando – respondeu Gabrielle, desfazendo alguns nós do vestido cheio de camadas que a imperatriz usava e deixando-a apenas com a roupa de baixo. Imediatamente pegou um lençol e a cobriu.
– Quem me dera… – Xena riu – delirar… isso me lembra uns cogumelos que comi uma vez no caminho até Chin… e lá mesmo… eles tinham muitas coisas interessantes… para quem queria realmente esquecer do mundo…
– Foi até Chin?
– Sim – Xena continuava com seu discurso semi consciente – e além… Japa… já estive em todo lugar.
– Deve ter sido fascinante.
– Foi sangrento – respondeu a soberana – mas certamente fascinante. Eu e Borias…
A imperatriz se calou.
– Borias? – questionou Gabrielle.
– Um… senhor da guerra… costumávamos cavalgar juntos. Está morto. Mais um morto. E não fui eu que o matei. Para variar.
Os olhos de Xena se abriram e ela pareceu acordar um pouco. Voltou os olhos para Gabrielle.
– Gabrielle, saia daqui. Não quero te incomodar com meus devaneios bebuns.
– Você quer que eu vá?
A mulher ficou em silêncio por um tempo.
– Não, não quero que vá.
– Então vou ficar aqui – Gabrielle tirou as próprias sandálias e sentou-se na cama de forma mais cômoda, encostando-se na cabeceira. Num impulso que não conseguiu controlar, começou a acariciar, de forma hesitante, os longos cabelos de Xena.
Xena sentiu seu coração acelerar ao ponto de alterar sua respiração. Perguntou-se se tinha dormido e estava tendo algum tipo de sonho. Mas não, era real. Gabrielle estava ali, ao lado dela.
– Gabrielle, não sei se já te contaram – Xena falou, a voz um pouco mais firme – mas eu costumava ser uma vadia filha da puta e homicida.
– Já ouvi algo sobre isso – respondeu Gabrielle, continuando sua carícia, sua mão com um toque de tremor.
– Não sei se você reparou… naquele garoto ao lado de Kaleipus.
– Reparei – Gabrielle tentou lembrar – Solan, não é? Ele parece que não gosta muito de você.
– E ele está correto em não gostar – Xena continuou, a voz quase inaudível – eu lhe dei à luz… e o entreguei nas mãos de Kaleipus, poucas horas depois.
A mão de Gabrielle estancou em sua carícia e ela olhou para Xena com os olhos arregalados.
– Ele é seu filho?
– Não tenho o direito de chamá-lo assim – Xena continuou – Kaleipus o criou.
Gabrielle permaneceu em silêncio. Suas mãos continuavam paradas.
– Você tem uma filha. Agora deve pensar o pior de mim.
O silêncio de Gabrielle prosseguia, o que Xena interpretou como um sim. Sorriu com amargura. Sabia que qualquer resquício de simpatia que Gabrielle poderia ter por ela era algo que logo sucumbiria ante o peso da pessoa que ela realmente era.
– Se eu o tivesse mantido… – Xena continuou – ele se tornaria um alvo para todos que me odeiam. Veria coisas que uma criança não deve ver. Se tornaria como eu.
– Ele… ele sabe? – Gabrielle falou, a voz entrecortada.
Xena ergueu os olhos e franziu a testa ao ver os olhos insondáveis da loira.
– Não. E nunca vai saber.
– Hoje é a primeira vez que o vê desde que o deixou?
– Sim.
Gabrielle se inclinou e depositou um beijo prolongado na testa de Xena, enquanto suas mãos voltavam, hesitantes, a percorrer os cabelos da morena.
– Sinto muito, Xena – a loira sussurrou, ainda com o rosto encostado no dela – sinto muito.
– Gabrielle – a voz de Xena endureceu – pare de sentir muito por mim.
– Por que?
– Por que não faz sentido. É ilógico. Irracional. Eu não mereço nenhum tipo de sentimento. Você não ouviu o que eu acabei de contar?
– Ouvi – Gabrielle levantou o rosto – e se eu pudesse, faria algo para acalmar sua dor.
– Minha dor? E quanto a dor de Solan? E a dor de Callisto? E todas as pessoas que matei? E a sua dor, Gabrielle?
– Solan está vivo. Então ainda pode fazer algo sobre ele. Ainda pode estar na vida dele. As pessoas mortas… não podem ser ressuscitadas. As minhas dores… eu tenho muitas. E uma parte delas passa quando estou com você.
Xena fechou os olhos. Queria contestar, mas estava perdendo as forças. Sem resistir, entregou-se a carícia que Gabrielle fazia em seus cabelos, e quando menos esperava, caiu em um sono profundo.
***
Xena despertou com um pulsar incômodo na cabeça, cortesia de sua ressaca, e com a sensação quente e serena de um peso ao seu lado. Ao abrir os olhos, encontrou Gabrielle dormindo profundamente, seu rosto pacífico e seus cabelos dourados espalhados sobre o travesseiro. Por um instante, Xena esqueceu-se de onde estava e de tudo ao seu redor, absorvendo apenas a presença daquela mulher ao seu lado.
Por um momento, deixou-se ficar ali, apenas apreciando a beleza daquela mulher adormecida. Não lembrava de ter visto alguma vez aquele rosto tão sereno e relaxado. Ela respirava profunda e pausadamente.
As pálpebras começaram a se mover, e a loira piscou lentamente enquanto abria os olhos. Por um momento pareceu completamente confusa, depois arregalou os olhos e se ergueu subitamente, sentando-se na cama.
– Xena, desculpe, acabei pegando no sono e…
– Ei, calma. Eu que tenho que me desculpar por ter feito você servir de babá de uma velha bêbada e atormentada. Deita aqui.
Relutante, e um pouco corada, Gabrielle se deitou novamente, dessa vez um pouco mais distante de Xena.
– Como você está se sentindo? – perguntou a loira.
– Como se tivesse sido pisoteada por uma manada de centauros.
Gabrielle sorriu, mas seus olhos retinham um ar de seriedade. Sabia que a noite anterior tinha sido bastante complicada. Ainda assim, uma parte de sua mente não conseguiu deixar de apreciar a visão incrível que era Xena deitada, com uma cara de sono e os longuíssimos cabelos negros espalhados desalinhados pelos travesseiros e lençóis. Algo deve ter transparecido em seu rosto, pois Xena a encarou com uma sobrancelha levantada e um olhar maroto.
– Sabe – a imperatriz comentou – não era assim que eu planejava uma noite com você em uma cama.
Gabrielle sentiu o calor em seu rosto e quase desviou os olhos, mas criou coragem e sustentou o olhar da outra mulher.
– Nem eu – sorriu.
Xena sentiu o coração ribombar no peito e já preparava uma resposta quando batidas soaram na porta.
– Oh, merda – falou – é a maldita mulher com o meu banho.
– O que eu faço? – Gabrielle perguntou, pressurosa.
A soberana deu de ombros.
– Não sei. Se esconde num baú?
– Xena!
– Calma, calma. Vou pedir que ela deixe o balde na porta e não entre, tá? Já fiz isso outras vezes.
A imperatriz gritou as instruções. Ouviram a mulher concordar e os barulhos dos passos se afastando.
– O que quer dizer com “já fiz isso outras vezes”?
– Tem certeza que quer saber?
– Na verdade, acho melhor não – Gabrielle finalmente sentou, seus pés tocando o chão, e esfregou os olhos – suponho que é hora de levantar e começar o dia.
– Suponho – resmungou a imperatriz, aborrecida por ter aquele momento interrompido pelas batidas na porta.
– E é melhor tomar logo esse banho. Você está fedendo a vinho.
Xena arregalou os olhos, sem acreditar no que tinha acabado de ouvir.