Dor
por DietrichGabrielle esperou Xena adormecer para vasculhar a bolsa com os itens que comprara. Tirou de lá um pergaminho, um tinteiro e uma pena. Desenrolou a folha, sentindo seus dedos travados, desacostumados. Uma dor de saudade e reencontro invadiu seu coração.
Deslizou os dedos lentamente pela superfície amarelada, tão estranha, e, ao mesmo tempo, tão familiar. Tentou ver as imagens e palavras projetarem-se na tela vazia, mas as frases pareciam estar logo atrás de uma colina que ela via, mas não conseguia ultrapassar.
Mergulhou a pena no tinteiro e riscou o pergaminho devagar. O barulho pareceu ecoar alto na noite calada. Olhou para Xena, receosa. Ela sequer se mexera.
Fechou os olhos e tentou se ver naquele dia longínquo e distante em que se tornara amazona. As imagens apareceram, nebulosas. Fazia tanto tempo que refletia se não estava inventando lembranças.
– Canto à Terreis – sussurrou – a amazona que mudou minha vida para sempre.
Escreveu durante algumas horas. Corrigiu-se, frustrou-se. Achou sua escrita torpe. A saudade a dominou mais uma vez e chorou. Mas, ao lado da saudade, a dor perdia espaço e crescia o acalanto do amor. Preencheu-se com as lembranças e com a felicidade de ter conhecido aquelas mulheres destemidas. A pena voltou a deslizar, apressada, por mais um pergaminho.
– As amo – murmurou – as amarei para sempre.
Dormiu, aliviada.
***
Xena acordou com a fisgada de dor na sua perna esquerda. Praguejou baixinho. As dores e a fraqueza do seu corpo a incomodavam mais do que era capaz de admitir.
Além de ter perdido parte da força em alguns dos seus membros, seu lado vaidoso estava perturbado com a questão estética. Tinha inúmeras cicatrizes antigas, mas as marcas das mordidas dos animais deixara depressões na sua pele que perturbavam sua autopercepção. Toda vez que via os estragos que marcavam seu corpo, acalmava sua raiva imaginando como causaria pior dor e estrago no corpo de Acestes.
Ergueu-se, ignorando a dor na perna. Não muito longe, Gabrielle ressonava sobre o cobertor no chão. Observou por uns momentos a mulher adormecida. O rosto dela estava tranquilo e relaxado, como Xena jamais o vira. Sempre que o contemplava enxergava raiva, despeito, desconfiança ou tristeza. Descobriu que lhe agradava as feições de Gabrielle naquele diferente estado emocional.
Ficou parada em silêncio por um tempo, pois sabia que na hora que acordasse a mulher, veria novamente a expressão animosa que ela costumava lhe dirigir. Queria adiar um pouco aquele momento. Embora se divertisse implicando com a mulher, estava ficando um pouco cansada de lidar com o peso do nefasto passado entre elas o tempo todo.
Talvez devesse simplesmente matá-la e seguir sozinha. Aí não teria que aturá-la.
Tocou a adaga em sua cintura. Visualizou a lâmina penetrando o peito da mulher. O olhar de susto e dor que ela lhe dirigiria antes de sangrar e morrer.
A imagem não lhe trouxe nenhum prazer e não sentiu vontade alguma de fazê-lo.
Tirou a mão do cabo da adaga. Andou até a mulher, agachou-se e puxou bruscamente o cobertor que a cobria. Gabrielle ergueu-se, sobressaltada, já de arma na mão.
– Ei! Vá com calma, loirinha. O sol já saiu e temos um longo caminho a percorrer.
– Por que fez isso?! – Gabrielle baixou a adaga e pôs a mão no peito acelerado – quase ataquei você!
– Por que é divertido – Xena levantou-se.
– Oh, pelos deuses! Quantos anos você tem?!
– Essa é uma pergunta indelicada, Gabrielle.
Gabrielle grunhiu, irritada. Xena pegou os restos de comida da noite anterior, algumas frutas que tinha apanhado e levou até a outra mulher.
– Quanto tempo até a prisão? – Gabrielle pegou uma fruta.
– Vamos cavalgar o dia inteiro – Xena fez uma careta, antecipando como ficaria sua perna ao final dessa cavalgada – parar apenas para comer. Acampamos e depois é mais uma metade de um dia de viagem até nosso destino.
– E como isso vai nos ajudar a matar Ares mesmo?
– Tenho um amigo nessa prisão que pode ter informações preciosas.
– Amigos? Você? – Gabrielle deu mais uma mordida na fruta.
Xena olhou de soslaio para a mulher.
– Engraçada. Bem, talvez sócio ocasional seja uma melhor descrição. O nome dele é Autolycus.
Gabrielle olhou estupefata para Xena.
– Autolycus, o rei dos ladrões?
– Esse mesmo. O conhece?
– Já ouvi e contei histórias sobre ele.
– Contou histórias sobre ele? Como assim?
– Eu, hum – Gabrielle hesitou um momento. Xena ergueu uma sobrancelha, indagadora – eu costumava ser uma barda antes de ir viver com as amazonas.
– Sério? – disse Xena – estou surpresa. Era boa?
– Já ganhei uma competição na academia de Atenas – Gabrielle não conseguiu esconder uma pontinha de vaidade em sua voz. Xena achou graça no cintilar esnobe que brilhou nos olhos verdes.
– Então, barda. Terá uma ótima história para contar em breve.
***
Ao pico do sol do dia seguinte, já conseguiam visualizar a cidade. Xena parou o cavalo e desceu. Gabrielle notou que a mulher estava pálida.
– Xena, o que você tem?
A morena resmungou. Estava lutando o máximo que podia para manter o rosto impassível, mas pelo visto não conseguira. Tentou ignorar a pergunta, mas a loira desceu do cavalo e a repetiu, num tom que não deixava margem para fuga.
– É minha maldita perna – reclamou Xena – está realmente doendo.
– Deixe-me dar uma olhada nela.
– Isso é desnecessário – negou Xena.
– Se vamos invadir uma prisão juntas, tem que estar em boa forma. Ou podemos as duas acabar mortas – retrucou Gabrielle – sente-se e me deixe olhar.
Contrariada, Xena recuou e sentou-se num tronco caído ali perto. Gabrielle agachou-se ao seu lado e levantou a perna da calça. Examinou e não viu sinais de infecção, apenas a extravagante cicatriz onde o músculo fora perfurado. Apalpou cuidadosamente ao redor da marca, e viu que Xena cerrava os dentes, tentando conter a dor. O músculo da região estava quente e enrijecido.
– Não está infeccionado – disse Gabrielle – está apenas fazendo muito esforço para compensar o músculo que foi perdido. Não há muito que fazer, além de esperar o músculo se fortalecer. Mas podemos encontrar algo para sua dor na floresta.
– E ficar lenta igual a uma carroça de carga e levar uma espada nas costas? – Xena baixou a perna da calça – não, obrigada. Prefiro a dor.
– Pode tomar apenas um pouco, para dar uma aliviada. A dor também a deixa vulnerável.
– Não é nada que um descanso não resolva. Pegamos Autolycus e depois tiro um dia inteiro de folga para esse pedaço inútil de carne, que tal?
– Tenho uma ideia melhor. Você fica aqui e descansa o resto do dia, enquanto eu vou na cidade e colho o máximo de informações que puder sobre a prisão. Volto logo ao cair da noite e, se estiver melhor, vemos como invadimos ainda hoje, quando a cidade estiver dormindo.
– Que garantia tenho que você sabe o que está fazendo?
Gabrielle lhe lançou um olhar impaciente.
– Me considera burra, Xena?
Xena negou com a cabeça, a contragosto.
– Disse que eu teria que confiar em você durante essa jornada. Terá que fazer o mesmo em relação a mim – disse Gabrielle.
Xena quis levantar-se para protestar, mas sua perna mandou-lhe uma rajada de dor que a fez praguejar alto e sentar-se novamente.
– Acho que não terei opção – disse a morena – minha pata chegou no limite.
– Pois bem – disse Gabrielle – espere aqui e descanse o máximo que puder.
Xena fez um último esforço para levantar e encontrar um lugar melhor para descansar. Sabia o quanto seria torturante passar tanto tempo quieta, dado sua natureza impaciente. Mas no momento não tinha muita escolha.
Gabrielle pegou um pouco de terra do chão e se sujou. Pegou um dos cobertores, envolveu o corpo, e começou a andar apoiada no cajado. Quem a visse de longe a tomaria por uma velha ou uma pedinte. Começou a caminhar o que restava de estrada em direção à cidade.
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