Encontro
por DietrichGabrielle bateu à porta da casa de Joxer. O homem a abriu, cumprimentando-a com um largo sorriso. Era raro que ela tivesse um dia de folga, e estava decidida a aproveitar cada minuto. A casa do amigo era simples, mas acolhedora, com móveis rústicos e o cheiro reconfortante de sopa de legumes no ar.
– Espero que goste de sopa de legumes, Gabrielle – comentou Joxer, enquanto mexia a panela.
Gabrielle sorriu, tentando disfarçar sua melancolia. Acomodou-se em uma cadeira perto da janela, onde o sol da tarde entrava junto com uma brisa agradável, que a trouxe um momento de conforto.
– Obrigada por me convidar para vir aqui, Jox. Como foi sua semana?
Joxer sentou-se à mesa, com um sorriso de satisfação por Gabrielle ter aceitado seu convite. Às vezes tinha a percepção amarga que Gabrielle o enxergava apenas como um amigo, mas ainda assim apreciava sua companhia. Ele pegou duas tigelas de cerâmica e as encheu com a sopa que acabara de preparar, passando uma para ela.
– Ah, foi boa, você sabe, nada demais. Sempre a mesma coisa. Sou faz-tudo, como você sabe. Alguns dias nos estábulos, outros na limpeza do castelo, entrega de recados – ele deu uma piscadela – e, claro, alguns dias para me aperfeiçoar na arte culinária.
Gabrielle levantou a colher para provar a sopa, que estava realmente boa.
– Eu sabia que você tinha algum talento escondido, Joxer. Não sabia que era na cozinha.
A conversa fluiu com facilidade. Joxer parecia encantado em ter a atenção plena de Gabrielle. Eles falaram sobre trivialidades, riram das fofocas da corte e até se divertiram com algumas piadas que ele inventava sobre os nobres, que talvez lhe rendessem um dia em uma cela caso caíssem em ouvidos errados.
No entanto, após algum tempo, uma batida na porta interrompeu o momento tranquilo. Joxer levantou-se, desconcertado, e foi até a entrada, encontrando um dos servos de Xena.
– Senhora Gabrielle, a Imperatriz pede que compareça à biblioteca imediatamente. Há uma questão que precisa de sua atenção – o servo parecia apressado, com um olhar de quem sabia que não havia espaço para recusa.
Gabrielle suspirou, sentindo-se frustrada. Ela olhou para Joxer, que a observava com um sorriso que logo se transformou em um semblante compreensivo, mas um pouco desapontado.
– Eu sabia que não iria durar – disse ele com um sorriso irônico – mas, não se preocupe, Gabrielle. Sei como é. Xena precisa de você.
Gabrielle se levantou lentamente. Ela olhou para Joxer, os olhos revelando uma mistura de culpa e desconcerto.
– Sinto muito, Joxer. Eu adoraria ficar mais tempo aqui. Você sabe que esses dias de folga são raros… – ela hesitou, olhando para a porta – mas, vou aproveitar qualquer momento que sobrar para voltar. Não se preocupe, prometo.
Joxer balançou a cabeça, um olhar compreensivo em seus olhos.
– Eu entendo. Xena é quem manda. Não se pode fazer nada. Vai lá, Gabrielle. Eu fico bem.
***
Gabrielle entrou na biblioteca, respirando fundo. Apesar da tristeza de ter o dia de folga interrompido, não podia negar que o ambiente lhe trazia paz. O aroma familiar dos pergaminhos e o silêncio acolhedor das estantes altas a fizeram sentir-se ligeiramente mais tranquila, mas não por muito tempo.
Arregalou os olhos quando percebeu que quem a esperava lá era Terreis. A princesa amazona estava parada diante de uma mesa, cuidadosamente desenrolando um dos rolos de pergaminho.
Gabrielle parou por um momento, observando Terreis. O coração lhe deu um solavanco ao ver a mulher que ainda mexia com seus sentimentos. A lembrança do beijo que haviam trocado, o calor de sua proximidade… Tudo isso voltou de uma vez só, deixando Gabrielle com um misto de alegria e confusão.
– Terreis… – Gabrielle finalmente disse, sua voz suave, mas com um tom que traiu a emoção que tentava esconder.
A princesa levantou os olhos imediatamente, um sorriso discreto, mas caloroso, iluminando seu rosto. Seus olhos encontraram os de Gabrielle, e por um instante, parecia que nada mais importava.
– Gabrielle – Terreis respondeu com uma voz suave, mas cheia de significado. Ela deu um passo à frente, como se a distância entre elas fosse uma barreira que ela desejava quebrar.
Gabrielle venceu a breve paralisia que tinha sentido e lembrou que, apesar dos seus sentimentos, Terreis provavelmente estava ali cumprindo alguma obrigação, de modo que tentou manter algum grau de profissionalismo em seu comportamento.
Caminhou até a princesa e fez uma mesura.
– Como posso ajudá-la, Alteza?
Terreis abriu um sorriso largo.
– Não precisa dessa formalidade para falar com uma velha amiga – a princesa quebrou a distância final entre elas e envolveu Gabrielle em um abraço forte, que foi prontamente respondido.
O sentimento de acolhimento e familiaridade invadiu Gabrielle com aquele contato. E, percebeu, uma ponta de saudades. Quando se soltaram, Gabrielle trazia um leve rubor no rosto.
– Peço perdão. Eles realmente observam nosso comportamento por aqui. Às vezes fico presa na etiqueta.
– Eu entendo – a princesa se virou e passou a mão sobre os pergaminhos que estava manuseando à pouco – eu e uma pequena comitiva viemos trazer alguns pergaminhos para ser depositados aqui na biblioteca real. Xena deve ter lhe informado.
– Sim, estou sabendo. Não é uma tarefa por demais trivial para ser acompanhada pela princesa em pessoa?
– Não quando a princesa está com muita vontade de rever a escrivã da biblioteca e saber como ela está.
– Nesse caso… fico feliz que tenha vindo.
A princesa ergueu uma mão e acariciou levemente o rosto de Gabrielle, que não pode evitar sentir um forte arrepio percorrer seu corpo com aquele toque. A princesa, no entanto, baixou logo a mão e deu um longo suspiro, com um menear de ombros.
– Mas… primeiro o primeiro – ela apoiou-se na mesa e olhou para a pilha de pergaminhos aparentemente desorganizados – preciso que você repasse, junto como comigo, todos esses pergaminhos. Precisamos fazer uma espécie de registro de cada um deles, depois um termo confirmando o recebimento, a entrega, e o compromisso do império em preservá-los – Terreis coçou a cabeça – confesso que essa parte documental não é meu forte… mas estou confiando que você sabe do que tudo isso se trata.
– Não se preocupe – Gabrielle sorriu com confiança – é minha especialidade. Vamos levar esses pergaminhos até o balcão.
Juntas, as duas mulheres carregaram todos os rolos, depositando-os onde Gabrielle normalmente trabalhava. Rapidamente, Gabrielle fez uma pré-categorização dos rolos, separando-os por temas. Abriu o livro de registros e foi anotando um por um, com uma breve descrição do assunto de cada. Terreis não fazia muito além repassar os documentos para Gabrielle, que prosseguia em seu trabalho com agilidade.
Apesar da presteza de Gabrielle, o trabalho era meticuloso e levou toda a tarde. Quando o sol começava a se pôr, ainda faltavam muitos pergaminhos serem registrados.
– Deuses – exclamou Terreis – nunca imaginei que isso fosse tão demorado e minuncioso.
– É, muita gente imagina que numa biblioteca não há muito o que fazer – Gabrielle comentou, enquanto finalizava um registro – ledo engano…
– Tá, mas você não vai entrar a noite trabalhando, não é? Amanhã você continua isso.
– Não sei, você está com algum prazo?
– Eu sou a princesa – Terreis fez um gesto maroto com a sobrancelha – eu digo que por hoje já foi. Acho que devemos continuar amanhã, e passar a noite fazendo algo… diferente.
Gabrielle não conseguiu evitar que seu rosto ruborizasse violentamente, o que fez Terreis rir.
– Estou falando de darmos uma volta ao redor do castelo, Gabrielle. Nada de mais. O que acha?
– Acho… acho uma ótima ideia – a loira se amaldiçoou internamente pelas reações involuntárias de seu corpo.
***
De braços dados, as duas mulheres começaram a caminhar pelos extensos terrenos que circundavam o castelo. O sol já tinha se posto, mas os últimos vestígios de sua luz ainda se derramavam pelo ambiente. A brisa noturna se aproximava, aumentando o frio, mas quando Terreis entrelaçou o braço no seu, aproximando-as, a promessa da noite gélida pareceu se afastar.
Ao longe, as árvores altas pareciam perder seus contornos para o manto da noite que caía. Poderia parecer algo tenebroso, mas aos olhos de Gabrielle havia magia naquele momento de transição entre o dia e a noite. Trazia ao seu coração uma sensação de que as possibilidades eram infinitas.
– Então, Gabrielle, o que tem feito? – perguntou a princesa amazona.
A pergunta da mulher por um momento perturbou o sentimento de encanto que o crepúsculo tinha depositado no coração de Gabrielle, quando todas as coisas que tinha vivido nos últimos tempos passaram rapidamente no palco da sua memória. Embora soubesse que Terreis tinha um ouvido caridoso, não queria que todas as suas interações com a princesa fossem baseadas no compartilhamento de dores.
– Tenho aprendido a lutar – contou Gabrielle, tentando pensar numa parte da sua vida que lhe satisfazia.
– Nossa, de verdade? – a informação pareceu pegar a amazona de surpresa – o que a fez buscar isso?
– Como você mesma me disse, é importante uma mulher saber se defender. E para ser sincera, tenho achado bastante prazeroso. Gosto principalmente de lutar com um cajado.
– O cajado foi uma das minhas primeiras armas – lembrou Terreis – é um ótimo instrumento de defesa e pode ser letal, quando necessário. Combina com você.
– Confesso que tenho dificuldade com a parte ofensiva. Não porque não consigo fazer, mas… a ideia de ferir alguém realmente me perturba – Gabrielle balançou a cabeça – isso deve soar muito bobo para você.
– De forma alguma. É uma tragédia o fato de algumas pessoas simplesmente se habituarem com a violência.
– Você se habituou?
A princesa olhou pensativamente para as árvores ao longo, que já estavam mergulhadas em escuridão.
– Eu gostaria de poder dizer que não… As amazonas são constantemente atacadas, Gabrielle. Infelizmente, a violência faz parte de nossas vidas. Somos uma comunidade marcial. Não porque desejamos, mas por sobrevivência – a princesa pousou a mão na de Gabrielle – espero que um dia vivamos num mundo em que a violência seja estranha a todos.
– Também espero… Mas pelo menos por enquanto, para todo lado que olho, tudo parece que foi erigido em um mar de sangue. E as pessoas sempre querem mais e mais. Nunca é suficiente, e o ciclo de violência só continua e aumenta.
Terreis deu um meio sorriso pensativo.
– Fico pensando – comentou a princesa – numa jovem menina, crescendo em Potedia, conversando com seus amiguinhos sobre os ciclos de violência sobre os quais se erguem os impérios.
– Ai, deuses – Gabrielle tocou a própria testa – não consigo segurar minha conversa afetada e pedante, não é? Não sei como você me aguenta. Estou ainda pior agora que passo o tempo inteiro lendo pergaminhos.
– Eu particularmente acho encantador.
– Realmente?
– Realmente.
O comentário de Terreis deixou Gabrielle sem palavras por um instante. Ela desviou o olhar, tentando esconder o rubor que ameaçava entregar seu coração. Mas a princesa amazona já estava atenta, percebendo o impacto de suas palavras.