Eros
por DietrichXena envolveu-se na suave camisola de seda, apreciando a maciez do tecido. Sentia a cabeça pesando como ferro, e a suavidade daquele traje lhe trazia algum conforto, ainda que ínfimo. Deitou-se na enorme cama, coberta de lençóis luxuosos de todas as partes do mundo, e lembrou-se, por um breve momento, do que significava ser a soberana de um império.
Porém, os acontecimentos dos últimos dias começaram a dançar no palco da sua mente como uma peça de teatro inoportuna. Reviu os olhos de Callisto se apagando enquanto a morte a levava, e uma dor atravessou seu peito.
Seguida a essa imagem agourenta, os olhos encharcados de Gabrielle naquela noite maldita. Uma compreensão a tomou de súbito e ela sentiu seu coração acelerar e sua boca ficar seca. Ela tinha visto aqueles olhos antes.
Nos lampejos que Alti lhe mostrara antes de morrer, ela tinha visto o rosto de Gabrielle banhado em lágrimas, exatamente como ocorrera naquela noite.
A imperatriz ergueu-se e sentou-se na cama. Tinha prometido não tocar em álcool por um tempo, mas encheu um copo com saquê e o sorveu rapidamente, o baque daquela revelação pesando em sua alma.
Enquanto enchia outro copo, a lembrança do que fizera na última vez que se embebedera a assaltou novamente. Num impulso incontido, jogou a garrafa de saquê contra a parede, que ricocheteou, espalhando o líquido pelo chão, preenchendo o quarto com o cheiro da bebida.
– Maldição! – Xena sentia-se sem saída.
Forçou-se a deitar novamente, tentando recuperar o breve momento de conforto que sentira há pouco tempo atrás. O peso do que a atormentava começou a se impor sobre ela como uma verdade inescapável.
– Gabrielle, me perdoe – murmurou para si – eu não quero machucá-la. Nunca. Me perdoe.
Pôs a mão sobre o peito, numa tentativa de conter o aperto que lá sentia, e surpreendeu-se com as lágrimas que escorreram de seus olhos. Finalmente tinha percebido o que significava a estúpida história que Theodorus tinha lhe contado sobre a briga com a esposa.
– Oh, deuses – ela riu, em meio às lágrimas, um misto de alívio e sentimento de ridículo – Eros, estou velha demais para sua doença estúpida.
Mas não conseguia conter mais seus pensamentos, agora que percebera a verdade. Começou a rir descontroladamente, e a chorar ao mesmo tempo. Fechou os olhos e deixou o rosto de Gabrielle dominar seus pensamentos, sem resistência, a culpa a engolfando, mas também o êxtase agridoce da pura e simples paixão.
– Oh, Gabrielle – murmurou – se esse sentimento me serve de algo, uma coisa eu prometo. Você nunca mais será atormentada pela minha presença novamente.
***
Gabrielle atravessou os corredores de pedra do castelo, os músculos cansados e a respiração ainda pesada após o longo e exaustivo treinamento. As mãos ardiam pelas inúmeras vezes em que empunhara o cajado, enfrentando golpes e esquivas em um ritmo tão intenso que parecia mais um teste de resistência do que uma lição de combate. Sentia os pés pesados, e uma gota de suor escorreu pela lateral de seu rosto, despencando até o chão enquanto ela parava por um instante para recuperar o fôlego.
No silêncio do castelo, que agora se misturava à penumbra do início da noite, Gabrielle não pôde evitar que a mente vagasse. Uma pergunta não respondida que ela tentava calar, ressurgiu em sua mente: por que nunca mais vira Xena? Já tinham passado semanas desde o primeiro treinamento, e a imperatriz parecia ter esvanecido no ar. Não lembrava de tê-la visto sequer de relance.
Gabrielle não sabia o que sentir em relação a isso. Sabia que a presença de Xena a perturbava, trazendo uma mistura de temor e algo que ela não ousava nomear. Ao mesmo tempo, a ausência parecia ser ainda mais opressiva. Como se a mulher fosse aparecer de súbito num momento em que ela estivesse despreparada.
Compreendia o que Theodorus dissera sobre a imperatriz estar arrependida e não ser capaz de pedir desculpas. Percebia que era verdade. Por algum motivo, Xena parecia realmente se importar com ela, ainda que ter presenciado aquele momento de violência tenha ferido a simpatia que nutria pela soberana.
Percebeu que sentia falta do tempo em que suas interações com Xena não eram nubladas pelo medo e ela parecia apenas uma imperatriz irritada que ficava moderadamente entretida pelo seu espírito questionador. Lembrou-se também de um momento em que a monarca invadia seus sonhos não como um monstro ameaçador, mas como… engoliu em seco e um leve rubor cobriu seu rosto, enquanto abria a porta do quarto.
Apoiou o cajado ao lado da cama e resolveu que já bastava por aquele dia. Um banho e um bom sono era o que precisava.
***
Gabrielle estava concentrada em seu trabalho na biblioteca, organizando meticulosamente uma série de pergaminhos sobre rotas comerciais e estratégias diplomáticas. Era uma tarefa tediosa para alguns, mas, para ela, tinha algo de terapêutico. O cheiro dos pergaminhos antigos e o silêncio reverente do lugar ajudavam-na a esquecer um pouco o mundo turbulento do palácio e dos seus próprios demônios internos.
No entanto, o som de passos e vozes exaltadas que ecoavam no corredor acabou com sua breve paz. Gabrielle tentou ignorar, mantendo os olhos no pergaminho à sua frente, mas as vozes se tornavam cada vez mais altas e claras conforme se aproximavam. Em poucos segundos, dois nobres – o Conselheiro Menon e a Ministra Adrasteia – entraram na biblioteca, imersos em uma conversa acalorada.
– Não podemos simplesmente ignorar os problemas nas regiões fronteiriças – disse Menon, visivelmente irritado – precisamos de uma solução definitiva antes que isso cause uma ruptura no comércio com as cidades ao sul.
– Eu concordo, Menon. Mas a Imperatriz… – começou Adrasteia, com a voz mais baixa, mas cheia de intensidade – ela não vê isso com a mesma urgência. Insiste que devemos esperar.
– Esperar? Esperar para que nossos aliados percam a confiança? – rebateu Menon com desprezo.
Os três pararam ao notar Gabrielle, que observava a discussão com discrição, mas visível curiosidade. Menon foi o primeiro a dirigir-se a ela.
– Gabrielle, certo? Precisamos que traga todos os registros sobre os tributos das cidades da fronteira e os relatórios de abastecimento de grãos dos últimos dois anos. E rápido, vamos precisar deles para a reunião do conselho.
Gabrielle hesitou por um momento. Notava que algo na expressão deles revelava uma pressa pouco usual, quase como se estivessem tentando manter um certo controle que normalmente não teriam.
– Hum, certo, irei organizar imediatamente.
Enquanto juntava os pergaminhos às pressas, entreouviu uma conversa baixa entre os nobres.
– … não sei porque essa resistência toda em chamar essa garota, é uma tarefa totalmente burocrática, e além do mais, é trabalho dela… – era a voz de Adastreia, baixa e urgente.
– … não dá para entender os caprichos daquela mulher às vezes, honestamente…
Gabrielle pigarreou para mostrar que já tinha todos os documentos que eles tinham pedido.
– Excelências… tem certeza que minha presença é essencial no conselho?
Os conselheiros se entreolharam, percebendo que tinham sido ouvidos e olharam Gabrielle com astúcia, que devolveu o olhar com a mistura correta de humildade e firmeza.
– Considere isso um pedido do conselho, Gabrielle. A Imperatriz terá que entender. Precisamos de alguém que consiga navegar rápida e facilmente pelos documentos para que a reunião seja ágil.
– Compreendo – disse Gabrielle, com suavidade, mas sem desviar os olhos deles – sendo assim, estou à vossa disposição.
***
Gabrielle seguiu o Conselheiro Menon e a Ministra Adrasteia pelos corredores até a sala de reuniões. Ao chegarem ao salão, os outros membros do conselho já se encontravam ao redor da longa mesa central, todos voltados para a figura da Imperatriz, imponente e fria em seu lugar de honra.
Xena ergueu o olhar ao ver Gabrielle entrando com os conselheiros, a inquietação contida no canto de seus olhos, mas seu rosto manteve-se impassível. Gabrielle sustentou aquele olhar por um breve segundo, um misto de tensão e curiosidade, antes de voltar-se para o centro da sala e posicionar-se ao lado de Menon e Adrasteia.
A reunião começou com um tom urgente. Menon tomou a palavra, discutindo o impacto das recentes tensões nas fronteiras e como isso afetava diretamente os laços comerciais com as cidades ao sul. Ele mencionava números e cifras rapidamente, os olhos voltados para Gabrielle de tempos em tempos, indicando que esperava alguma documentação.
– Gabrielle, o relatório de tributos da fronteira – solicitou ele, a voz quase impaciente.
Gabrielle moveu-se com precisão, escolhendo um pergaminho entre os rolos organizados, e entregou a Menon exatamente o que ele pedira. Ele deu uma olhada rápida no conteúdo e acenou para ela com aprovação.
– Como podem ver – continuou ele, voltando-se para os demais – os tributos nas cidades fronteiriças caíram trinta por cento no último trimestre. Isso é inaceitável. Precisamos de ação imediata.
Gabrielle acompanhava a discussão com atenção, pronta para atender a qualquer solicitação, enquanto os nobres e conselheiros discutiam possíveis soluções. Vez ou outra, ela podia sentir o olhar de Xena sobre si, breve, como uma sombra que se dissipava tão logo ela se voltava na direção dela.
– Gabrielle, os registros de abastecimento de grãos dos últimos dois anos – chamou Adrasteia, interrompendo um nobre que defendia um aumento nas rotas de suprimento.
Gabrielle escolheu o pergaminho solicitado sem hesitar, desenrolando-o com precisão e mantendo-o em suas mãos, pronta para oferecer detalhes enquanto Adrasteia apresentava os dados.
– Aqui – interveio Gabrielle com voz calma e clara, destacando-se em meio à tensão crescente da sala – o relatório mostra que, no último ano, as províncias ao sul apresentaram uma alta de quinze por cento na produção de grãos, permitindo o abastecimento interno sem necessidade de importação.
Essa intervenção fez com que alguns dos conselheiros assentissem, considerando novos pontos em suas argumentações. A cada novo dado, Gabrielle demonstrava uma facilidade impressionante em recuperar os documentos relevantes, muitas vezes antes mesmo de ser requisitada, antecipando as necessidades dos nobres e organizando os papéis com precisão.
Xena observava, fria e imóvel, mas com um brilho de aprovação em seu olhar, embora cuidadosamente contido. A reunião prosseguia com propostas e debates acalorados, mas a eficiência de Gabrielle tornou-se um recurso inestimável, permitindo que a discussão fluísse sem interrupções desnecessárias.
Após quase duas horas de debates, a tensão da reunião começou a dar lugar a um consenso, e os conselheiros preparavam-se para finalizar. Xena levantou-se, e um silêncio reverente caiu sobre a sala.
– Agradeço a todos – declarou a Imperatriz, com a voz firme e imponente, mas, desta vez, lançou um breve olhar na direção de Gabrielle – E a você, Gabrielle, pela competência e precisão. Hoje você provou seu valor aqui, mais uma vez.