Escuridão
por DietrichLogo que a imagem de Perdicas se dissipou, um calor imenso começou a entrar pelas frestas da casa. Gabrielle foi tomada por um sentimento de pavor e saiu correndo. Assim que cruzou a porta, teve um sentimento de grande estranheza em seu corpo. Parou para observá-lo e percebeu que agora era uma criança.
– Mas… o que… – exclamou em confusão.
Virou-se para encarar a casa de onde tinha saído e percebeu que ela era engolida por chamas. De repente, tudo tornou-se laranja e ela percebeu que Potedia inteira sucumbia sob um enorme incêndio.
– Hyaaaaaaaaa!!!
Era um poderoso grito de guerra, que vinha de alguém montada a cavalo. Recuou e tropeçou ao perceber que era Xena. A guerreira trajava uma armadura negra, seus cabelos eram enormes e seu rosto era um esgar de pura maldade.
Observou, horrorizada, a mulher cavalgar entre as chamas, sua espada suja de sangue matando pessoas sem um segundo olhar. A guerreira gritou para o ar.
– Isso é o que acontece com quem ousa me desafiar!
Tomada de pânico, Gabrielle começou a correr desesperada pela aldeia, o calor imenso do incêndio roubando sua respiração. Um grito apavorante de dor cortou seus ouvidos. Vinha da casa de seus pais.
Ela correu na direção deles, mas caiu de joelhos ante a cena que assaltou seus olhos. Os corpos em chamas de seus pais, Hecuba e Heródoto, corriam, contorcendo-se em dor e desespero.
– Gabrielle! – conseguiu gritar sua mãe, antes de cair no chão, sua carne tornando-se preta ao ser consumida pelo fogo.
Gabrielle sentiu sua alma de criança esvaziar-se, nem o horror conseguia preenchê-la. Viu Lila e Perdicas saírem correndo da casa, seus rostos infantis também lambidos pelas chamas, seus corpos derretendo em puro terror e angústia.
A imagem daqueles rostos deformados pelo fogo pareceu tatuar sua alma de criança. O mundo de caos ao seu redor, o cheiro de sangue e carne queimada, os gritos de horror dos demais camponeses, o clangor das lâminas que matavam todas as pessoas que conhecia pareceu desaparecer. Tudo que ficou em sua alma foi o vazio completo e a visão das pessoas que eram seu mundo sendo devoradas pelo fogo.
Isso foi cortado pela figura de Xena caminhando em sua direção. Frente a seu pequeno corpo de criança, a mulher parecia uma gigante. A fumaça distorcia suas feições, tornando seu rosto demoníaco. Não era uma pessoa, era um monstro.
A imagem tremeluziu e Xena tornou-se Callisto. A armadura e as feições eram as mesmas. A mulher riu de forma maníaca, ergueu um braço e golpeou Gabrielle na cabeça, fazendo-a perder a consciência.
***
Quando finalmente abriu os olhos, viu-se num espaço que parecia feito de puro negrume. Havia um chão sob seus pés, mas não conseguia enxergá-lo. Sequer conseguia ver o próprio corpo, embora conseguisse apalpá-lo. Tinha voltado ao tamanho de uma pessoa adulta, mas sua alma parecia agora marcada pela tragédia que tinha presenciado com os olhos da alma.
– Oh, deuses… – murmurou – Callisto… Xena… por que?
Deu alguns passos, e eles pareceram reverberar pelo infinito. Olhou ao redor, procurando algum resto ínfimo de luz, algo que indicasse uma direção e não encontrou. Começou a entrar em pânico.
Uma risada que parecia vir das entranhas do próprio Tártaro ressoou. Não tinha uma direção específica, parecia vir de todos os lados. Ela não reconhecia a voz. Não era Xena, não era Callisto.
– Quem está aí? – perguntou para o nada.
A risada ecoou novamente.
– Que jornada patética, a sua – a voz falou – buscando a redenção de monstros… Xena… Callisto… vai sentir pena delas só porque elas tem uma história trágica? Tantas pessoas vivem tragédias e não se tornam assassinas.
Um vulto de uma mulher apareceu diante de seus olhos. Não tinha forma, não tinha rosto.
– Eu não tenho nenhuma tragédia – a voz agora parecia vir do vulto – eu sou a própria encarnação da escuridão. Basta um toque meu, e qualquer alma é atraída para o mal… eu posso satisfazer qualquer desejo seu, desde que esteja disposta a pagar o preço.
Gabrielle finalmente entendeu.
– Alti? – sussurrou.
O vulto mais uma vez deixou escapar aquela gargalhada que parecia congelar a alma.
– Olhe ao seu redor garota – falou o vulto – esse é o tamanho do meu poder. Eu não vou descansar até que o mundo esteja coberto de trevas. Começando por você e seu amor ridículo por Xena. Sou tão poderosa que nem mesmo a morte pode me deter. Você nunca vai poder estar com ela novamente. Por que não se conforma com aquela amazona que lhe ama? Fique com ela e viva em paz. Deixe a alma de Xena para mim.
Gabrielle abraçou-se, tentando conter a sensação desconcertante de não ser capaz de enxergar nem a si mesma.
– Eu… eu não acredito em você… – Gabrielle falou, hesitante – e se existe um poder tão imenso voltado para o mal – ela engoliu em seco – eu sei que existe um poder ainda maior voltado para o bem.
Alti soltou um rosnado de puro deboche.
– O quão ridícula você consegue ser?
– O tanto que eu precisar – a voz de Gabrielle encheu-se de convicção – você nasceu para perder, Alti. Ainda… ainda que eu me afaste de Xena, algo vai acontecer. Algo vai impedir seu domínio. Mesmo que o mundo se torne trevas, alguém, em algum momento, aparecerá para te impedir. Você nunca triunfará.
O vulto avançou até ela com velocidade sobrenatural e agarrou-a pelo pescoço, com força suficiente para erguê-la no ar. Gabrielle viu-se sem ar, mas mas não parou de encarar a parte da sombra onde deveria haver um rosto.
– Eu sou… quem pode… te derrotar – Gabrielle falou com seu último fôlego – porque… ainda sou ridícula… o bastante… para acreditar… que o amor… é maior que tudo isso.
Gabrielle estendeu a mão e colocou onde deveria estar o coração daquela sombra. Imediatamente seu corpo tornou-se visível para si mesma, como se ela emanasse luz. A luz começou a se estender do corpo dela para a sombra que a sufocava, e esta começou a desaparecer.
De repente, tudo se desfez em um enorme clarão que a cegou. As mãos que a sufocavam desapareceram. Quando a luz voltou a se apagar, notou a luz fraca e dançante de uma lamparina sobre uma mesa. Percebeu que estava na biblioteca do castelo.
***
Aproximou-se da lamparina, mas o barulho de passos a distraiu. Um gosto amargo apareceu em sua boca quando percebeu uma Xena bêbada e cambaleante vindo em sua direção.
Xena deu um sorriso que mais parecia um esgar, e cambaleou para trás, esbarrando numa cadeira e perdendo o equilíbrio. Gabrielle se adiantou rapidamente e a segurou, impedindo que a imperatriz se estabanasse no chão.
– Quer saber, Gabrielle – Xena balbuciou – você já sabe coisas suficientes sobre mim para me chantagear, subornar, ou algo do tipo. Talvez eu devesse matar você também.
Gabrielle engoliu em seco ao se ver novamente naquela situação. Seu corpo reagiu com o mesmo espasmo de medo, a primeira vez que tinha sentido medo de Xena. Porém, junto ao medo, o amor intenso pulsava em seu peito.
– Ah, finalmente vejo você com medo – Xena riu, sua voz parecia feita de pura maldade – sabia que veria isso algum dia.
– Xena – Gabrielle tentou não gaguejar – você não precisa fazer isso. Nós podemos enfrentar isso juntas.
– Mas a princesinha ficaria chateada – Xena parecia não ter ouvido Gabrielle – se a princesinha achar que fiz algo com você, talvez meu pacto com as amazonas ficasse prejudicado. Você acabou se tornando importante, Gabrielle. Como conseguiu isso? É parte da profecia de Alti?
– Por favor, Xena… eu estou aqui por você. Eu te juro, estou aqui por você.
– E aquela porra da sua namoradinha amazona, an? – Xena gritou, o rosto furioso que depois se contorceu num riso – então o beijo que eu você trocamos abriu seus horizontes, ein?
A raiva que tinha sentido naquele momento voltou a borbulhar em seu peito. Como Xena podia desrespeitá-la tanto? Não desviou os olhos do rosto da imperatriz, buscando em meio àquele turbilhão tenebroso os olhos da pessoa que amava. Os olhos que se abriam com vulnerabilidade para ela.
Aquilo pareceu encher Xena de ainda mais ódio e ela avançou de forma veloz, mesmo em seu estado ébrio, e Gabrielle, seguindo os mesmos instintos, pegou o abridor de cartas que estava sobre o balcão e ergueu diante de si.
Xena arregalou os olhos.
– Que porra é essa? – a morena rosnou – quer deixar Rhea órfã?
– Xena, olhe para mim – exclamou Gabrielle, sem deixar de encarar Xena – veja quem eu sou.
– Ou o que? – Xena começou a avançar, e Gabrielle recuava, seu medo crescendo a cada passo para trás. Seu corpo começou a tremer violentamente quando sentiu suas costas esbarrarem numa parede.
Não olhou para nenhum lugar que não fossem os olhos de Xena. Via neles apenas raiva e desprezo e aquilo feria sua alma. As lágrimas escorreram de seu rosto.
Xena prendeu-a contra a parede, os braços dela de cada lado do seu corpo, impedindo seus movimentos. O rosto dela estava muito próximo do seu.
– Xena, eu sei – a voz de Gabrielle era um sussurro, as lágrimas desciam por seu rosto – eu sei que você não vai me machucar. Eu sei que você não quer me machucar de verdade.
O rosto disforme diante dela se contorceu em expressões que ela não sabia reconhecer. O olhar azul pareceu aos poucos retomar uma consciência, logo sendo trespassados por dor e arrependimento. A imperatriz recuou, parecendo, por um momento, perdida como uma criança.
Gabrielle se adiantou e tomou o rosto de Xena entre as mãos.
– Eu te amo – falou – eu te amo com tudo que tenho e com tudo que você é. Você não precisa mais carregar essas sombras sozinha. Compartilhe-as comigo. Você não precisa mais transformar essa dor em violência. Me dá um pouco da tua dor. Eu te dou um pouco da minha. Juntas, somos capazes de tudo.
Xena ergueu as mãos trêmulas, e tocou o rosto de Gabrielle. Gabrielle puxou o rosto, encostando seus lábios, a saudade e a urgência a dominando. O beijo foi calmo, carinhoso e insuflou Gabrielle com coragem.
– Eu preciso voltar pros seus braços mais do que preciso respirar – falou Gabrielle – eu vou nos salvar.
Xena, em silêncio, recuou e sorriu.
– Eu sei que vai.
Tudo se desfez num violento vórtice e Gabrielle, tomando um profundo fôlego, percebeu que estava novamente na tenda de Yakut. Suas mãos seguravam as da amazona com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos.
– Você voltou – a xamã falou, com voz tranquila – você está pronta para enfrentar Alti.
Gabrielle, o coração a mil e o rosto banhado em suor, assentiu.