Favores
por DietrichGabrielle respirava compassadamente, na tentativa de acalmar o coração acelerado. O balouçar da carruagem que a levava também tinha um efeito tranquilizante. Apesar de estar aos poucos se habituando à vida em Corinto, o fato de estar indo pela primeira vez a um grande teatro ver uma peça de um grande nome das artes cênicas a fazia querer pular de alegria como uma criança que ganha um pão de nozes.
Deu uma olhadela esguia para as pessoas ao lado dela na carruagem. Salmoneus, Vidalus e outros membros do círculo direto da Imperatriz. Sabia que eles estavam avaliando seu comportamento, e parecer uma camponesa deslumbrada com a cidade grande não iria causar uma boa impressão. Manteve a postura ereta, as mãos delicadamente cruzadas sobre as coxas. Ao seu lado, Rhea também ia como uma mocinha comportada.
Gabrielle não pode deixar de sorrir mais uma vez ao olhar para a filha. A menina trajava uma veste parecida com a sua, versão miniatura. Túnicas brancas com detalhes prateados. Braceletes, colares e tiaras, além do cabelo trançado. Nunca em sua vida Gabrielle imaginou que a menina fosse ter acesso a esse tipo de indumentária.
Na carruagem à frente ia a conquistadora, ao lado do seu general, Theodorus. Dessa vez a imperatriz trajava um vestido vermelho e pomposo, além de ter seu cabelo levantado em um penteado luxuoso, que deixava à mostra seu pescoço e as orelhas, onde estavam pendurados pesados brincos.
Gabrielle nunca vira a mulher em trajes tão requintados. A princípio estranhou, acostumada a vê-la de calça e botas, mas percebeu que aquilo caía tão bem na conquistadora quanto seus trajes casuais. Pensou, meio desnorteada, que provavelmente qualquer coisa caía bem naquela mulher. Não tinha muita certeza sobre si mesma, pois às vezes olhava-se nos seus novos trajes e se sentia uma completa estranha.
Quando pararam em frente ao teatro fez menção de descer da carruagem, mas a voz de Vidalus ecoou em sua cabeça e esperou um cavalheiro qualquer lhe oferecer a mão, onde se apoiou para descer. Segurou a mão da filha e seguiram o pequeno séquito que se dirigia ao camarote. A tinham informado que era lá que ela ficaria, junto com a imperatriz, Theodorus, Salmoneus, e Vidalus. Os demais membros da caravana ficariam no restante do teatro.
Apesar de ter percebido que seu cargo não era algo menor, achava um exagero ir para o camarote, e via que as pessoas ao seu redor pareciam concordar. Percebeu mais de um olhar de despeito e inveja em sua direção, especialmente vindos de outras mulheres. Perguntou-se porque diabos a conquistadora estaria fazendo aquilo. Seria puro sentimento de culpa ou havia algo a mais? Uma questão a inquietava e decidiu confrontar a mulher no momento oportuno. Algumas histórias que tinha ouvido conversando com outros servos e empregados a tinham deixado desconfiada.
Porém, essas inquietações sumiram temporariamente de sua mente quando sentou-se na pomposa cadeira de espaldar alto de onde tinha uma visão privilegiada do palco ainda vazio e seu coração deixou-se dominar pela ansiedade do espetáculo que ia presenciar. Seu coração acelerou quando o primeiro ator entrou no palco.
– Ei-nos chegados aos confins da terra, à longínqua região da Cítia, solitária e inacessível! Cumpre-te agora, ó Vulcano, pensar nas ordens que recebeste de teu pai, e acorrentar este malfeitor, com indestrutíveis cadeias de aço, a estas rochas escarpadas…
Gabrielle perdeu-se na narrativa, reagindo a toda e cada uma das emoções ditadas pela tragédia. Na metade da peça, Rhea caiu no sono em seu colo. A conquistadora lutava para não dormir também, enquanto Salmoneus reagia tão intensamente quanto Gabrielle, os dois trocando comentários e impressões ao longo da peça. Vidalus tentava reagir de forma apreciativa, mas moderada.
Quando a peça acabou, Gabrielle e Salmoneus ficaram de pé imediatamente e aplaudiram com força, seguidos por Vidalus e Xena. Salmoneus olhou para ela e sorriu, lhe estendendo o braço enquanto acenava com a cabeça para a escada que levava ao andar de baixo do teatro.
Gabrielle enlaçou o braço do homem e segurou a mão de Rhea enquanto desciam pela escada sinuosa, logo atrás de Xena, Vidalus e Theodorus.
Quando chegou no andar de baixo e contemplou os grupos de pessoas, atores e corte interagindo entre si, não conseguiu deixar de se sentir insegura. Olhou meio desesperada para Salmoneus, que lhe devolveu um olhar compassivo e deu-lhe leve batidinhas na mão.
– Não se preocupe, Gabrielle – ele falou – não vou deixar você sozinha nenhum minuto.
– Obrigada – disse Gabrielle, respirando aliviada.
– Pode não parecer, mas todos te entendemos – conversou o homem, enquanto circulavam pelo espaço – bem, exceto Vidalus, talvez. Xena, eu e Theodorus, todos viemos de baixo. Você se acostuma a fingir quando necessário.
Seguiram cumprimentando e trocando conversas amenas com as demais pessoas ali presentes. Gabrielle particularmente gostou de conversar com os atores, perguntando tudo sobre a experiência deles com o teatro, não conseguindo, dessa vez, segurar o próprio deslumbramento.
Foi interrompida no meio de uma conversa acalorada com um dos atores sobre a participação de mulheres no teatro pelo toque de Xena em seu ombro.
– Olá, Leonidas. Pode me emprestar Gabrielle por um minuto? – falou Xena, dirigindo-se ao ator.
– Pois não, senhora – o homem se curvou para ela, depois para Gabrielle – um prazer imenso conversar com a senhora, Gabrielle. Fico feliz que uma alma visionária como a sua agora faça parte da corte.
– Salmoneus – falou Xena – pode ficar com Rhea?
A menina olhou para a mãe, que acenou com carinho para a filha. Salmoneus pegou a mão da menina e imediatamente a levou para mostrar as pinturas que enfeitavam as paredes do teatro.
Xena estendeu o braço, o qual Gabrielle enlaçou e começaram a caminhar.
– Então o que achou da peça, Gabrielle?
– Brilhante, senh… Xena – respondeu a loira – e você?
– Um saco. Mas se alguém lhe perguntar, diga que achei maravilhosa.
– Certo – riu Gabrielle – Hum.. Xena? Preciso lhe perguntar uma coisa, e não sei quando terei outra chance, então…
– Huummm? – Xena parecia distraída.
– Não me pareceu que as pessoas acharam correto eu estar no camarote. Entendo que meu posto tem alguma importância… Mas não tanta assim. E você certamente sabe disso. Sendo assim… porque me convidou?
Xena olhou para a mulher e sorriu. Atrius parecia estar certo sobre a perspicácia da mulher. Pensou alguns minutos antes de responder.
– Você acreditaria em mim se eu dissesse que foi puramente por impulso? – questionou a soberana.
– Não – respondeu prontamente Gabrielle.
Xena suspirou, sorrindo resignada.
– Gabrielle, é uma longa e entediante explicação sobre como uma senhora da guerra aposentada está tentando se sentir melhor sobre os pecados do próprio passado – balançou a cabeça – te confesso também que tenho um certo prazer em irritar esse bando de aristocratas eventualmente, para lembrar a eles de quem realmente manda nessa joça. Tenho que seguir as regras, até certo ponto, para não gerar rebeliões desnecessárias, mas tenho que quebrá-las também, na medida certa, para que eles lembrem que, apesar de tudo, o exército me pertence e posso cortar a cabeça de qualquer um a qualquer momento.
Gabrielle arregalou os olhos.
– Tanta coisa assim em um simples convite ao teatro? – perguntou.
– Exato.
Caminharam em silêncio por mais alguns minutos. Gabrielle ainda precisava esclarecer alguns pontos. Reuniu coragem e perguntou, em voz firme:
– Xena, você tem feito muitas coisas por mim. Espera algo em troca?
Xena parou, soltou o braço de Gabrielle e ficou de frente à ela.
– Gabrielle, é absolutamente fascinante o quanto você é insolente – percebeu um traço de medo nos olhos verdes da loira e tentou dar um sorriso tranquilizador – e essa é uma qualidade que realmente aprecio em você.
– An… obrigada – agradeceu Gabrielle, insegura – mas não respondeu a pergunta.
Dessa vez o sorriso de Xena mostrou os dentes. Controlou-se para não gargalhar.
– Deixa eu adivinhar, os demais servos e servas encheram seus ouvidos sobre histórias onde eu encho alguma jovem inocente de presentes e regalias em troca de favores noturnos?
– Algo nesse sentido – respondeu Gabrielle, corando um pouco – mas perdoe-me, não quis insinuar que…
– Não se preocupe, Gabrielle. Essas histórias são verdadeiras. Quero dizer, parcialmente verdadeiras – corrigiu ao ver o olhar estupefato da loira – primeiro, nunca contrato uma pessoa incompetente, não importa quantos… favores essa pessoa me conceda. Segundo, eu realmente não preciso presentear ninguém para conseguir o que eu quero. Então – pegou uma mecha solta do cabelo de Gabrielle e passou por trás da orelha da loira, deixando depois um dedo deslizar pelo contorno da mandíbula – se eu em algum… impulso desregrado acabar tentando beijá-la e você negar, seu trabalho não estará ameaçado. Estou simplesmente satisfeita de ter alguém competente a meu serviço.
– An… Xena – Gabrielle tentou se concentrar, mesmo com o arrepio que a tinha percorrido inteira mediante o leve toque da mulher em seu rosto – estão olhando para nós.
– Está preocupada com sua reputação?
– Para ser sincera, sim.
– Sinto lhe informar, Gabrielle, que desde o primeiro dia que entrou no castelo as pessoas já estão pensando o que você receia.
Gabrielle cerrou os lábios e encarou o chão, desapontada.
– Se lhe consola – continuou Xena – as pessoas pensam o mesmo de qualquer mulher com quem desenvolvo qualquer tipo de vínculo. Então, não é nada sobre você. É sobre a imaginação pobre dessas pessoas.
– Bem, nesse caso – Gabrielle se empertigou, tentando recuperar a dignidade, e enlaçou o braço de Xena, puxando-a para voltarem a caminhar – melhor eu esquecer e… aproveitar. Porque não me apresenta a essas pessoas, para eu saber quem é quem? E, hum, irritá-los um pouco. Já que você gosta.
– Gosto da forma que pensa, Gabrielle – sorriu Xena – gosto da forma que pensa.