Herança
por DietrichXena entrou na casa onde ficavam os filhos dos funcionários, e o ar de espanto das amas era evidente. A Imperatriz jamais viera até ali. As crianças pararam suas brincadeiras, observando a figura imponente de Xena com olhares curiosos e um pouco receosos. As amas fizeram uma reverência apressada, murmurando saudações, enquanto Xena seguia em direção a Solan, que estava no canto, entre outros meninos da sua idade.
Ela se aproximou e parou a uma curta distância, o rosto sério, mas os olhos mais gentis do que o habitual.
– Solan, posso falar com você?
Solan, ainda um pouco espantado, assentiu e se levantou. Xena fez um gesto para ele segui-la, e juntos saíram para uma caminhada, afastando-se da casa. Por um tempo, nenhum dos dois disse nada, apenas andando lado a lado.
Finalmente, Xena olhou para o menino, procurando avaliar seu estado.
– Está confortável aqui? As amas cuidam bem de você? Tem se alimentado direito?
Solan deu de ombros, o olhar baixo.
– Está tudo bem.
Xena percebeu a resposta vaga e respirou fundo. Era difícil para ela expressar o que sentia, mas sabia que devia tentar, mesmo que suas palavras saíssem com certa hesitação.
– Eu sei que esta situação é confusa para você. E entendo que não deve ser fácil estar aqui, no meio de tanta gente que você não conhece, longe dos seus amigos.
Solan ficou em silêncio, ainda com os olhos fixos no chão, mas Xena notou como ele apertava as mãos com um nervosismo contido.
– Por enquanto, Solan… preciso que você mantenha em segredo que sou sua mãe. Não é porque tenho vergonha de você. Pelo contrário – ela parou e, agachando-se, colocou-se na altura dele, para que ele pudesse ver a seriedade e o afeto em seu olhar – estou preparando o terreno para que as pessoas possam aceitar você ao meu lado, como meu filho. Você entende o que isso significa?
Solan olhou para ela, tentando processar tudo. Seu rosto refletia uma mistura de confusão, um pouco de mágoa, e uma esperança tímida.
– Eu… acho que sim. Mas por que eu não posso só… contar? Por que é tão complicado?
Xena respirou fundo, tentando encontrar uma explicação que ele pudesse compreender.
– Ser filha ou filho de alguém como eu… traz complicações, Solan. Muitos vão se preocupar com o que isso significa para o poder que têm. E outros podem achar que… você não merece estar lá. Eu não quero que ninguém o veja como um estranho. Quero que todos saibam o quanto você é especial, mas é preciso tempo para que aceitem isso.
Solan ouviu, seus olhos refletindo um entendimento parcial, ainda lidando com sentimentos confusos. Ele sabia que Xena era uma pessoa importante, poderosa. Mas o peso de sua posição era algo que ele, com apenas dez anos, mal podia entender.
– Então… eu só tenho que esperar? E… confiar?
– Sim, Solan. Preciso que você confie em mim. E quando chegar o momento, quero que todos o conheçam como meu filho.
– Seu meu tio confiou em você antes de morrer – o menino murmurou – então também vou confiar.
Houve um silêncio entre eles, mas Xena percebeu que, embora Solan não dissesse muito, ele absorvia cada palavra. Ela estendeu a mão, hesitante, e pousou-a no ombro dele. Cada vez que se permitia tocar no próprio filho, suas emoções tumultuavam. Se sentia indigna, e ao mesmo tempo, desejava aquilo mais que qualquer coisa.
– E, enquanto isso… se precisar de algo, se sentir que está faltando alguma coisa… me diga. Está bem?
Solan assentiu devagar, lançando um olhar mais longo para a mãe, como se tentasse decifrar aquela figura forte e distante que, pela primeira vez, parecia tão próxima.
– Eu vou esperar, então.
Xena deu um leve sorriso, sentindo uma pontada de orgulho e de ternura pelo filho.
***
Na penumbra da sala do trono, Xena estava encostada contra a parede, os braços cruzados e o olhar distante, como se os pensamentos fossem uma correnteza que a levava para um lugar que ela lutava para evitar. Theodorus entrou na sala, sentindo a densidade da atmosfera antes mesmo de ver a expressão da imperatriz.
Ele parou alguns passos à frente, olhando-a com respeito e preocupação.
– Queria me ver, senhora?
O silêncio perdurou por mais um tempo. Quando ele finalmente foi quebrado, a voz de Xena era um sussurro áspero.
– Theodorus… eu preciso lhe contar algo. Algo que guardei por muito tempo. E que tem muitas implicações – a soberana caminhou lentamente até o general – vou precisar da sua ajuda como nunca precisei, meu amigo.
Theodorus se manteve atento, os olhos focados nela, mesmo sem saber a gravidade da revelação.
– Solan… – continuou Xena – eu não o acolhi simplesmente porque foi o último pedido de Kaleipus. Ele… é meu filho.
O impacto daquelas palavras quase desestabilizou Theodorus. Ele ficou imóvel, os olhos arregalados, antes de soltar o ar como se tivesse segurado a respiração por tempo demais.
– Seu… filho? – ele repetiu, com a voz rouca de surpresa. – Xena… como? Como isso ficou escondido por tanto tempo?
– Eu o entreguei quando ele ainda era um bebê. Era um tempo… diferente. Ele teria sido uma vítima da minha própria sede de poder, da violência que eu espalhava. Eu o dei para que ele pudesse viver uma vida de paz… longe de tudo isso.
Theodorus assentiu lentamente, absorvendo a revelação, e depois deu um passo mais perto dela, a voz mais baixa e cuidadosa.
– Xena… o fato de que ele é seu filho muda tudo. Se alguém descobrir, isso afeta diretamente a sucessão de seu império. A corte… e todos que nos cercam, eles não vão aceitar isso facilmente.
Xena balançou a cabeça, o maxilar tenso.
– Eu sei. E é por isso que preciso de sua ajuda. Por enquanto, não precisamos revelar quem ele é. Mas, eventualmente… precisarei apresentá-lo à corte, como meu herdeiro. E eles irão aceitar – Xena cerrou os punhos – por bem ou por mal.
Theodorus colocou a mão em seu ombro, num gesto de apoio, mas seus olhos ainda refletiam a preocupação.
– Você precisa estar ciente do que está em jogo. A corte já anda desconfiada das suas alianças com as amazonas, dos sacrifícios que tem feito para construir paz onde antes só havia guerra. Se souberem que você tem um herdeiro… haverá conflitos e intrigas, principalmente entre aqueles que só respeitam seu governo pela sua força. Eles vão tentar usá-lo para te desestabilizar.
Xena respirou fundo, fechando os olhos por um breve instante, como se tentasse se preparar para o peso das consequências.
– Precisamos pensar como fazer isso – refletiu Xena – preparar o terrreno… mobilize nossos contatos para sondar o que os nobres estão falando sobre minha sucessão. E se alguém já falou alguma coisa sobre o menino. Destaque alguns soldados, os de sua maior confiança, Glafira certamente, para darem uma olhada eventualmente na casa das crianças. Eles obedecerão sem pedir explicações e serão discretos. Faça tudo isso da forma mais sutil possível, Theo.
– Certamente minha senhora – o homem pareceu hesitar um momento – Xena… prometa-me que não fará nada precipitado. Se formos cuidadosos, podemos fazer com que o aceitem sem precisar… digamos… que a Destruidora de Nações intervenha.
Xena deu um sorriso amargo.
– Prometo, meu amigo. Prometo. Mas essa promessa vai até o ponto em que eu sentir que Solan está seguro. Se eu perceber algo… a Destruidora de Nações aparecerá.
Theodorus riu, conformado.
– Farei da segurança do menino minha prioridade, então.
Xena assentiu, satisfeita e o dispensou com um aceno.
***
A tarde estava quente, e o peso do sol parecia intensificar a carga de pensamentos que se acumulavam na mente de Xena. Ela caminhava pelo pátio do castelo, os passos ecoando solitários nas pedras de mármore. A presença de Solan, a promessa de fazer com que ele fosse aceito pela corte como seu filho legítimo, pesava sobre ela com gravidade. As palavras de Theodorus ecoavam em sua mente, e ela sabia que, enquanto o filho permanecesse em segredo, ela estava jogando um jogo perigoso. Mas, eventualmente, a verdade teria que vir à tona.
Enquanto passava pela sala dos espelhos, uma das paredes refletia sua imagem cansada. Seus olhos, que normalmente exalavam autoridade e confiança, estavam agora obscurecidos pela dúvida e pela preocupação. A sensação de estar sozinha, com todo o império em suas mãos e com o destino do filho nas sombras, era sufocante.
Foi quando seu olhar se desviou para o canto, onde uma cadeira vazia se encontrava. Ela se sentou ali, de forma automática, os pensamentos ainda turbilhonando em sua mente. O peso de sua própria missão estava mais presente do que nunca.
A saudade de Gabrielle a atingiu com uma força inesperada, como se a lembrança da mulher fosse uma presença tangível ao seu lado, mesmo que a distância fosse imensa. Ela fechou os olhos por um momento, tentando imaginar o sorriso de Gabrielle, o brilho de seus olhos verdes, a confiança em sua voz. Como ela queria que Gabrielle estivesse ali, ao seu lado, para ajudá-la a lidar com esse fardo.
Era uma saudade que doía no peito, uma sensação profunda e inquietante que fazia sua alma se contorcer. Gabrielle saberia como acalmá-la, como trazê-la de volta ao caminho certo quando os pesadelos e as incertezas pareciam querer engolir tudo. Sem ela, Xena sentia-se perdida, como se estivesse navegando sozinha em um mar turbulento e sem farol.
Xena se levantou da cadeira, e uma lágrima solitária escorreu de seus olhos, rapidamente secada antes que ela pudesse refletir sobre isso. Havia algo de humilhante em ser a líder de um império, alguém que todos esperavam ter todas as respostas, e ainda assim se sentir tão pequena diante das decisões que precisava tomar.
Ela balançou a cabeça, como se tentasse afastar os pensamentos. Não posso me perder assim, pensou consigo mesma, sentindo um aperto no peito. Mas, enquanto seu olhar se fixava no vazio à sua frente, ela se deu conta de que o que mais desejava era que Gabrielle estivesse ali, para segurar sua mão, para ajudar a dissipar a confusão.
A dor de não saber onde Gabrielle estava, ou em que ponto de sua própria missão ela se encontrava, arrastava o peso de suas responsabilidades ainda mais fundo. Xena sabia que não podia abandonar a corte, que precisava garantir a segurança de Solan, mas o vazio deixado pela ausência de Gabrielle, por mais que fosse difícil de suportar, parecia dominar tudo.
Xena fechou os olhos e se permitiu um último suspiro de fragilidade antes de voltar para a luta que a aguardava.