Labirinto
por DietrichGabrielle bateu na porta da pequena casa. Após alguns segundos, a porta se abriu e uma mulher apareceu.
Como das outras vezes, a barda se viu sem palavras. Reconhecia a mulher, e via que esta também sabia quem ela era. Enquanto elas se olhavam, uma garotinha veio correndo e abraçou as pernas da mulher.
– Mamãe, mamãe – disse a garotinha – consegui botar a Jane para dormir.
A mulher baixou os olhos e acariciou os cabelos da menina.
– Muito bem, Nika. Agora, vá brincar um pouco, sim? Deixe a mamãe um tempo sozinha.
– Certo, mamãe. Olá moça – disse a menina, cumprimentando Gabrielle antes de sair correndo.
– Olá, pequena – disse Gabrielle. Voltou a olhar para a mulher – ela é perfeita.
– Sim, ela é – respondeu a mulher – estava esperando você, Gabrielle.
– Estava?
– Sim. As outras me avisaram que estava nos procurando.
– Sim, eu estou. Só faltava você, eu…
Gabrielle calou-se quando a mulher a abraçou. Sustentou a mulher nos braços e exclamou quando esta ajoelhou-se diante dela.
– Perdão, minha rainha – disse a mulher – não pude estar ao seu lado e das nossas irmãs quando…
Gabrielle fez a mulher levantar-se. Encarou os olhos marejados dela.
– Lydia, por favor – falou Gabrielle – sabe que não vim aqui pra isso. Não sou mais rainha, não precisa…
– É e sempre será a maior rainha das amazonas, Gabrielle. Nunca tive uma noite de paz desde a estupidez que fiz na minha juventude. Agora posso finalmente pedir perdão. Por favor, aceite.
– Não há o que perdoar.
– Por favor, Gabrielle – a mulher a olhava, suplicante.
Gabrielle suspirou.
– Se é importante que ouça, eu a perdoo.
A mulher bateu no próprio peito. Ao ver o gesto tipicamente amazona, Gabrielle sentiu a saudade apertar seu coração.
– Obrigada, minha rainha. Sua misericórdia não conhece limites. Posso chamar-me amazona novamente?
Tudo aquilo era passado para Gabrielle, mas essas mulheres tinham carregado a amargura do banimento durante longos anos. Uma coisa era perder a nação amazona definitivamente, outra coisa era estar longe dela enquanto ainda existia. Era como uma ferida permanentemente aberta que elas tinham suportado.
– Sim, Lydia. Sempre seremos irmãs amazonas.
Uma lágrima escorreu dos olhos da mulher e ela sorriu.
– Minha rainha… – começou Lydia.
– Lydia, por favor – interrompeu Gabrielle – não sou rainha. Somos irmãs amazonas, mas não temos pátria, não temos mais nação. Sou apenas Gabrielle. Sou uma barda agora.
– Entendo o que diz. Gabrielle, tomei a liberdade de chamar as outras para virem aqui.
– Que?
– Elas estão vindo. Chegarão ao longo de alguns dias.
– Lydia… – começou Gabrielle.
– Elas virão. Trarão suas filhas. Passaremos alguns dias entre nós. Lembraremos. Choraremos. Festejaremos. Nunca esqueceremos, Gabrielle.
Gabrielle sentiu seus olhos se encherem de lágrimas e abraçou a mulher novamente.
– Sim, Lydia. Façamos isso.
***
Aos poucos, as mulheres chegaram. Foram para o bosque, armaram tendas, caçaram, dançaram e cantaram. Ouviram, enquanto Gabrielle contava todas as histórias que tinha escrito em seus pergaminhos e em sua alma. A barda sentia que parte de si renascia. Mas não conseguia evitar a estranha sensação de deslocamento que se apossava dela. Amava todas aquelas mulheres, mas sentia que o mundo a chamava, novamente, como sempre chamara. As histórias a chamavam. E ela não tinha mais nenhuma vontade de interromper o fluxo da vida que se derramava por ela, não importava onde ele lhe levasse. Sabia que, em breve, teria que deixá-las.
***
As mulheres acordaram com o som dos gritos. Se levantaram, armas nas mãos, enquanto a confusão se alastrava. Gabrielle correu para onde parecia estar o centro da balbúrdia. Empalideceu quando viu que um par de amazonas traziam Xena amarrada. As mulheres chutaram a conquistadora e esta caiu de joelhos aos pés de Gabrielle.
– Ártemis deve estar nos abençoando – disse Danae, uma das mulheres que trouxera a rainha – só pode ser um milagre, Gabrielle. A deusa trouxe nossa vingança até nós.
Gabrielle olhou para Xena. Esta sorria, tranquila.
– O que está fazendo aqui? – perguntou a barda.
– Lembre-se do que eu disse sobre meu destino, Gabrielle – a rainha falou – qualquer dos dois, está correto.
Só existem dois destinos que aceito para mim. Governar o mundo inteiro ou morrer pelas suas mãos.
– Xena…
– Faça o que tiver que fazer – a conquistadora baixou a cabeça.
Gabrielle voltou-se para o punhado de mulheres que observava a situação. Encaravam a rainha com fúria assassina. Ansiavam por vingança.
– Mate-a! – gritou uma.
O clamor por morte logo se alastrou num uivo único.
Lydia adiantou-se e colocou uma adaga em suas mãos.
– Gabrielle – disse Lydia – sabemos que precisava dela para tirar Acestes do poder. Mas ela já não é mais necessária. Ele está morto. Vingue sua nação.
O brado continuava, ecoando na floresta. Xena não movera um músculo. Gabrielle sentiu sua cabeça ficar tonta com o barulho. Buscou, como uma memória muscular, a manta que vestia quando era rainha.
– Silêncio! – gritou.
A quietude parou os alaridos como se alguém as tivesse emudecido. Os barulhos da noite voltaram a se fazer ouvir.
– Quem a capturou? – perguntou Gabrielle.
– Eu e Mia – disse Danae – esgueirava-se até nós, para finalizar seu trabalho. A surpreendemos e a capturamos.
– Compreendo – comentou Gabrielle, num tom de voz neutro – vocês todas, chegaram a ouvir histórias sobre a nossa batalha final?
– Sim, Gabrielle – respondeu Lydia – todas ouvimos.
– E o que essas histórias contavam da conquistadora?
As mulheres começaram a se entreolhar, sem saber onde a barda queria chegar.
– Uma carniceira implacável – disse Mia – caíamos pela sua espada como moscas. Uma guerreira feroz.
– É exatamente como foi – disse Gabrielle – agora, acham plausível que essa mesma mulher seria capturada por duas amazonas sozinhas?
As mulheres ficaram em silêncio.
– A verdade – continuou Gabrielle – é que se ela tivesse vindo nos matar, estaríamos mortas. Se ela está indefesa em nossa frente agora, é porque quer estar.
– De que importa? – retrucou Lydia – ela está aqui. Mate-a.
Gabrielle avançou até Xena, de adaga em punho, e cortou as cordas que a prendiam. A conquistadora a encarou, estupefata. As amazonas ofegaram.
– Eu já matei Xena, a Destruidora de Nações, mais de uma vez – disse Gabrielle, olhando para a rainha – essa mulher na minha frente não é ela.
– Gabrielle! – gritou Lydia, enfurecida – é a lei amazona!
– Lydia! Danae, Mia, todas vocês. Nossa guerra já acabou há anos. Acham realmente que ao derramar o sangue de Xena, o coração de vocês voltará a ter paz? Eu lhes digo, não terão! Se matamos Xena, o que acham que acontecerá? Pessoas buscarão vingá-la, e morrerão na jornada. Outros vingarão estes que morreram. E o mundo acabará banhado em um mar de sangue. Esse ciclo tem que acabar!
As mulheres se entreolhavam, contrariadas.
– Todas vocês um dia cometeram um crime punível com a morte. Era a lei amazona. Mas eu desobedeci a lei, em nome da vida. Agora vocês têm filhas, e o nome das amazonas resiste. Você ensinam as suas filhas sobre nós. Ikari quis meu sangue, e está morta. Não há nada no caminho da vingança além de destruição. E vocês sabem disso.
Gabrielle encarou as mulheres ao seu redor.
– Estamos vivas. Vivas! E para continuar vivas, precisamos seguir em frente. Simplesmente seguir.
O silêncio voltou a pesar entre as mulheres.
– Seus caminhos sempre foram estranhos, Gabrielle – disse, finalmente, Lydia – nós, que aqui estamos, somos as que mais tiveram dificuldade em compreender. No entanto, graças ao seu caminho, estamos vivas até hoje.
Lydia tirou a adaga da mão de Gabrielle e guardou na cintura.
– Não vou fingir que a entendo – continuou a amazona – mas foi você que nos fez grandes. Vou confiar no que diz, como deveria ter confiado há tantos anos. Essa é a chance que tenho de finalmente ouvi-la, e assim o farei.
Um murmúrio de concordância correu entre as mulheres. Gabrielle voltou-se para Xena, que permanecia de joelhos. O que viu nos olhos da rainha a deixou sem respirar por um momento. Por um milésimo de segundo, esqueceu onde estavam e o que acontecia, e perdeu-se na imensidão azul. Mas rapidamente retomou o foco.
– Xena de Anfípolis, levante-se – ordenou Gabrielle. A conquistadora obedeceu – me dá sua palavra, a mim e a todas essas mulheres, que não as perseguirá? Jure, em nome daquilo que mais valoriza.
– Eu juro – disse Xena – em nome da honra de meu falecido irmão Lyceus, em nome da minha família que morreu sob a lâmina de Cortese, que, enquanto eu for viva e governar esta terra, as amazonas e suas descendentes jamais serão perseguidas por serem quem são.
Gabrielle teve que se conter para não abraçar a rainha.
– Xena, acompanhe-me por favor. Mulheres, continuem por um tempo sem mim. Preciso falar com Xena a sós.
– Gabrielle – Lydia soou preocupada – tem certeza?
Gabrielle sorriu e assentiu. Hesitante, Lydia deu as costas. A barda começou a se dirigir ao bosque e Xena a seguiu. Quando percebeu que estavam longe dos olhares e ouvidos das mulheres, Gabrielle olhou para Xena, angustiada.
– Por que continua tentando fazer com que a mate? – perguntou a barda.
Xena sorriu e deu de ombros.
– Imaginei que você…
– Não! Xena! – Gabrielle gritou, atormentada. Xena arregalou os olhos de surpresa ao ver o olhar ferido da outra mulher – Não percebe? Me machuca quando faz isso!
– E-eu… – a rainha gaguejou.
A barda agarrou-se a ela e Xena sentiu as lágrimas da loira em seu colo. Tentava entender o que estava acontecendo, mas não conseguia. Sempre pensava que dar a Gabrielle a oportunidade de vingar-se era uma boa coisa.
– O quão estúpida consegue ser, Xena? – Gabrielle levantou os olhos chorosos para a mulher, mas não a soltou.
– Pelo visto, bastante – disse a rainha, triste – não imaginava que fosse magoá-la, afinal, se eu morrer…
– Eu não quero que você morra! – gritou Gabrielle mais uma vez – e muito menos quero matá-la! Me doeria mais que qualquer coisa nessa vida! Por que quer me causar essa dor?
– Lhe doeria me matar? – perguntou Xena.
– Oh, pelo amor dos deuses – Gabrielle afastou-se e começou a dar voltas, balançando a cabeça, incrédula – Xena, às vezes me pergunto como conseguiu conquistar todas essas terras sendo tão lenta.
Xena sentiu-se ligeiramente indignada com o comentário, mas achou que era melhor deixar passar. A mulher à sua frente parecia exasperada. Gabrielle respirou fundo algumas vezes para acalmar-se e finalmente olhou para a rainha.
– Afinal, o que veio fazer aqui? – perguntou a barda.
O frio que a rainha sentiu na barriga não era nada parecido com a emoção logo antes de uma batalha. Tinha mais a ver com o que sentira logo antes de ter certeza que seria devorada viva pelas feras na arena.
A consciência de que poderia morrer. Gabrielle era tão perigosa para sua vida quanto aqueles animais. Ela tinha o poder de matá-la com uma simples palavra, e a conquistadora sabia disso. E, o pior de tudo, é que permaneceria viva.
– Eu… – Xena baixou os olhos – Gabrielle, você disse que iria em alguns dias para Corinto.
– E iria – respondeu Gabrielle.
– Iria mesmo? – a rainha levantou os olhos.
– Claro – Gabrielle se aproximou – não acreditou em mim?
– Precisava ter certeza.
Gabrielle olhou para o rosto desamparado da mulher. Percebeu os nós brancos dos dedos que seguravam fortemente o punho da espada, provavelmente num gesto automático e inconsciente.
– Xena – disse Gabrielle – o que posso fazer para acreditar em minha palavra?
Xena parou um momento para refletir. Suspirou, sentindo-se derrotada.
– Nada – respondeu – mesmo que jurasse, eu não acreditaria.
– Então, o que veio fazer de fato aqui?
Xena desejou possuir as palavras capazes de organizar seu interior conturbado. Se sentia fora de si, e tudo que conseguiu fazer foi caminhar trôpega até a barda e beijar-lhe os lábios, sabendo que seu coração despedaçaria se a mulher a rechaçasse. Mas o que sentiu foi o sopro da vida quando a barda lhe correspondeu, abraçando-a.
– Você tem razão, Gabrielle – sussurrou Xena – você matou Xena, a Destruidora de Nações. Pôs no lugar dela Xena, a Balbuciante Apaixonada.
A rainha afastou-se e contemplou a expressão estupefata da outra mulher.
– Não sou barda, Gabrielle. Não tenho palavras para falar sobre essas coisas. Só sei que me condenou. Ao eterno sofrimento, provavelmente. Estou condenada a passar meus dias em Corinto, esperando que apareça e me conceda… um sorriso, talvez? Uma pequena promessa, que consumirá minha mente? A pobre Ophelia terá que lidar com uma Xena estúpida que ficará perambulando pelos corredores do castelo, só imaginando se um dia verá você novamente numa corte qualquer, contando uma história…
– Xena…
– Me destruiu, Gabrielle. Nada mais justo. Os Destinos sabem o que fazem. Ares estava certo, no fim das contas. Nenhum guerreiro é maior que o poder dos deuses. Me fizeram amar a única pessoa no mundo que jamais poderá me amar.
Xena finalmente largou o cabo da espada. Sorriu e olhou para o chão.
– Eu vim só para dizer isso. Desculpe-me o tumulto que causei. A dor que provoquei, novamente. Nunca poderei pagar pelo que fiz. Mas passarei os dias que me restam tentando. As amazonas…
A rainha teve a fala interrompida, quando o corpo de Gabrielle aferrou-se ao seu e a boca da barda grudou-se à sua. A loira empurrou-a contra uma árvore e sua língua deslizou entre seus lábios. Xena esqueceu todos os seus temores, e só sentia a outra mulher junto a ela. O desejo invadiu-a com força, e tudo que queria era Gabrielle novamente, precisava dela.
– Como eu disse, Xena – Gabrielle afastou a boca, sem soltá-la – você é meio lenta.
Dessa vez a rainha não teve tempo de se indignar, porque a loira logo voltou a beijá-la. Xena deixou suas mãos meterem-se embaixo da blusa de Gabrielle, ansiosas por sentirem a maciez de seu corpo. Sentiu a curvatura do seio em seus dedos, e grunhiu de frustração quando Gabrielle se afastou de suas mãos.
– Xena – Gabrielle ofegava – não é que eu não queira, mas tenho que voltar para as mulheres. Estão me esperando.
– Oh, deuses – resmungou Xena, contrariada.
Gabrielle tocou o rosto da rainha e o acariciou.
– As Parcas são mesmo imprevisíveis. Fizeram nossos destinos se cruzarem através de um labirinto cheio de sangue e morte. Sou barda, Xena, mas também não tenho muitas palavras sobre isso. Só sei que mal posso esperar para correr até Corinto e ficar com você.
– Não acredito em você.
– Eu sei. Vai me esperar?
– Sempre.
Gabrielle deu um beijo rápido em seus lábios e correu de volta para as amazonas. Xena recostou-se na árvore e fechou os olhos.
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